O ex-presidente Lula da Silva deu um espetáculo de alquimias, ilusionismos e prestidigitação política na entrevista (e não debate como no caso de Jair Bolsonaro) de ontem à noite na TV Globo.
Quem não tirar o chapéu para Lula da Silva nega o inegável. Temos um artista político, atividade que dispensa determinadas combinações e sincronias éticas.
Resta saber, entretanto, e você vai entender o que quero dizer, se o Lula da Silva mágico dos votos em tempos analógicos o será também nestes tempos digitais avançadíssimos, de redes sociais implacáveis. Milhões que furam o cerco da Velha Imprensa decadente.
Com a arte genial de um ex-metalúrgico que faz gato e sapato de sabedoria eleitoral mesmo de quem está por trás de sua ascensão intelectual, Lula levou no bico os jornalistas William Bonner e Renata Vasconcellos, além, claro, de milhões de brasileiros.
A dúvida é se Lula da Silva levou mesmo no bico os dois apresentadores ou se tudo fazia parte do teatro de operações em represália a um presidente da República excessivamente beligerante com os meios de comunicação tradicionais.
MELHOR ESPERAR
Não se pode negar que Lula da Silva é um craque. Se as redes sociais não existissem com um mundaréu de gente que já dispara uma guerra de contraditórios para tentar reconduzir muitas das afirmativas de Lula à devida bitola, a genialidade do bipresidente estaria encaminhada ao tricampeonato.
Mesmo assim, a dúvida que prevalecerá nos próximos dias e provavelmente nas próximas pesquisas é se o Lula da Silva de manobras verbais de um especialista em impactar os eleitores se traduzirá em avanço e consolidação de uma enigmática liderança nos números eleitorais que não se expressam nas ruas.
MENOS RACIONALIDADE
Quem olhar para a magistral participação de Lula da Silva com olhos de racionalidade cometerá o pecado capital de subestimar a capacidade de consumo de informações geralmente dispersas da maioria do eleitorado que o coloca na liderança das pesquisas.
Essa gente humilde, que ganha até dois salários mínimos e prevalece notadamente onde o Estado é um fracasso eterno, como do Nordeste, depende exatamente dos cofres públicos para sobreviver.
Bolsa Família lá atrás, Renda Mínima agora, são a mesma coisa e têm o mesmo objetivo – aplacar a fome da maioria e mitigar o interesse de trabalhar dos sanguessugas.
DOMINIO DA POBREZA
Lula da Silva é um ex-presidente quase imbatível na classe mais sofrida porque teve a lucidez de enxergar no primeiro mandato o que os engravatados partidos políticos de então e anteriores jamais se preocuparam: o Brasil é a Belíndia, uma pequena Bélgica dentro de uma Índia, conforme consagrada e certeira definição do economista Edmar Bacha.
Mas vamos ao que interessa na entrevista amistosa de ontem à noite na Globo.
Vários pontos mostram que Lula da Silva transformou mentira em verdade, meia-verdade em verdade, mentira inteira em dúvida e verdade inteira em autoconsagrarão.
Foi assim que, falando sem parar, com pleno domínio de cena, diante de dois jornalistas programados ou não, Lula da Silva fez de 40 minutos uma eternidade argumentativa que as redes sociais já estão esmiuçando.
Uma verdade inteira como o maior escândalo de corrupção do País, desmascarada pela Operação Lava Jato, virou perseguição política e equívocos judiciais.
Com um discurso fácil esgrimido por especialistas corporativos e criminalistas de encomenda aboletados no grupo Prerrogativas, Lula da Silva jogou a bomba do desemprego, dos juros altos, das calamidades do PT de Dilma Rousseff, que o sucedeu, no estoque de pecados de Sérgio Moro e companhia.
Disse Lula em alto e bom som que as empresas atoladas nos desvios da Lava Jato deveriam ser preservadas e tudo estaria resolvido. Exemplificou com casos internacionais. Repetiu uma velha fórmula de criminalistas milionários.
LAVA JATO CULPADA
Imputou-se à devassa supostamente destruidora da Lava Jato o populismo do segundo mandato de Dilma Rousseff. E ao primeiro mandato um sucesso exclusivo dos petistas, quando de fato Fernando Henrique Cardoso deixou de herança nacional um arcabouço de equilíbrio fiscal, apesar de todos os tropeços em relação ao Grande ABC.
Uma meia-verdade virou verdade inteira quando Lula da Silva declarou que o PT estruturou toda a argamassa legal de contenção de roubalheiras desmascaradas pela Lava Jato.
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. O PT só introduziu ou fez algumas incursões nos mecanismos de teóricas barreiras à tomada do Estado por delinquentes não porque pretendia de fato moralizar o setor público, mas, sobretudo, porque mantinha sob controle avassalador tanto a máquina do Estado como o entorno da máquina do Estado, os poderosos que giram no eixo central dos mandachuvas.
O Estado estava num círculo de ferro de proteção aos descalabros a ponto de as fortalezas éticas não passarem de caixotes de papelão. Tudo era um jogo de cena institucional. Galinhas que cuidavam das raposas.
AMEAÇAS À IMPRENSA
Um dos exemplares de mentira-inteira que virou dúvida foi subliminarmente imposto sem contradição dos apresentadores, quando Lula da Silva se referiu à liberdade de imprensa.
Todos sabem que o programa de governo do PT não segue essa direção. Muito pelo contrário. Os casos de hostilidade à Velha Imprensa, hoje portadora de Alzheimer, são inúmeros.
Um escrutínio meticuloso das declarações enfáticas de ontem à noite na Globo não resistiria à conclusão de que a genialidade do petista é algo a ser estudado.
Diferentemente de tantos adversários que o querem a todo custo longe do Palácio do Planalto, Lula da Silva tem o controle emocional, o gestual, a encenação dramática, a clarividência interpretativa, a informalidade e tudo o mais que só se forja na vida em ambientes populares. Do jeito que o povo tanto gosta e que torna Lula da Silva suposto favorito à eleição.
AMOR A GERALDO
Não se pode esquecer também do momento para muitos patético, mas para tantos outros de extraordinária vivacidade, quando Lula da Silva, contestado diplomaticamente por William Bonner, negou a verdade em forma de sofisticada embromação ao relatar suposta devoção dos eleitores petistas ao tucano Geraldo Alckmin. O mesmo ex-governador, seu parceiro de jornada depois de tantas batalhas e acusações que as redes sociais mostram sem truques que possam ser caracterizados como fake News.
Disse mais em relação às justificativas da paixão entre ele e seu candidato a vice. Lula da Silva lamentou que os tempos de polarização do passado, entre petistas e tucanos, tenham sido soterrados pela intolerância supostamente de mão única de Jair Bolsonaro e as direitas mais radicais.
RELAÇÕES CIVILIZATÓRIAS
Lula da Silva evocou o que os cientistas políticos à esquerda chamam de relações civilizatórias no período pós-redemocratização. Só esqueceu de dizer que a Operação Lava Jato, demonizada nestes tempos sombrios, desmascarou tudo ao constar generosos acordos de cavalheiros de agremiações distintas, mas convertidas em parceiras de falcatruas. Ou seja: vicejava no Brasil até a eleição de Jair Bolsonaro um show de horrores com o dinheiro público que, insisto, a Lava Jato flagrou e explodiu.
Foi hilária a resposta de Lula da Silva à indagação de William Bonner, agora sobre “nós e eles” expressão que Lula exercitou como retórica e também na prática política desde quando liderava os metalúrgicos em São Bernardo, referindo-se aos patrões e aos assalariados da administração. O ex-presidente disse que tudo não teria passado de um jogo verbal lúdico, tanto quanto confrontos corriqueiros entre torcidas organizadas.
Quem viveu a história do Grande ABC e dos embates entre capital e trabalho sabe que não foi bem assim.
ALÉM DOS CHECADORES
Quem tiver o cuidado de checar os fatos e as fraudes de Lula da Silva na entrevista de ontem à noite correrá o risco de ser levado a um pasto para contar o rebanho de um fazendeiro sem se dar conta de que supostamente nada mudou, embora alguém tenha tido o cuidado de substituir metade de um plantel robusto por mirrados exemplares.
Lula da Silva é um diferencial de qualidade extraordinária em qualquer ambiente público. Não se mede o valor do rebanho de conhecimento e de maquinações do ex-presidente apenas pela régua convencional de fatos e fakes.
Lula da Silva incorpora um algo mais extraordinário como animal político.
Não há checadores que dimensionem o grau de convencimento de quem mantém uma permanente e entusiástica retórica em que a verdade, a meia-verdade, a mentira-inteira e a verdade-inteira ficam sempre ao sabor da ênfase e das incursões magnetizantes do autor. Lula da Silva é a emotividade escancarada, lunaticamente real.
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19/11/2024 PESQUISAS ELEITORAIS ALÉM DOS NÚMEROS (24)