A cara e a alma dos votos para presidente da República ainda não são definitivas, e poderão sofrer alterações, mas no encerramento do primeiro turno, em dois de outubro, a gataborralheiresca Grande ABC e a cinderelesca Capital esculpiram o mesmo perfil.
Que perfil é esse? o ex-presidente Lula da Silva instalou-se como líder, seguido pelo presidente Jair Bolsonaro, expondo resultados numéricos semelhantes, dentro da margem de erro.
As entranhas recortadas desses dois territórios na Região Metropolitana de São Paulo são variáveis, mas no conjunto da obra o que temos é uma identidade geopolítica que não corresponde à geoeconomia.
ENDEREÇOS DISTINTOS
Como explicar que na média do Grande ABC de quase três milhões de habitantes e uma indústria de transformação industrial equivalente a um quarto do PIB (Produto Interno Bruto) e a cidade de São Paulo de 12 milhões de habitantes e menos de 10% da indústria de transformação industrial no PIB, haja semelhança numérica de votos entre os dois principais candidatos à presidência da República?
Essa é uma pergunta que não pretendo responder agora porque exigiria muita queima de combustível cerebral.
PONTO EM COMUM
Parece certo que, independentemente de diferenças de matrizes econômicas e mesmo culturais (somos borralheiras ante a Capital cinderelesca, não custa lembrar e reafirmar) haveria um ponto em comum que suplantaria os demais a serem observados e analisados: o ambiente metropolitano de complexas equações favorece o espalhamento do vírus da similitude político-eleitoral.
Mas não custa esperar o segundo turno, quando as peças do tabuleiro de votos vão se mover de modo a esquadrinhar escapadelas que impactariam os dados do turno inicial.
Afinal, sem Ciro Gomes e Simone Tebet no embaralhamento eleitoral, mesmo que subsidiário, é mais que provável que Lula da Silva ou Jair Bolsonaro se beneficie.
PERGUNTA DESAFIADORA
A pergunta desafiadora é a seguinte: será que mesmo assim, Grande ABC e a cidade de São Paulo seguiriam gêmeas eleitorais?
Os votos válidos de Lula da Silva na cidade de São Paulo alcançaram 47,54%, ante 37,99% de Jair Bolsonaro. No Grande ABC, o placar registrado é de 48,48% a 39,85% para Lula da Silva. Absolutamente dentro da margem de erro de dois pontos percentuais.
Em São Paulo, a distância favorável ao ex-presidente foi de 9,55 pontos percentuais. No Grande ABC, de 8,83 pontos percentuais.
A distância é um dos apetrechos à comparação, que se associa aos números relativos tanto de um quanto de outro. Se a distância fosse semelhante sem correspondência com o caudal de votos registrados, a história seria outra.
MUDANÇA DE TONALIDADE
Os votos da região e da Capital diferem dos votos totais do Estado de São Paulo. O tom mais avermelhado sofre mutações e se torna mais amarelado, com domínio estadual de Jair Bolsonaro: 47,7% a 40,9%.
No Brasil, o voto prevalecentemente vermelho favorável a Lula da Silva alcançou 48,4% a 43,2%.
Que perfil de votos da metrópole paulistana e do Estado mais poderoso da Nação vai aparecer quando a apuração de 30 de outubro for encerrada? E como esse resultado poderá ser confrontado com os dados do Grande ABC?
EXORCISMO TEMPORÁRIO?
Para quem sofre de Complexo de Gata Borralheira, enfermidade sociológica de sentimento de inferioridade do Grande ABC em relação à Capital (com rompantes de grandiloquências autofágicas), os votos gêmeos dos dois territórios poderiam ser vistos como exorcismo. Não é bem o caso.
As porções distritais de São Paulo não recomendam comemorações. São pedaços geoeconômicos longe do que se poderia chamar de qualidade de vida sonhada.
Alguns recortes são provas de que não se deve olhar para a grandiosidade de São Paulo como um todo como perfil mesmo que precário de votos gêmeos que colocariam os dois territórios em igualdade de condições em outras variáveis.
ENDEREÇOS CORRELATOS
Francamente e sem discriminação, porque se trata de fatos, quem acreditaria que a cara e a alma eleitorais da Capital Econômica do Grande ABC, São Bernardo, têm estreita identificação com os distritos paulistanos de Itaquera e Ermelino Matarazzo?
Lula recebeu 49,17% dos votos em São Bernardo ante 38,02% de Bolsonaro, enquanto Itaquera registrou 49,10% ante 38,03% de Bolsonaro. No caso de Ermelino Matarazzo, foram 48,71% ante 39,55%.
O consolo de São Bernardo é que também o resultado final em São Paulo significou a constituição de votos gêmeos dos dois eleitorados. Ou seja: São Bernardo e São Paulo têm a mesma identidade numérica.
CASA VERDE ANDREENSE
A alma gêmea de Santo André de votos presidenciais de primeiro turno é o distrito paulistano da Casa Verde. Santo André registrou vitória de Jair Bolsonaro por 43,42% a 42,66%. A Casa Verde marcou 42,46% a 41,99%.
A sempre esquerdista Diadema que saiu das urnas eletrônicas do primeiro turno tem semelhança funda com os distritos de Guaianazes e Perus.
Em Diadema, Lula da Silva venceu por 56,34% a 32,95%. Em Guaianazes o placar foi de 55,83% a 33,53% e em Perus por 55,04% a 33,76%.
A um pouco menos avermelhada Mauá registrou vantagem de Lula da Silva por 49,27% a 38,91%, semelhantemente aos resultados de Itaquera, Ermelino Matarazzo, Santa Ifigênia (48,63% a 39,50%) e São Miguel Paulista (48,39% a 39,07%). Ou um resultado muito parecido com o total de votos apurados na cidade de São Paulo.
Quem diria que Mauá e São Bernardo seriam tão parecidas assim eleitoralmente? Pois é isso que se encontra nas urnas dos dois municípios.
SAPOPEMBA E JAÇANÃ
Ribeirão Pires sempre semelhante a Santo André, de onde se desmembrou no século passado, registrou votos encontrados na apuração do distrito do Sapopemba e do Jaçanã. Ribeirão Pires registrou vitória de Lula da Silva por 43,58% a 42,97%, enquanto Sapopemba marcou 43,66% a 42, 43% e Jaçanã apontou vitória de Lula da Silva por 43,01% a 42,67%.
Rio Grande da Serra registrou a cara e a alma dos distritos do Jardim Helena e de Teotônio Vilela, na Capital. Rio Grande da Serra marcou vitória de Lula da Silva por 52,38% a 36,89%, enquanto o Jardim Helena apontou 52,81% a 36,27%; e Teotônio Vilela marcou 52,77% a 36,27%.
SEM CONEXÃO
Falta São Caetano? A cidade de melhor qualidade de vida na Região Metropolitana de São Paulo não é irmã gêmea nem da Capital, nem do Brasil, nem do Estado de São Paulo nem de qualquer distrito da Capital.
São Caetano registrou vitória de Jair Bolsonaro por 50,33% ante 33,34% de Lula da Silva. Os votos destinados a Simone Tebet e Ciro Gomes foram além da média metropolitana e, com isso, rebaixaram os números dos dois principais candidatos.
O mapa do Estado de São Paulo mostra com clareza que as manchas avermelhadas predominam na Região Metropolitana de São Paulo. À medida que a apuração se desloca rumo ao Interior, o amarelo de Jair Bolsonaro predomina. As maiores cidades do Interior do Estado são redutos de Jair Bolsonaro.
GRANDES AMARELADAS
Campinas, São José dos Campos, Ribeirão Preto, Piracicaba, Jundiaí e Santos têm forte domínio bolsonarista. Os números são muito superiores ao melhor que o presidente da República alcançou em São Caetano, endereço comprovadamente conservador.
Esta não é a primeira nem será a última vez que faço comparações em busca de almas gêmeas e almas distintas eleitorais. Introduzi o tema após as eleições de segundo turno para a presidência da República, em 2018. Vou voltar ao assunto. Sobretudo quando terminar o segundo turno deste ano.
Leiam o que escrevi há quase quatro anos.
Quem consegue decifrar
a cara eleitoral da região?
DANIEL LIMA - 05/11/2018
Vou fazer um teste com os leitores. Quem arriscaria desenhar o perfil do eleitorado da região com base nos resultados de 28 de outubro que elegeram Jair Bolsonaro presidente da República na disputa com petista Fernando Haddad?
Melhor dizendo: se fosse comparar o resultado final da região com outros territórios paulistas, em qual deles a soma de votos a Jair Bolsonaro teria proximidade? Estamos acertados?
Pois então vamos às alternativas que listei depois vasculhar meus arquivos das eleições especificamente com esse propósito, ou seja, de buscar irmãos siameses eleitorais.
Antes, uma explicação. Tratar os resultados individuais dos municípios da região e compará-los internamente, ou seja, entre si, tem valor definidor das diferenças locais.
Já fizemos isso muitas vezes para provar que a região é uma colcha de retalhos sociais, com nuances culturais sedimentadas ao longo de décadas de intervenções demográficas e econômicas.
Olhar para a região e acreditar que somos um conjunto de municípios semelhantes é uma aberração que provoca muitos estragos a empreendedores mal-orientados. Como já se provou fartamente.
DISTINÇÕS INTERNAS
Diadema é tão distinta de São Caetano como Santo André de Rio Grande da Serra. São Bernardo e Mauá guardam diferenças também. Santo André e São Bernardo são parecidas apenas na superfície socioeconômica. Quando se desce ao entranhamento político-partidário, o que parece certo é enganoso.
No fundo, cada território municipal da região conta com micro espelhos e macro espelhos na própria região, mas nem por isso são um macrocosmo uniforme.
O que coloca os municípios da região em pontos separados é a proporcionalidade no universo local.
Exemplo? Santo André tem uma porção de bairros típicos de São Caetano em termos de classe média e média alta, mas é menos expressiva no conjunto da população. Já se comparar a participação da classe média de Santo André com Diadema, a constatação será a mesma, favorável a Santo André.
Dito isso, vamos ao questionamento: com que o conjunto de votos destinados a Jair Bolsonaro e a Fernando Haddad nas últimas eleições presidenciais nos sete municípios da região se parece?
1. Osasco, na Grande São Paulo.
2. Barueri, na Grande São Paulo.
3. Bairro Perdizes em São Paulo
4. Bairro Pinheiros, em São Paulo.
5. Bairro Ipiranga, em São Paulo.
6. Todas essas alternativas.
7. Nenhuma dessas alternativas.
Vou dar alguns segundos de tolerância para o leitor e eleitor raciocinar. Olhem bem para a lista. Perdizes, Pinheiros e Ipiranga são bairros de classe média, média alta da Capital. Principalmente Perdizes e Pinheiros. Já os dois municípios da Grande São Paulo têm predominância do setor de serviços e de comércio sobre a área de transformação industrial. Diferentemente, portanto, desta região de sete municípios.
Pensaram bem. Têm certeza da resposta? Pois então vamos revelá-la: todos os endereços mencionados contam com números semelhantes aos da região na vitória de Jair Bolsonaro.
Exatamente todos. Minha intuição diz que a maioria apostou na alternativa “nenhuma dessas localidades”, ou no máximo enveredaram por Osasco e Barueri. Eu o faria, se não esmiuçasse pessoalmente os dados.
Na edição de amanhã, terça-feira, vou fazer recortes municipais dos resultados na região, comparando-os a outras localidades. Os leitores vão ver o quanto discrepante é o tecido socioeconômico da região, tipificado na multiplicação de espelhos eleitorais.
No caso do retrato da região como um todo, a aferição correu por uma vereda simples, mas inquestionável: do total de votos presidenciais na região em 28 de outubro (1.353.868), 62,12% (900.448) foram destinados a Jair Bolsonaro e 549.074 (37,88%) a Fernando Haddad.
Entre os 20 maiores municípios do Estado de São Paulo em poderio econômico que integram o G-22 estudados por esta revista digital (Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra completam a lista por pertencer à região), apenas Barueri e Osasco chegaram a números próximos: Osasco registrou vitória de Bolsonaro com 63,14% dos votos válidos e Barueri 62,95%. Lembre-se que na região o número final foi 62,12%.
Também os três distritos eleitorais da Capital apresentaram números semelhantes aos da região: Bolsonaro somou 62,53% dos votos válidos em Perdizes, 63,21% em Pinheiros e 63,26 no Ipiranga.
Os demais distritos da Capital romperam o limite de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Na maioria dos casos os resultados foram largamente acima dos dois pontos de margem de erro, por assim dizer.
COMPLEXIDADE ANALÍTICA
É muito complexo e arriscado tentar destrinchar correlações entre a preferência do eleitorado da região e dos demais endereços mencionados. Os resultados das urnas não oferecem nada além dos próprios números.
Não há segurança teórica alguma em tentar estabelecer vínculos com a garantia de que não se está comprando gato de especulação por lebre de ciência.
Pesquisas eleitorais fatiam preferências e rejeições aos candidatos com base em sexo, idade, região, escolaridade, renda e tudo o mais, mas não as transportam às urnas em forma de votos concretizados.
Os números que saltam das urnas, insisto, são pedras brutas e pedras brutas continuarão a ser. Podem ser amoldados ao gosto do freguês, sem a garantia de que não se está invadindo área inapropriada.
Pesquisas eleitorais abrem o caminho morfológico a avaliações espaciais, mas não dão sustentação a resultados posteriores cotejados com outros endereços. Resultados dentro da mesma bitola de preferência guardam armadilhas.
CAMINHOS TORTUOSOS
Resultados semelhantes aos da região na vitória de Jair Bolsonaro podem desdobrar-se em variáveis sem conexão entre si. Exemplo: como pode uma região de assalariados predominantemente industriais (em relação aos demais pesquisados) no volume de massa monetária ir às urnas e oferecer como resultado eleitoral um perfil bruto de bairros prestadores de serviços de alto valor agregado da Capital?
Tento estabelecer conexões, mas acho arriscado. Da mesma forma que colocar Barueri e Osasco no mesmo saco desafiador de uma explicação que pareceria inconsistente.
Os dois municípios também têm predominância de mercado de trabalho bem menos industrializado que o da região. Como os distritos da Capital, não obedeceram ao fluxo ocupacional e demográfico da região. O que une a todos é o ambiente político e institucional próprio de regiões metropolitanas.
Confesso publicamente que me sinto paradoxalmente impotente e empoderado ao não avançar o sinal explicativo de resultados assemelhados em territórios distintos.
DOIS SENTIMENTOS
O sentimento de impotência é basicamente por conta de faltarem dados detalhados dos eleitores que compareceram às urnas nessas localidades. O segredo do voto, claro, não pode ser violado. Diferentemente, portanto, de pesquisas, que contam como a anuência dos pesquisados.
Daí os analistas dos institutos de pesquisas exporem explicações mais detalhadas sobre o provável destino dos votos, obedecendo ritual da planilha social, econômica e educacional.
Já o sentimento de empoderamento advém da humildade de reconhecer-me incapaz a uma empreitada que, executada, poderia me levar ao descrédito.
AMBIENTE METROPOLITANO?
No fundo, no fundo, e reforçando o que tangenciei anteriormente, o que acho no sentido especulativo da expressão é que o ambiente metropolitano (não se pode esquecer que as localidades estão na Grande São Paulo) tem a ver com os números.
Se isso tem algum fundamento, e parece que tem, por que então outras localidades da Grande São Paulo (em quantidade muito maior) apresentaram resultados que ultrapassaram ou ficaram aquém dos números desse bloco?
Faço esse autoquestionamento e juro que a resposta é um desafio. Diria que a possível melhor explicação a essa dicotomia envolvendo resultados eleitorais é que certamente há especificidades distintas no campo econômico e social a encaminhar dados descolados da margem de erro.
Ou mais simplificadamente: fatores socioeconômicos e socioculturais pesam mais ou pesam menos na aproximação e no distanciamento de espaços distintos.
Complicado? Pois é: confrontar numericamente os resultados eleitorais da região com aqueles cinco endereços talvez seja a melhor maneira de dizer que se trata de um labirinto perigosíssimo.
Por isso uma abordagem municipal, como faremos amanhã, tenha elementos menos difusos. E mais próximos de uma interpretação menos marcada pelo comedimento de quem não gosta de frequentar ambiente interpretativo hostil à sensatez.
Total de 895 matérias | Página 1
19/11/2024 PESQUISAS ELEITORAIS ALÉM DOS NÚMEROS (24)