O resultado de ontem à noite do debate presidencial na TV Bandeirantes não pode nem deve ser observado apenas sob a ótica que chamaria de conteúdo generalista. Há aspectos aparentemente intangíveis que devem ser contabilizados.
Se for visto exclusivamente com a simplicidade de cotejamento do que Jair Bolsonaro e Lula da Silva destilaram verbalmente, a vitória do presidente da República é objetivamente clara, embora por placar discreto.
Como o confronto reúne outros apetrechos avaliativos, os quais destaco em seguida, o que tivemos para valer foi uma vitória incontentável do presidente da República. Um atropelamento em linguagem popular.
BANCO DE MINUTOS
O formato da contenda, que ofereceu dois blocos de 30 minutos de confronto direto, intermediados por perguntas de jornalistas, oferecia todas as condições teóricas para colocar Lula da Silva na dianteira -- por razões que também explico em seguida.
Mas não foi o que se deu. Como também explico abaixo.
Lula da Silva perdeu fragorosamente para Jair Bolsonaro. O placar moral dessa disputa seria algo como quatro a dois para Bolsonaro. Lula da Silva fez o primeiro gol, no primeiro bloco, e parecia arrasador.
MESMO FORMATO
Tudo bem diferente para o PT na experiência anterior, no mesmo formato, também na Bandeirantes, em que, disputando o governo do Estado, o petista Fernando Haddad, professor de experiência política, superou o tecnicista Tarcísio de Freitas. Haddad impôs a pauta ao adversário.
Haddad teve sempre o mando do jogo temático. Tarcísio caiu na armadilha da nacionalização da disputa.
Haddad sabe que já perdeu em São Paulo, mas entrou no jogo eleitoral para reforçar a votação de Lula entre os paulistas e, com isso, reduzir o impacto da vantagem de Bolsonaro no Estado em relação ao conjunto da obra nacional.
Estabelecer um paralelo entre os dois confrontos tem razão de ser, portanto. Para governador, o PT foi melhor que o candidato de Bolsonaro.
DERROTA ENTRE ALIADOS
Mas, voltemos ao que interessa e que tem relações profundas com a mudança de roteiro dos encontros promovidos pela Bandeirantes.
Lula da Silva de potencial muito maior de sucesso no confronto midiático cara a cara com Jair Bolsonaro, foi duramente castigado. Perdeu de goleada. Tanto perdeu que até mesmo seus apoiadores na mídia, que não são poucos, admitem a derrota. Alguns cometem o exagero de dizer que houve empate.
Quando se admite a derrota, ou se flerta com um empate onírico tendo Lula da Silva como protegido, não é preciso dizer mais nada.
O que ofereço aos leitores é um cruzamento de vetores que pretendem qualificar o debate de ontem à noite longe das quatro linhas de torcida organizada e também de filtragens que deem exclusividade à realidade e à fantasia das declarações dos contendores.
Por isso, o conteúdo convencional do confronto é apenas um dos componentes à avaliação geral.
MAIS QUE DECLARAÇÕES
Retirar da análise mais apurada ou mesmo da sensibilidade popular fatores que vão muito além do conteúdo explicitado pelos adversários é ver apenas uma parte do todo. E o todo de todas as partes está resumido logo abaixo.
Lula da Silva perdeu o debate de forma clamorosa. Encerrou a contenda em farrapos físicos, intelectuais e emocionais.
Cada minuto a mais de confronto construiu um fosso entre os dois contendores.
Lula da Silva foi um cavalo paraguaio – aquele que sai em disparada à frente do concorrente e, aos poucos, entrega a rapadura.
Listei seis vetores que, obrigatoriamente interdependentes, ajudaram a explicar o resultado final do debate na Bandeirantes.
São quesitos interconectados. Não podem ser dissociados em parte ou do conjunto de fatores.
Essa maquinaria está objetivamente e subjetivamente entrelaçada. Qualquer curadoria que pretenda chegar o mais próximo possível de uma constatação-macro, ou seja, sobre quem se deu melhor, não pode desconsiderar o que passou.
1. PAUTA IMPOSTA.
2. DESTREZA CÊNICA.
3. EXPRESSÃO CORPORAL.
4. RESILIÊNCIA EMOCIONAL.
5. CLAREZA DAS MENSAGENS.
6. CONTROLE DO TEMPO
PAUTA IMPOSTA
Ativos e passivos dos dois candidatos foram expostos em todos os blocos com mais tempo e profundidade porque o formato favoreceu. Quem impôs por mais tempo a pauta que mais lhe interessava se deu melhor.
Lula da Silva foi muito bem no primeiro bloco e desabou no último, períodos em que se enfrentaram tendo o banco de minutos como suporte regulamentar.
Lula da Silva se deu bem quando impôs a Jair Bolsonaro a pauta ambiental e a pauta sanitária do Coronavírus. Mas sofreu um bocado quando o adversário tratou de roubalheiras nas estatais, de políticas internacionais com vizinhos socialistas, de segurança pública.
Até mesmo na Educação, que explorou ao questionar o adversário sobre o número de universidades que teria criado, Lula da Silva deixou escapar a oportunidade de superar Bolsonaro. Num ato falho, declarou que os brasileiros mais pobres foram os que mais sofreram com o fechamento das escolas durante a pandemia.
Lula levantou a bola para Bolsonaro esgrimir o discurso contrário a fechamento indiscriminado de estabelecimentos e à infertilidade histórica do setor, detectada em rankings internacionais. A longevidade do PT no poder não é uma peça de carpintaria administrativa com rupturas de descaso educacional.
DESTREZA CÊNICA
Detentor de capacidade cênica extraordinária, cevada nos tempos de metalúrgico, Lula da Silva sugeriu no primeiro bloco de 30 minutos que faria de Bolsonaro marionete. Deslizava pelo palco. Sentia-se soberano. Fez-se soberano. Chegou a exagerar na autoconfiança. O carisma incendiava a tela.
Lula se dirigiu às câmeras com a intimidade de ator excepcional, desses que se comportam com naturalidade. Parecia estar ao lado do telespectador no sofá.
Lula caminhava com tranquilidade, sorria, girava o corpo, exibia ares de superioridade natural. Era um espetáculo. Combinava tudo com o cardápio de horrores do Coronavírus. Bolsonaro parecia fadado ao fracasso.
Tudo mudou na medida em que o tempo se fez como elemento de desgaste e o redirecionamento da pauta se consolidou.
Lula terminou o debate como um velho atleta que se arrastava em campo. Bolsonaro, perdido no primeiro tempo, recuperou-se disciplinadamente. E ganhou confiança.
Bolsonaro chegou ao ponto de parecer estar condoído com a fragilidade do adversário. Ofereceu-lhe um abraço enquanto sorria. Bolsonaro parecia gozar as delicias de uma superioridade generosa ao evitar humilhar o adversário. O nocaute estava ali, escancarado. Bolsonaro teve comiseração.
EXPRESSÃO CORPORAL
Lula da Silva mostrou altivez, segurança e confiança no primeiro bloco. O corpo obedecia a mente. A coreografia de um ex-presidente certo de que faria do adversário um ponto qualquer diante de milhões de telespectadores não era subproduto de farsa improvisada. Lula revivia os melhores momentos de consagração popular.
Bolsonaro era um antípoda. Parecia congelado, olhar perdido, corpo encurvado numa dimensão de escancarada derrota. Estava ali um corpo prestes a se estender como tapete ao adversário.
Mas a superioridade de Lula da Silva se desfez. As vantagens de conteúdo de Bolsonaro nos blocos subsequentes dilaceraram a confiança do ex-metalúrgico. O murchar de um rosto que perdeu o brilho, do corpo já se movendo com dificuldades e o rebaixar da cabeça eram evidentes. Os olhos de Lula já não eram mais os olhos de um vencedor.
RESILIÊNCIA EMOCIONAL
Quando Lula da Silva começou a exibir um sorriso nervoso e arredio, teve-se o início da depauperação emocional. O semblante petrificado sufocava o olhar brilhante de antes.
Se no primeiro bloco do banco de minutos Bolsonaro era uma estátua pálida e balbuciante, em seguida, e de forma cada vez mais pronunciada, Lula da Silva derretia-se no esfacelamento de quem parecia ter-se preparado apenas para o primeiro tempo de um jogo em que até a prorrogação poderia ocorrer.
CLAREZA DAS MENSAGENS
Embora tenha se esvaído em perdas ao longo do debate, Lula da Silva não sofreu tanto em relação ao adversário quanto à comunicação com os telespectadores.
Lula é estruturalmente melhor que Bolsonaro na formulação de sentenças, na linguagem objetiva de quem sabe dar o tom mais apropriado aos insumos que expõe, nas nuances de teatralidade que carregam doses suplementares de sedução.
Mesmo visivelmente debilitado, Lula da Silva carregará sempre mais engenhosidade de transmissão de ideias do que Jair Bolsonaro porque tem técnicas cognitivas para tanto.
O passado de metalúrgico e o passado militar esculpiram modelos diferentes de concorrentes.
Lula é um formulador de sentenças convincentes, mesmo sentenças aqui e ali não passem de bravatas.
Bolsonaro em forma, como está em forma, é um emitente de sentenças que precisariam ser lapidadas. Falta-lhe ênfase, peremptoriedade, firmeza.
Lula da Silva supera Bolsonaro no jogo de palavras, na modulação da voz. Mas esse Lula da Silva de ontem perdeu o viço.
Exatamente por conta disso, ou seja, de ter abrangência comunicacional mais intensa com interlocutores próximos e virtuais, Lula da Silva sofre mais quando o adversário lhe impõe pautas menos agradáveis, quando não comprometedoras.
E foi o que se deu tendo Jair Bolsonaro repleto de munição do outro lado. O brilho verbal de Lula da Silva viveu de uma intermitência que, num encontro como o do formato de um debate dinâmico, exala fissuras. Lula abalou-se com os golpes e contragolpes do adversário. A distância que os separava ficou muito menor. Quase imperceptível, portanto.
CONTROLE DO TEMPO
A prova provada de que Lula da Silva perdeu-se completamente com o passar do tempo do debate e que, definitivamente, o levou à derrocada, deu-se no descontrolado uso do tempo no último bloco, quando cada candidato, como no primeiro, contou com 15 minutos flexíveis para perguntas e respostas.
Lula da Silva desequilibrou-se emocionalmente. Deixou de bandeja a Jair Bolsonaro mais de cinco minutos finais livres, leves e soltos, período mais crítico de uma contenda.
Lula da Silva usou os 15 minutos regulamentares de forma intercalada como Jair Bolsonaro, mas encerrou participação muito antes do adversário. Não soube, portanto, administrar o próprio tempo. Fez algo semelhante a entregar a bola ao adversário no período mais crucial do jogo.
Nesse formato, quanto menos tempo o oponente utilizar na reta de chegada, menos possibilidade terá de exercer o que poderia ser chamado mando de jogo, ou seja, conduzir avaliações sem que o adversário tenha tempo ao contraditório.
Bolsonaro encerrou o segundo e último amplo bloco do banco de minutos em situação vantajosíssima.
Tanto que, desrespeitando a regra que estabelece mensagem genérica na despedida de 90 segundos, sendo o último a se manifestar, Lula da Silva atacou Bolsonaro. Chamou-o de pequeno ditador. Bolsonaro solicitou direito de resposta, mas não obteve sucesso.
Nem precisava. Ao infringir as regras do jogo, Lula da Silva já assinara atestado de derrotado.
Lula da Silva agiu como aquele time que transforma a posse de bola em ataque sem se incomodar com a ausência do goleiro adversário, entregue ao médico na linha de fundo. Um gol irregular, claro, que não mudou o resultado final, de goleada impiedosa.
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