Administração Pública

Paulinho tropeça demais
na privatização da morte

DANIEL LIMA - 29/03/2023

A entrevista do prefeito Paulinho Serra ao jornal Repórter Diário na edição de ontem é um amontoado de equívocos que o colocam na mira de um revólver crítico do qual, diferentemente de alguns sortudos, lhe causa danos reputacionais irreversíveis na relação com a sociedade. 

Paulinho Serra tropeçou demais nos argumentos em defesa da privatização da morte em Santo André; ou seja, de concessão à iniciativa privada dos quatro cemitérios do Município. 

Fico imaginando como Paulinho Serra cometeu tantos erros se o assunto entregue ao Legislativo para ser decidido lhe é de amplo conhecimento. Talvez seja por isso. 

A simplicidade de uma medida que poderia ser revestida de sucesso em todos os sentidos (no fundo, entre nós, Prefeitura não é necessariamente o ente mais preparado para lidar com mortos, porque têm vivos demais para dar conta) acabou se estatelando num muro de manobras semânticas insustentáveis.  

TAREFA FÁCIL 

Seria simples a defesa e o convencimento de que é melhor para Santo André contar com cemitérios e apetrechos fúnebres diretamente administrados por gente especializada, desde que tomadas todas as cautelas para não tornar a operação um compadrio em prejuízo das camadas mais sofridas da população. 

Entretanto, Paulinho Serra conseguiu a proeza de tornar complexa uma operação já deficiente na origem. O projeto de lei enviado ao Legislativo é um desprezo à sociedade, porque escasso de informações e justificativas.

Para dar organicidade e objetividade a essa nova abordagem de CapitalSocial sobre a privatização da morte em Santo André, adotei a seguinte estratégia: fatiei a reportagem do Repórter Diário e, nos respectivos intervalos, trato de elaborar  breves análises. 

Esse critério conta com a vantagem de manter os leitores informadíssimos sobre a origem do trabalho jornalístico e, paralelamente, oferecer contrapontos de análises que a reportagem não expõe porque afinal é uma reportagem, não um artigo. Combinados. 

Vamos então ao troca-troca entre a reportagem do Repórter Diário e minhas avaliações. O titulo da matéria do Repórter Diário é “Paulo Serra atrela melhorias aos cemitérios à concessão privada”:

REPORTER DIÁRIO 

Motivos de constantes reclamações da população, as melhorias estruturais aos cemitérios públicos de Santo André ocorrerão somente a partir da concessão à iniciativa privada. Segundo o prefeito Paulo Serra (PSDB), a administração municipal atua conforme as limitações do serviço funerário, embora a cidade tenha orçamento municipal de R$ 4,8 bilhões previstos para 2023, incluindo R$ 16,8 milhões aos serviços funerários. Hoje, porém, quem visita os espaços lida com a sensação da falta de segurança e zeladoria, a ponto da sepultura ficar escondida pelo mato alto.

CAPITALSOCIAL 

Talvez fosse interessante ao jornalismo diário convencional da região uma ampla vistoria do estado em que se encontram os cemitérios públicos. O Repórter Diário enveredou por esse caminho em Santo André e o que constatou dá margem de segurança à afirmativa de que o resultado é péssimo. E isso serve de combustível à privatização desses espaços públicos. Ou seja: depois de seis anos de dois mandatos, o prefeito Paulinho Serra não cuidou dos mortos, apesar de todas as advertências. Estariam os demais prefeitos na mesma situação? 

REPORTER DIÁRIO

A proposta de concessão dos serviços funerários, cemitérios e crematórios públicos à iniciativa privada está na Câmara dos Vereadores e deve entrar em votação na próxima semana. O governo enviará representantes para esclarecer dúvidas aos parlamentares em sessão ordinária nesta quinta-feira (30/3) e a expectativa é que haja sinal verde para a apreciação da matéria em plenário nos dias seguintes.

CAPITALSOCIAL 

O projeto de lei enviado ao Legislativo é de uma pobreza franciscana. A privatização da morte em Santo André poderia ter sido conduzida desde o início com extremos cuidados de informações e dados que somente a Administração Municipal dispõe. A forma protocolar e imprecisa de informações levada aos vereadores frequenta uma sintonia ética que pode ser entendida como aprovação tácita da proposta diante da apatia congênita dos legisladores em questionas. Entretanto, parece estar em curso um rearranjo de forças no Legislativo, a partir da presidência de Carlos Ferreira. Agora o Executivo precisará demonstrar à sociedade, na Câmara de Vereadores, elementos essenciais à iniciativa de privatização. Possivelmente poderia haver inserções e supressões ao projeto de lei. 

REPÓRTER DIÁRIO

Conforme noticiado pelo RD, famílias reclamam do estado de abandono dos cemitérios públicos em Santo André. Relatos contam que os frequentadores precisam levar até tesouras para cortar o mato e, somente depois, colocar as flores como forma de carinho ao seu ente querido, ali enterrado. “Os únicos funcionários que a gente vê por lá são os coveiros, quando tem algum sepultamento e só, mais ninguém”, reclama uma munícipe à reportagem. 

CAPITALSOCIAL

A denúncia do jornal Repórter Diário é grave porque enseja a desconfiança de que gastos anunciados na manutenção dos quatro cemitérios de Santo André poderiam estar em desacordo com os princípio de qualidade dos serviços. E, mais que isso, sem que isso seja visto como acusação – os cemitérios poderiam ser campo de atuação de vivos mais vivos que os vivos no mundo dos mortos. 

REPORTER DIÁRIO 

Indagado sobre a situação de abandono nos cemitérios municipais, Paulo Serra justifica o modelo de concessão proposto aos vereadores. “A gente tem feito aquilo que a capacidade do serviço funerário dispõe, tanto orçamentariamente quanto na prática mesmo, quanto na prática operacional. Por isso que o modelo que é pensado é o de concessão, com toda a regulamentação que precisa, sem aumentar as tarifas e mantida toda estrutura social que o serviço funerário tem”, diz.

CAPITALSOCIAL 

O prefeito Paulinho Serra confirma o estado de abandono dos cemitérios de Santo André mas, ao mesmo tempo, lança gigantesco ponto de interrogação sobre a eficiência e a preservação de interesses dos clientes vivos e mortos ao afirmar que, com a privatização, as tarifas seriam mantidas. Até prova em contrário, a iniciativa privada mais cuidadosa com qualidade cobra mais caro que o Poder Público sempre negligente. Como equacionar a recuperação dos quatro espaços em sintonia com o respeito ao bolso dos usuários é uma equação que exige explicação e convencimento técnico. O que se viu na vizinha Capital, que adotou o modelo, não foi exatamente isso. Há variações de preços elevadíssimas e não conta com qualquer instância de acompanhamento da privatização. Santo André também não prevê, no projeto de lei, nada que possa escrutinar tecnicamente a privatização dos mortos sem que os mortos e os vivos paguem mais o pato.

REPORTER DIÁRIO 

Segundo o projeto de lei, o governo fica autorizado a realizar a concessão dos serviços funerários, crematórios e cemitérios mediante licitação. Estão inclusos no pacote atividades como sepultamento, exumação, manutenção do ossuário, cuidados com zeladoria no espaço, limpeza e conservação da área, vigilância, exploração e administração da área. Paulo Serra também afirmou que a segurança nos espaços melhorará e os trabalhos sociais serão mantidos: “A Prefeitura vai economizar pouco, mas terá um serviço de qualidade (à população). Sempre que se discute privatização e concessão, a gente acredita que se for melhorar o serviço sem que o usuário pague mais, vale a pena. Ganhamos com escala e empresas que são do ramo. Claro que vai ter lucro, mas o município não pode ter lucro”.

CAPITALSOCIAL

A confissão tácita do prefeito Paulinho Serra sobre a ineficiência do Poder Público que ele representa há seis anos em lidar com os mortos embute uma lógica de racionalidade de ganhos de escala. Isso é muito importante e mais que factível. Está no manual de qualquer medidor de competitividade de corporações públicas ou privadas comprometidas com resultados econômicos e financeiros. Não parece haver dúvida alguma sobre os efeitos positivos da privatização dos mortos, desde que os mortos e os vivos aos quais estão ligados não sejam aviltados economicamente, além de contarem com o devido respeito no campo espiritual. E isso não consta de forma concreta, segura, do projeto de lei. Também não se pode ignorar em contraponto crítico aos ganhos de escala que o modelo de Santo André, de monopólio explicito de ocupação dos cemitérios públicos, poderá ser um tiro que sairia pela culatra ao se confundir ganhos de escala como acomodação, caso os rigores do contrato de privatização não sejam observados. Quanto à frase final, de que “o Município não pode ter lucro”, o contraponto é mais verdadeiramente defensável: “O Município não pode ter prejuízo de qualquer espécie”. 

REPORTER DIÁRIO 

Ainda segundo a redação, a administração municipal poderá abrir concessão em período máximo de 40 anos. A futura empresa homologada terá o papel de reformar os cemitérios públicos, realizar a zeladoria e modernizar toda a estrutura administrativa. A concessionário, em compensação, terá direito à isenção de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) nos espaços administrados. A proposta prevê a restauração do Cemitério Bom Jesus de Paranapiacaba, espaço tombado como patrimônio histórico; instalação de crematório no Cemitério Nossa Senhora do Carmo, na Vila Curuçá, entre outras obrigações à futura administradora.  À Prefeitura de Santo André, caberá a fabricação ou aquisição de caixões, remoção dos mortos, deslocamento de coroas nos cortejos fúnebres, e instalação e ornamentação das câmaras mortuárias.

CAPITALSOCIAL

A concessão por 40 anos parece um prazo esticadíssimo demais. Conviria, para amenizar os riscos de descontrole do processo de qualidade de atendimento, estabelecer-se mecanismos de curadoria, contando para tanto com contribuintes rigorosos. 

REPORTER DIÁRIO

De acordo com o Orçamento de 2023, aprovado pelo Legislativo no fim do ano passado, o Serviço Funerário do Município de Santo André tem receita estimada em R$ 16,8 milhões. Desses valores, R$ 6,8 milhões estão direcionados a despesa com pessoal e encargos sociais, R$ 6,3 milhões para custos correntes, o que gera um superávit corrente de R$ 3,5 milhões. Já os investimentos oriundos das despesas de capital estão previstos em R$ 260 mil.

CAPITALSOCIAL

É interessante notar que a Prefeitura de Santo André não conta na coluna de despesas efetivas nada que se refere aos quatro cemitérios a serem privatizados. Mais que isso: os redutos dos mortos rendem anualmente mais de R$ 3 milhões de receitas. A peça orçamentária registra a coluna líquida de receita, descontadas as despesas de cobrança de serviços funerários. Exceto se houver erro de informação ou de interpretação das declarações do prefeito, o que temos é um caso que combina negligência nos serviços públicos e receitas desses mesmos serviços públicos. 

REPORTER DIÁRIO

Paulo Serra negou que o governo tenha pressionado os 18 vereadores da base aliada a votarem a proposta de concessão dos cemitérios públicos a toque de caixa. No último dia 21 de março, o RD noticiou a pressão do Paço para que a proposta, protocolada no dia anterior ao Legislativo, fosse votada já na sessão seguinte, o que criou desconforto na base governista, o que fez a matéria ficar engavetada até a reunião desta quinta-feira. “Isso (a matéria) não é verdade. A gente respeita o trabalho da imprensa, mas precisa corrigir quando falha e espero que tenha essa humildade (de corrigir). A gente faz a reunião com a base (governista) todos os meses e, inclusive, estivemos ontem (segunda-feira) com os vereadores que vieram aqui e não teve nenhuma observação sobre isso e não é praxe de nossa gestão”, pontua o prefeito. No entanto, a reportagem reitera as informações publicadas, visto que ouviu vereadores da base governista, que pediram para que seus nomes não fossem publicados, a fim de não gerar maior crise com a administração municipal. Tanto que na ocasião, o presidente do Parlamento, Carlos Ferreira (Republicanos), suspendeu a sessão para uma reunião a portas fechadas com os parlamentares insatisfeitos com a situação.

CAPITALSOCIAL 

As ações de vereadores de Santo André incomodam sim o prefeito acostumado desde sempre com o ritual de sacramentação tácita e imediata de medidas do Executivo. Parece que desta vez a situação é outra. 



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