Política

LULACÁ EM NOVA VERSÃO
É UM GARRINCHA REVERSO

DANIEL LIMA - 24/07/2023

A segunda visita oficial do presidente Lula da Silva ao ABC Paulista neste terceiro mandato (a primeira foi na UFABC de baixíssima produtividade regional) remete à dimensão de quixotesca ação político-social. A tortuosidade das pernas de uma semântica revanchista mal disfarçada é o oposto das pernas miraculosas que Mané Garrincha exibia nos gramados em concertos artísticos.  

Colocar Mané Garrincha e Lula da Silva na mesma plataforma interpretativa não é exagero. Eles brilharam popularmente. Lula da Silva segue a brilhar para parte do eleitorado nacional. O que os distanciam são as pernas físicas e as pernas metafóricas tortas.  

É ingenuidade cândida dos ingênuos de fato ou falsa ingenuidade dos malabaristas do jornalismo diário de papel acreditar que quem esteve em São Bernardo foi Lulinha Paz e Amor.  

O Lulinha Paz e Amor morreu há muito tempo. Desde que foi condenado e preso por causa do Petrolão, maior escândalo já apurado no País.  

GARRINCHA ÀS AVESSAS  

Qualquer relativização do desfecho criminal do caso terá robustez argumentativa e jurídica apreciável, mas sempre se manterá distante de uma lógica irrebatível: a corrupção no setor público que vinha do passado, desde os tempos em que Lula da Silva era um líder metalúrgico, só avançou no País. E tudo indica que está rediviva com a farta distribuição de emendas parlamentes.  

Lula da Silva é mesmo um Garrincha às avessas. O craque fazia das pernas tortas a engrenagem-base para enfileirar “joãos”, como eram chamados os adversários sobre os quais passava como um malabarista. 

Lula da Silva é um prestidigitador de uma semântica esquizofrênica, que sugere paz mas prega conflito, divisão de classes, essas coisas que todo mundo sabe mas poucos dizem porque a covardia está institucionalizada no ambiente nacional.  

ESPETÁCULO FESTIVO 

Para variar, o tratamento dado ao presidente da República ontem numa casa de shows que recepcionou a festa petista em São Bernardo foi mais um espetáculo festivo do jornalismo de papel em busca de novas âncoras de financiamento público.  

Poucos resistem às intempéries das transformações tecnológicas e sociais no campo midiático, que tornam o jornalismo de papel uma constelação de fracassos. 

Mas o jornalismo de papel, mesmo da Velha Imprensa, começa a sair da enroscada em que se meteu ao corroborar com a campanha eleitoral de Lula da Silva em reprimenda à gestão de Jair Bolsonaro. Retiro do jornal Estadão os trechos mais apropriados como resumo das declarações de Lula da Silva ontem em São Bernardo. Leiam: 

 O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou de “canalha” o suspeito de hostilizar o ministro do Superior Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes no aeroporto em Roma, na Itália. Durante cerimônia de posse da nova diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC neste domingo, 23, o petista voltou a defender que o bolsonarismo não foi derrotado. “Vocês têm que estar preparados porque nós derrotamos o Bolsonaro, mas não derrotamos os bolsonaristas ainda. Os malucos estão na rua, ofendendo pessoas, xingando pessoas como aconteceu esses dias com Alexandre de Moraes, no aeroporto de Roma, que um canalha não só ofendeu ele, como bateu no filho dele”, disse. (...). O petista ainda defendeu uma harmonia entre aqueles que não possuem uma mesma opinião política. “Nós vamos dizer para eles que a gente quer fazer com que esse país volte a ser civilizado. As pessoas não tem que se gostar. Tem apenas que se respeitar. Isso é democracia”, disse. 

NO DEVIDO LUGAR  

Tudo que Lula da Silva afirma precisa ser colocado no devido lugar. Lula da Silva não é mais aquele retórico esplendoroso. A idade e algumas coisas mais que dispensam adjetivações desgastam a cognição. 

Mas, mesmo assim, Lula continua a ser um habilidoso instrumentista da linguagem. A diferença é que esquece no dia seguinte ou mesmo algumas horas depois o que disse antes. E aí é pego em contradição.  

Remeter ao passado próximo do que já disse o presidente da República seria redundante, porque são de domínio público as mitigações que Lula da Silva concede, por exemplo, a ditaduras amigas. E o encontro de ontem com os metalúrgicos em São Bernardo não foi diferente.  

Imaginar que Lula da Silva faria algo digno de conquistar um eventual Prêmio Zélia Cardoso de Mello de Arrependimento seria acreditar em Papai Noel. Ainda vou escrever mais sobre essa premiação que me despertou como fonte criativa ao assistir ao documentário sobre o fracassado Plano Collor. A então comandante da operação que esvaziou os bolsos e os cofres dos brasileiros numa patética incursão heterodoxa que o Estado escravizante sempre impõe, confessou no documentário o quanto errou. Zélia Cardoso de Mello foi sincera. 

LULA, JAMAIS  

Lula da Silva jamais admitirá que entre o metalúrgico dos anos 1970 que virou o que virou e o tripresidente deste século (sem contar o controle de Dilma Rousseff durante seis anos) o que tivemos foram retumbantes contradições.  

O Brasil de Lula da Silva comandante do Palácio do Planalto é em linhas gerais pior que o Brasil dos tempos em que Lula da Silva ocupava a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos. Já o ABC Paulista, sem sombra de dúvida não é apenas pior, é muito pior. 

Reproduzo na sequência, com contraditórios breves, o que selecionei de melhores e piores momentos do discurso de Lula da Silva ontem em São Bernardo. Acho que vale a pena acompanhar:  

LULA DA SILVA 

(...). Estou vendo algumas pessoas que conviveram comigo há muitos anos aqui. E eu fico com muito orgulho cada vez que venho a São Bernardo, e cada vez que eu tenho uma atividade no sindicato, Gleisi, porque, sem desmerecer nenhum sindicato, mas o sindicato dos metalúrgicos do ABC, junto com o Sindicato dos Bancários do ABC, junto com os metalúrgicos de outras cidades, são na verdade os sindicatos que simbolizam a luta nesse país histórica. São os sindicatos que fizeram as primeiras greves, são os sindicatos que ajudaram a derrotar o regime militar, e são os sindicatos que ajudaram a criar um partido político e fazer a coisa impossível até então, que era fazer com que um metalúrgico, saindo daqui, conseguisse ser presidente da República. 

CAPITALSOCIAL 

Lula da Silva está quase que totalmente correto, menos ao atribuir o monopólio ou a maior parcela da redemocratização do País ao sindicalismo. O movimento sindical foi uma porção do todo e uma porção menos importante, embora preciosa, de um todo que ultrapassava em muito a essência trabalhista.   

LULA DA SILVA 

Não é apenas o fato de ser presidente da República. É o fato de que nós criamos um partido, que, com apenas nove anos, nós já fomos o segundo colocado na primeira eleição para presidente. Depois nós fomos o segundo colocado na segunda eleição para presidente. Depois nós fomos o segundo colocado na terceira eleição para presidente. Depois nós fomos o primeiro colocado na quarta, o primeiro colocado na quinta, o primeiro colocado na sexta, o primeiro colocado na sétima, o segundo na oitava e o primeiro colocado em 2022. E eu estou dizendo isso porque o fato de a classe trabalhadora brasileira ter eleito um peão de chão de fábrica para presidente da República significa uma mudança muito grande na política brasileira. 

CAPITALSOCIAL 

De fato, foi uma mudança significativa na política brasileira a ascensão de Lula da Silva ao poder central. Pena que tenha se perdido na poeira do tempo e levado à sociedade, embora impute a terceiros, os fluídos divisionistas de classe engendrados nas corporações industriais tomadas por rebeldes sindicalistas. Somente os omissos desconsideram a imposição de duas classes sociais na região – a das fábricas de trabalhadores doutrinados à valorização da mão de obra mais bem remunerada do País até então e o restante, de pequenos empresários familiares que praticamente desapareceram do mapa regional não só por conta do sindicalismo de pautas reivindicatórios indistintas, mas de um governo Fernando Henrique Cardoso desastrado no calibre do setor automotivo. 

LULA DA SILVA  

Uma política extraordinária porque quem dirigiu esse país sempre foi gente da elite econômica. Ou era intelectual, ou representava banqueiro, ou representava empresário, mas trabalhador, trabalhador, trabalhador de verdade, nós somos a primeira experiência. E o que me dá orgulho? É que na nossa primeira experiência nós temos a mais exitosa experiência de governança nesse país. No primeiro mandato nosso, nós tiramos 36 milhões de pessoas da extrema pobreza e elevamos 40 milhões de pessoas a um padrão de consumo de classe média-baixa.  

CAPITALSOCIAL 

Lula da Silva nega a própria razão da ascensão social com que foi contemplado, assim como a incursão ao centro do poder. Lula sabe que sem aqueles que condena publicamente, numa operação engana-que-eu-gosto, jamais chegaria ao topo do sucesso.  Quanto aos números, Lula não perde oportunidade para manipular dados. Todos sabem que é um colecionador de fantasias que insiste na teoria de que o Brasil de sucesso nasceu a partir do primeiro mandato dele e morreu antes de Dilma Rousseff assumir.  

LULA DA SILVA  

Só na categoria metalúrgica, nós recriamos um milhão e duzentos mil postos de trabalho no Brasil inteiro.  Mais importante: nós conseguimos provar que era possível aumentar o salário mínimo todo ano. E aumentamos o salário mínimo em 74%. Mais importante: nós legalizamos a vida da empregada doméstica, que era tratada como escrava dentro das casas. E nós demos jornada de trabalho, direito a férias, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). E é importante lembrar que no tempo que o PT governava o Brasil, a gente gerou 22 milhões de empregos nesse país, enquanto a Europa desempregou 100 milhões de postos de trabalho. 

CAPITALSOCIAL 

Os números de empregos formais citados por Lula da Silva são uma fraude. Ele considera apenas os oito anos em que esteve na presidência. Descarta os seis anos de Dilma Rousseff, a quem indicou e a quem tutelou, deixando à sucessora uma bomba-relógio de gastança do segundo mandato. Só nos dois anos da maior recessão da história da região, perderam-se 96 mil empregos com carteira assinada. Quanto à legalização das empregadas domésticas, Lula da Silva não só deixa escapar o ódio recôndito de classes, “nós legalizamos a vida da empregada doméstica, que era tratada como escrava dentro das casas” como também omite que o Custo Brasil em todas as atividades também foi sentido nas residências de classe média pagadora de impostos escorchantes, que trocaram empregadas domésticas por diaristas.  

LULA DA SILVA  

Primeiro, nós temos que cuidar da geração de empregos, porque é o emprego que dá dignidade ao homem, à mulher, quando eles levam para casa o sustento das suas famílias às custas do seu suor e do seu sangue. Então nós vamos voltar a criar empregos nesse país. A segunda coisa que nós vamos fazer é que nós vamos voltar a fazer com que a massa salarial nesse país cresça e o salário mínimo aumente todo ano acima da inflação, de acordo com o crescimento do PIB. Terceira coisa que nós vamos fazer neste país: a gente vai fazer com que o povo possa voltar a comer a tal da picanha que tinha desaparecido. Eu prometi, eu prometi, tem muita gente que não sabe o carinho que o povo tem com picanha. Mas uma picanhazinha, no final de semana, com a família reunida, os amigos reunidos e uma cervejinha gelada, é tudo o que a gente quer. E vocês perceberam que a comida está baixando. Vocês perceberam que a carne está baixando. E vocês perceberam que a gente vai voltar a poder comprar mais, a consumir um pouco mais, porque é para isso que a gente nasce. A gente nasce não para sofrer, a gente nasce para viver bem. 

CAPITALSOCIAL 

Esse é o Lula da Silva dos palanques. O passado de retrocessos do PIB per capita o desmente. Mas Lula da Silva sabe, ainda, das coisas que encantam os mais humildes. Se a picanha for entregue por conta de vetores macroeconômicos, porque é disso que se trata, teremos um mote de campanha eleitoral suficientemente demolidor a eventuais desventuras. Os marqueteiros de Lula da Silva são especialistas em dourar a pílula. Lula da Silva só esqueceu que o Brasil gastador de dinheiros públicos durante os oito anos de presidência foi para o brejo. O Estado pesado e ineficiente não dá conta do recado.  

LULA DA SILVA 

A classe trabalhadora precisa dizer aos governantes desse país, só não precisa dizer para mim porque que eu sei. A classe trabalhadora quer viver bem, ela quer trabalhar bem, ela quer ganhar bem, ela quer morar bem, ela quer casar bem, ela quer criar sua família bem, quer que os seus filhos estejam em escolas de qualidade para eles poderem virarem doutor na vida. E mais ainda: a gente quer ter o direito de tirar umas férias e viajar de avião para onde a gente quiser. É para isso que a gente trabalha. A gente trabalha não é só para os outros terem aquilo que a gente produz. A gente trabalha porque a gente tem que ter o direito de comprar aquilo que nós produzimos. Se nós produzimos carro, nós queremos carro. Se nós produzimos computador, nós queremos computador. Se nós produzimos roupas, nós queremos roupas. Ora, por que nós não temos esse direito? Por que a gente não tem o direito de hoje à noite, ou domingo, a gente poder sair com a mulher e os filhos, ou a mulher sair com os filhos e com o marido, e comer uma pizza? Por que não pode? Porque não tem dinheiro? Por que não tem dinheiro se a pessoa trabalha? 

CAPITALSOCIAL 

Um Lula da Silva irreparavelmente Lula da Silva.  

LULA DA SILVA 

Então é preciso que a gente leve em conta que nós precisamos melhorar a vida das pessoas, e a vida das pessoas melhora com emprego e com salário, e salário de qualidade. É por isso que nós aprovamos uma lei e que daqui para frente a mulher que fizer o mesmo trabalho que o homem, ela tem que ganhar o mesmo salário do homem. A mulher não quer ser mais tratada como se fosse cidadã de segunda categoria. A mulher não quer ser tratada como objeto de cama e mesa. A mulher tem que ser tratada como sujeito da história e ela está onde ela quiser e ela faz o que ela quiser e participa do que ela quiser. É esse mundo que nós queremos construir.  

CAPITALSOCIAL 

Os trabalhadores industriais da região, notadamente de São Bernardo, onde a influência de Lula da Silva e do sindicalismo que representa sempre foi intensa, registram os maiores buracos de médias salariais e universo de homens e mulheres. Trocando em miúdos: as trabalhadoras industriais de São Bernardo foram ao longo dos anos discriminadas pelos sindicalistas, que controlam as fábricas. Elas ganham menos e também são proporcionalmente menos que os homens em relação a outros municípios. O machismo nas fábricas sob o controle do PT e da CUT é um machismo que não autoriza Lula a pregar discriminação sem desmoralizar-se. 

LULA DA SILVA 

Agora, vocês têm que estar preparados. Porque nós derrotamos o Bolsonaro, mas não derrotamos os bolsonaristas ainda. Os malucos estão na rua. Ofendendo pessoas, xingando pessoas, e nós vamos dizer para eles que nós queremos fazer com que esse país volte a ser civilizado. As pessoas não têm que se gostar, as pessoas têm apenas que se respeitar. Você não tem que escolher o seu vizinho. Você apenas tem que aprender a conviver com ele decentemente. Respeitando ele e ele respeitando você. Você não tem que gostar da pessoa que mora na frente da sua casa, nem ela de você. Vocês têm que se respeitar apenas. Isso é democracia. Quando você entrar num restaurante, se tem lá uma pessoa que não gosta de você, ótimo. Ela não e é obrigada a gostar, mas ela não é obrigada a te xingar, não é obrigada a te ofender como aconteceu esses dias com o Alexandre de Moraes no Aeroporto de Roma, em que um canalha não só ofendeu ele, como bateu no filho dele.. 

CAPITALSOCIAL 

O que Lula da Silva dizia no passado sobre os trabalhadores de fábricas que atuavam nas áreas administrativas, os “engravatados”,  ele diz sobre os adversários políticos, notadamente aquele que lhe retirou parte do controle eleitoral populista. Lula da Silva usa a dialética do divisionismo de classe agora sob o manto esfarrapado de aproximação possível entre os dois lados. Algo como “eu não gosto de você, mas o suporto”, ao invés de dizer “não temos porque levar ao radicalismo nossas divergências”. Lula da Silva usa um idioma de separação social mais sofisticado que no passado.  



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