O Grande ABC precisa juntar a comunidade para lutar pragmaticamente por uma causa comum. Não pode dar bola para a ideologia e deve ajudar o governo em vez de esperar que resolva os problemas. A proposta é de Cláudio de Moura Castro, economista brasileiro chefe da Divisão de Programas Sociais do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Cláudio de Moura Castro esteve no início de setembro em São Paulo para participar de seminário sobre a importância da educação no sistema de produção globalizado.
A entrevista foi realizada por meio da Internet, alguns dias depois de sua visita ao Brasil, já de volta aos Estados Unidos, por duas razões. Claudio de Moura Castro respondeu às indagações em Boston, nos Estados Unidos. Não fosse o fato de ter utilizado o aplicativo Word Perfect, enquanto nossa redação está padronizada em Word 6.0, o que provocou alguns desarranjos em acentuações, as respostas não exigiram qualquer preocupação dos editores, tal a facilidade com que o economista transfere para os dígitos todo o conhecimento prático e teórico como um dos mais importantes especialistas em educação voltada para o trabalho.
Moura Castro não conhece o projeto da Universidade do Trabalhador, antigo sonho do empreendedor Abraham Kasinski, mas aprova a ideia. Só não aprova a terminologia universidade. Prefere ensino superior.
Tecnologia e educação são irmãs siamesas no processo de desenvolvimento sustentado, tanto quanto empresas e universidade. Como o senhor observa a realidade brasileira, nesses dois aspectos que se interseccionam, numa comparação com o que acontece nos Estados Unidos e na Europa? Estamos perdendo esse jogo de goleada num momento em que globalização é palavra de ordem?
Cláudio de Moura Castro – Empresas e universidades irmãs siamesas? Em primeiro lugar, livremo-nos da palavra universidade, que não descreve uma categoria bem definida de instituições. Há universidades tão ruins quanto o pior ensino superior e outras instituições não chamadas de universidade que são iguais ou melhores do que as melhores universidades. Falemos apenas de ensino superior. Seja como for, a metáfora da irmandade siamesa é enganosa. Assim como, mesmo nos países tecnologicamente mais agressivos, há muitas empresas que não consomem tecnologia, há também muitas instituições de ensino que não produzem tecnologia, o que nada tem de errado (de fato, nos Estados Unidos, menos de 5% das instituições de ensino superior produzem pesquisa regularmente).
A produção tecnológica deveria aumentar dramaticamente, mas algo que só pode acontecer em certas instituições e em certas ilhas dentro dessas instituições. As universidades públicas brasileiras têm mais professores em tempo integral do que as americanas também públicas. Isto porque, pensava-se que todos os professores deveriam ou poderiam fazer pesquisa. Com isso consomem-se recursos que poderiam ser melhor aproveitados se concentrados naqueles que realmente têm embocadura para essas atividades. Temos um gigantesco desafio de focalizar melhor nossa produção científica e tecnológica, de tal forma a obter muito mais dos recursos nada desprezíveis que mobilizamos para tal.
Até recentemente o Grande ABC mantinha o mito de que sediava mão-de-obra qualificada. Uma bobagem ufanista porque colidia com o fato de que somente nos últimos anos as grandes empresas passaram a conhecer a concorrência internacional e começaram a atualizar o parque produtivo, ainda bastante defasado. Que sugestão o senhor daria para os empreendedores, autoridades públicas e lideranças empresariais diante da constatação de especialistas sobre a enorme dificuldade que o Grande ABC encontra para ganhar competitividade tecnológica?
Cláudio de Moura – Recebi um maço de exemplares de LivreMercado. Dando uma olhada, vejo pelas matérias apresentadas que você já tem a resposta. É juntar o povo para lutar pragmaticamente por uma causa comum. É esquecer a ideologia, ajudar o governo e não esperar que resolva o problema. Um exemplo brilhante nos foi dado pelos calçados do Vale dos Sinos, que levaram uma trombada da abertura econômica e quase levam a breca. Mas a alemoada se juntou, pôs de lado as rivalidades, pôs de lado o cada-um-por-si, arregaçou as mangas e meteu mãos à obra. Está bem adiantada a tarefa de salvar a indústria dos calçados. Acho que valeria a pena examinar com muito cuidado o processo de recuperação daquela indústria e daquela região. A Universidade de Sussex (Hubert Schmidt) fez uma monografia interessantíssima sobre o assunto.
O empreendedor Abraham Kasinski, ex-comandante da Cofap, quer construir a Universidade do Trabalhador na região, justamente com vistas à formação técnica de quem está empregado e de quem procura emprego. Como o senhor observa isso?
Cláudio de Moura – Vai na direção certa. Sem saber nada sobre o assunto, tenderia a ver a ideia com simpatia, pois quem foi empresário bem sucedido tem bom faro para essas coisas. Só não gosto do nome, mas por puro preconceito da minha parte.
O que fazer com a mão-de-obra, dezenas de milhares, que perdeu o emprego no Grande ABC desde a abertura dos portos e da globalização?
Cláudio de Moura – Só prosperidade e crescimento criam emprego. Há que se preservar e desenvolver a atratividade econômica da região. Isto se faz facilitando a vida das empresas. A paz social é um dos facilitadores mais importantes. É preciso contar com o pragmatismo e a maturidade do movimento sindical do Grande ABC. É preciso um pacto de tornar a região atraente. Não é o caminho querer dificultar a vida de outras regiões para que fiquem igualmente ineficientes, caras e hostis ao crescimento em um mundo globalizado e de competição satânica. O caminho é fazer o Grande ABC mais atrativo, capitalizando na experiência e nas vantagens de escala e de infra-estrutura. Afinal, a indústria não se localizou na região por engano, por equívoco.
Não existe algo de muito equivocado e grave num País em que 2,8 milhões de inativos e aposentados do setor público absorvem mais recursos públicos do que a Educação Básica de 38 milhões de crianças e jovens de 7 a 17 anos em idade escolar?
Cláudio de Moura – É equivocado os perdedores desse sistema não lutarem para a eliminação dessa distorção. São os votos dos deputados que decidem essas questões. E lembremo-nos de que os deputados não podem deixar de ouvir seus eleitores. Onde está o apoio para as mudanças constitucionais que são necessárias para alterar esta situação?
Em 1950, Brasil e Alemanha Ocidental tinham praticamente a mesma população — pouco mais de 50 milhões de habitantes — e hoje são 65 milhões de alemães, dos quais 20% com menos de 15 anos de idade, e nós somos 160 milhões, com 34% com menos de 15 anos. Vamos demorar muito para alcançar o PIB alemão, que é três vezes maior do que o nosso, considerando-se que a educação está na base do desenvolvimento sustentado e que vivemos no período um processo de explosão demográfica com repercussões em todo o conjunto da nação?
Cláudio de Moura – A explosão demográfica, felizmente, foi contida pela própria decisão das famílias de reduzir voluntariamente o número de filhos. Este problema se resolveu espontaneamente. Mas há que se ter o que repartir. Não nos esqueçamos de que a Alemanha era um dos países mais ricos do mundo antes de uma guerra que apenas destruiu parte do capital físico. A educação e a qualificação profissional do povo não ficaram intactas com a guerra, mas sobrou muito para reconstruir o país. Nós tivemos que começar quase do zero e, portanto, a trajetória é mais longa. Mas até que não nos saímos mal, pois conseguimos um crescimento espetacular no mesmo período. Só que por razões políticas e por desleixo com o desenvolvimento da educação, avançamos menos do que precisaríamos nesta área dos recursos humanos e agora estamos meio travados.
O senhor acredita que o Brasil já atingiu o patamar de conscientização crescente de que a educação básica de boa qualidade é um dos poucos atalhos disponíveis e condição indispensável para redução das desigualdades sociais? Já estamos entendendo que educação, antes de ser política social, é necessidade estratégica?
Cláudio de Moura – O grande avanço dos últimos cinco anos foi a descoberta pelo povo brasileiro de que a educação ia mal e que o ator mais importante para consertar isso não era o governo, mas o próprio povo.
Nos Estados Unidos, os pais hipotecam seus imóveis e obtêm financiamento a 4% ao ano para mandar os filhos para a universidade. Por que no Brasil estamos tão presos à gratuidade do ensino universitário público, usufruído em larga escala por filhos de classe média, enquanto os filhos de pais de menores rendimentos salariais têm de pagar escola privada?
Cláudio de Moura – Vivemos em um país onde os ricos estão satisfeitíssimos por receber educação cara e gratuita e os pobres não lutam para que os ricos passem a pagar e eles, pobres, possam receber bolsas e outros subsídios para estudar. A nossa esquerda parece ter como meta favorita defender os privilégios dos ricos e da classe média (não só em educação mas em saúde, habitação etc). Ensino pago virou assombração. Todos têm medo até de falar no assunto.
Como se explica um aparente paradoxo de que o Brasil ocupa o 46º lugar no mundo em termos de competitividade global e está em quinto lugar em atração de capitais externos, atrás apenas de Estados Unidos, China, Grã-Bretanha e França?
Cláudio de Moura – Para quem está na frente, o avanço subsequente se torna mais difícil, pois tudo que poderia ser feito com facilidade já o foi. Quem está em 46º tem erros e deficiências muito mais óbvias. Ao eliminá-las, o progresso pode ser muito mais fácil e dramático. É um novo mercado a ser explorado, é um gigantesco país para desbravar. A indústria automobilística veio para cá nos últimos anos porque o mercado europeu está saturado e o asiático vai pelo mesmo caminho. É o mesmo princípio que faz os gaúchos largarem suas pequenas propriedades já bem trabalhadas para tentar a sorte no planalto brasileiro plantando soja.
Abrimos mesmo demais o comércio internacional, considerando-se que a tarifa média de importação caiu de um patamar de 55% em 1987, no final do governo Sarney, para nível de 14% desde julho de 1993?
Cláudio de Moura – Demais ou de menos? Ideal seria uma abertura a conta-gotas, calibrada setor a setor, de tal forma a estar sempre no limite do que espicaça a concorrência sem matar os mais frágeis. Mas abertura é um processo político onde há que se aproveitar o momento e o susto. As vantagens de aproveitar a embalagem política e econômica militam contra essa precisão cirúrgica. Muitos amigos meus ligados à indústria reclamam contra o brusco que foi a abertura. Mas não creio que fosse possível ser de outra forma. Na verdade, não tivemos aqui a devastação da indústria que se deu na Argentina ou no Chile. Isso para não falar na Rússia e outros países do Leste Europeu, onde a abertura foi muito mais brutal.
Como conseguiremos reduzir o fosso que separa a produtividade brasileira da norte-americana? Alguns dados são alarmantes, já que no varejo de alimentos alcançamos apenas 14% dos americanos, no processamento de alimentos vamos a 18%, em autopeças chegamos a 22%, na construção de residência o índice é 35% e nas montadoras de veículos a nossa média de produtividade é de 36%. Esses dados são de Willian Jones, consultor da McKinsey & Co.
Cláudio de Moura — Não devemos pensar na diferença absoluta de produtividade que caracteriza as diferenças entre ricos e pobres. Mais que pertinentes, os ganhos recentes têm sido impressionantes. Note-se que tivemos enormes progressos em alguns setores como o automobilístico, onde em certas áreas damos hoje exemplo para os Estados Unidos. A horrenda greve da General Motors nos Estados Unidos foi em grande medida causada pela tentativa da matriz americana de implantar lá o que aprenderam nas suas fábricas brasileiras. O crescimento dos programas de Qualidade Total e ISO 9000 não tem precedente no mundo. Mas, obviamente, falta muito e qualquer complacência diante dos progressos recentes seria fatal.
O economista Gary Becker, Prêmio Nobel de Economia de 1992, afirma que o investimento na qualificação de pessoal fornece o dobro do retorno para uma empresa, mais do que investimentos em máquinas e instalações. Até que ponto essa avaliação é válida para um País como o Brasil, que viveu no berço esplêndido da falta de investimentos tecnológicos durante o longo enclausuramento econômico?
Cláudio de Moura – Gary Becker está coberto de razão no caso do Brasil. Investir em capital humano tem que ser o foco do nosso esforço. E, naturalmente, com o tipo de tecnologia que se usa hoje é fácil comprar o equipamento e difícil usá-lo com competência. Isso só se obtém com gente dedicada e bem preparada. Em outras palavras: grande parte do investimento em tecnologia está nas pessoas.
O mesmo economista diz que recomenda para o Brasil a redução de encargos trabalhistas e do custo que considera exorbitante de demissões, permitindo que o mercado de trabalho seja mais flexível e as empresas tenham mais incentivos para contratar. Também José Pastore, um dos maiores especialistas nacionais da relação entre capital e trabalho, defende esses conceitos. Qual é o seu posicionamento?
Cláudio de Moura – Há mudanças que dão mais flexibilidade e fluidez aos mercados, sem implicar em perda fiscal. Há muita coisa para ser feita aqui, distanciando o Brasil de sua tradição legal de Estado fascista. Temos mesmo incentivos embutidos para demissões desnecessárias e uma rotatividade excessiva da mão-de-obra pouco qualificada. Mas há outras mudanças que baixam o custo da mão-de-obra, a custo de reduzir a receita de impostos, algo que tem de ser feito com cuidado, pois temos gastos inevitáveis e um déficit fiscal considerável.
Recentemente o senhor disse que o ensino do Segundo Grau é uma relíquia do passado, tem disciplinas demais e assuntos demais dentro de cada disciplina. E que o conteúdo está muito distanciado da vida moderna. Dá para explicar melhor essa avaliação?
Cláudio de Moura – Precisamos de uma escola que ensine a ler melhor, a entender o que se leu, que ensine a escrever claramente, que ensine a pensar, que prepare os alunos para examinar os problemas à sua frente e equacioná-los corretamente. Pouco ajuda decorar os reis de França ou as datas memoráveis da pátria amada. Entender o mundo de hoje porque se entendeu a história é o que interessa. Com um currículo abarrotado de disciplinas e cada disciplina abarrotada de informações, não dá tempo para cultivar a mente, para aprender a usar este instrumento tão fantástico que é a nossa inteligência. Não precisamos de currículos detalhados ou de sábios que nos digam exatamente o que é preciso aprender. Precisamos simplesmente de uma escola que focalize assuntos onde a cabeça dos alunos cresça e se desenvolva. Pode ser Física, Literatura Comparada, depende muito do perfil dos alunos. Mas tem de ser pouco e examinado em profundidade, sem decoreba e com muito exercício que puxa pela cabeça. Só.
Como estão as negociações de empréstimo de centena de milhões de dólares que o MEC pediu ao BID para avançar mais rapidamente na reforma do ensino profissionalizante? Há previsão, do MEC, de demanda futura de cerca de 250 mil novos técnicos por ano no Brasil, em proporção semelhante ao que acontece na Alemanha e em outros países de economia moderna. Isso requer um milhão de alunos em nossas escolas técnicas, contra 100 mil hoje no sistema federal.
Cláudio de Moura – O empréstimo do BID serviu de catalisador para destravar um ensino técnico que estava congelado há várias décadas. A operação do BID já foi aprovada e está avançando dentro dos cronogramas. Não apenas permitirá aumentar o número de graduados do ensino técnico, mas, principalmente, focalizar o ensino nos mercados de trabalho locais. Aumentará também a densidade tecnológica do ensino existente que ficou muito a reboque da parte acadêmica das escolas que preparavam para o vestibular, em vez de preparar para o mercado de trabalho.
Como o senhor vê, por outro lado, o papel atual de organismos internacionais de crédito como o FMI, que acaba de socorrer uma Rússia caloteira e que não providencia a lição fiscal de casa, enquanto países emergentes precisam de investimentos urgentes para crescer?
Cláudio de Moura – É fácil ver os problemas dos outros como questões técnicas e os nossos como resultante de problemas políticos condicionados pelas dificuldades com os deputados, com os partidos, com os sindicatos. Os mesmos funcionários americanos que pregam para Rússia ou Brasil soluções simples (mas politicamente impossíveis) se esquecem de que no seu próprio país os governantes têm grandes dificuldades para aprovar leis impopulares e convencer a oposição. A Rússia dá calote não porque tem vocação para o calote, mas porque a governabilidade do país está em frangalhos. Pela mesma forma, o Brasil não conseguiu aprovar as reformas fiscais, previdenciárias e do funcionalismo que são necessárias para tirar o País do buraco fiscal/monetário. Mas, vendo a coisa por outro lado, recebemos créditos enormes do Banco Mundial e do BID, que são concedidos em prazos muito mais longos e dirigidos para áreas com muito maior promessa de crescimento do que os créditos tapa-buraco do FMI, que vão para quem está mal das pernas. A Rússia recebe muito menos créditos para o seu desenvolvimento econômico por estar em piores condições administrativas para lidar com as complicações desses empréstimos.
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10/05/2024 Todas as respostas de Carlos Ferreira