Se o Plano Diretor de Santo André, tratado como segredo, for o que deseja o Clube dos Construtores do Grande ABC, o futuro de ocupação urbana será uma Sodoma e Gomorra imobiliária. A verticalização despudorada vai acrescentar mais estorvos no dia a dia da população. O meio ambiente que se dane – esse poderia ser o mote dos construtores.
A Prefeitura de Santo André não sabe ou finge não saber distinguir densidade de verticalização, conceitos que fazem a diferença entre qualidade de vida e destroços de vida.
Já os mercadores imobiliários sabem muito bem a diferença. A verticalização pretendida é extremamente lucrativa para quem quer construir. E desastrosa para quem mora e trabalha.
Não faltam bairros nas cidades da região que cederam à verticalização falsamente valorizadora de imóveis. Nada compensa a deterioração da qualidade de vida. O Bairro Jardim, em Santo André, é um exemplo clássico. São Bernardo caminha para algo semelhante, mas não tão grave, no Jardim do Mar e vizinhança. São Caetano é um amontoado de torres residenciais.
Mas tudo isso é fichinha perto do que pretende a Família Bigucci à frente do Clube dos Construtores.
FAMÍLIA BIGUCCI
É isso mesmo: quem está pretendendo fazer de Santo André e dos demais municípios locais uma mistura de Sodoma e Gomorra urbanística, com singela e sinceridade dos exploradores de espaços imobiliários, é o próprio presidente da Acigabc -- a Associação dos Construtores e Imobiliária da região. Trata-se de Milton Bigucci Júnior, filho e sucessor de Milton Bigucci.
Chamo a entidade de Clube dos Construtores porque é disso que se trata. É um restrito grupo de empresários que há mais de três décadas obedece ao comando da Família Bigucci, conhecida entre outras facetas pela industrialização de imóveis que entrega e também por ter participado da Máfia do ISS em São Paulo. Também foi condecorada pelo Ministério Público do Consumidor de São Bernardo como campeã regional de reclamações.
Ficar fora dos interesses do Clube dos Construtores é um erro estratégico dos construtores e incorporadores de grande porte que têm relações mais que íntimas com os poderes públicos – inclui-se aí, além de prefeitos, também o Sistema Judiciário.
O mesmo Sistema Judiciário que fez vistas grossas ao Escândalo do Marco Zero da Vergonha, um complexo de torres comerciais e residenciais denunciado por CapitalSocial com provas contundentes, mas que foi simplesmente engavetado.
Milton Bigucci, pai, não faz cerimônias em entrevistas. Diz com clareza meridiana que mantém estreita amizade com representantes de tribunais de Justiça.
PLANO SODOMA E GOMORRA
O Plano Diretor de Santo André está em vias de ser apresentado e aprovado. Apresentado e aprovado porque é um jogo de cartas marcadas. Talvez sofra alguma investida de moralidade e ética se for obstado por agentes da sociedade inconformados com a impetuosidade com que tem sido consumado nos corredores da Prefeitura de Santo André.
Ainda recentemente, como prova de que a Administração de Paulinho Serra e o mercado imobiliário se dão muito bem, dois representantes do setor foram homenageados pelo Legislativo com os títulos de “Cidadão Honorário de Santo André”. São os casos das duas maiores construtoras da região – da Família Bigucci e da Família Patriani. A diferença que separa as duas empresas é que a segunda não tem ficha corrida no Ministério Público nem no Judiciário.
É inacreditável que o Plano Sodoma e Gomorra do setor imobiliário de Santo André (e a vontade de esticamento à região como um todo) está no site da Clube dos Construtores. Descobri por obra do acaso, num rastreamento na Internet que costumo fazer em supostas horas mortas de finais de semana.
ENTREGANDO A RAPADURA
A matéria postado pela entidade tem as digitais de autoria do jornal Diário Regional. O Clube dos Construtores a reproduz possivelmente sem se dar conta de que há uma intervenção elucidativa e de bom senso do prefeito Orlando Morando, de São Bernardo. Tudo ocorreu durante um evento na semana passada.
A intenção de Milton Bigucci Júnior e dos dirigentes do Clube dos Construtores é que Santo André e a região como um todo sejam uma espécie do Balneário de Camboriú, que tem quase todas as 10 maiores torres residenciais do País. Um ABC Paulista que supostamente lembraria Camboriú é algo impensável. Seria mais prudente imaginar algo como a desativada mas emblemática penitenciária de Carandiru como destino dos prevaricadores ambientais.
Para que não fique dúvida, vou transcrever na íntegra o texto do jornal Diário Regional, recentemente postado sob o título “Acigabc condena burocracia e elege Camboriú como exemplo para planos diretores da região”. Tome um calmante antes da leitura:
PROJETO CAMBORIÚ
“No momento em que a Capital e parte dos sete municípios da região preparam a revisão de seus planos diretores, o presidente da Associação de Construtores, Imobiliárias e Administradoras do ABC (Acigabc), Milton Bigucci Júnior, citou o plano do Balneário Camboriú, localizado no litoral catarinense, como exemplo a ser seguido na atualização do instrumento de planejamento urbano pelos gestores locais. O executivo também condenou a burocracia como obstáculo à aprovação de empreendimentos e, por extensão, à expansão imobiliária.
PROJETO CAMBORIÚ
“Nós, como representantes do mercado imobiliário, queremos boas cidades para viver, como mobilidade e bons serviços. Nesse sentido, os bons exemplos precisam ser citados, como é o casa de (Balneário) de Camboriú. Quem conhece aquela cidade sabe que, há 40 anos, era praticamente uma vila. Hoje é uma potência. Evidentemente, o ABC não tem praias. Porém, exemplos como esse, de legislações municipais modernas capazes de trazer investimentos e desenvolvimento, devem ser seguidos” – afirmou Bigucci Júnior, durante a abertura do “Construindo o Grande ABC”, congresso anual realizado pela Acigabc que reuniu, nesta quinta-feira (26), cerca de 200 empresários e profissionais do mercado imobiliário da região para discutir os rumos do setor.
PROJETO CAMBORIÚ
A referência ao município catarinense não é obra do acaso. Balneário Camboriú vive verdadeiro boom imobiliário. Desde abril de 2022, ocupa o posto de cidade com o metro quadrado mais caro do Brasil, segundo dados do índice FipeZap, e recebeu os dois empreendimentos residenciais mais alto do país. O movimento reflete a aprovação, em 2006, de um plano diretor que permitiu a verticalização extrema da Praia Central, a principal do município, ao mesmo tempo em que determinou a preservação das demais. A ocupação obrigou a prefeitura a alargar a faixa de areia da Praia Central, obra concluída no final de 2021 e que causou polêmica.
PROJETO CAMBORIÚ
Bigucci Junior ressaltou ainda que a demora na obtenção das licenças tem prejudicado o setor. “Por incrível que pareça, em 80% dos casos, demora-se mais tempo para obter a documentação do prédio (alvarás, Habite-se) do que para construí-lo, disse. “Temos de mudar isso: digitalizar, usar a tecnologia da informação e inteligência artificial para agilizar a aprovação dos empreendimentos. A burocracia é o principal mal deste país, porque muito dinheiro é jogado fora nisso”, prosseguiu.
No início deste ano, Bigucci Júnior atribuiu o aumento de 700% no total de lançamentos em Santo André na passagem de 2021 para 2022 à desburocratização do município na aprovação de projetos e à legislação mais favorável para o setor, o que reduz o tempo de aprovação dos empreendimentos.
PROJETO CAMBORIÚ
Prefeito de São Bernardo, município anfitrião do evento, Orlando Morando (PSDB) reconheceu que cabem às prefeituras do ABC “algumas lições de casa” no que se refere à legislação, mas ponderou que os serviços municipais precisam comportar o crescimento da população. “Não se faz uma cidade com urbanismo perfeito apenas olhando para o Plano Diretor. Antes, a gente tinha quase a convicção de que o proprietário deum imóvel de 100 metros quadrados não dependeria do SUS (Sistema Único de Saúde), mas essa realidade mudou”, afirmou.
Morando também relativizou o modelo de verticalização de Balneário Camboriú. “É preciso levar em contar q1ue a maioria dos proprietários daqueles imóveis é de moradores de veraneio, o que não impacta nas redes de saúde, educação e transporte da cidade. Por outro lado, quem compra um imóvel em São Bernardo mora nele. Outro ponto é que Balneário Camboriú não precisou investir em transporte coletivo de massa, em corredores”.
PROJETO CAMBORIÚ
O prefeito reconheceu, no entanto, que a atual lei de zoneamento de São Bernardo é “equivocada”, porque é baseada nos Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs), títulos imobiliários emitidos pela Prefeitura e adquiridos pelas empresas do setor quando constroem além dos limites da legislação. Morando destacou que a prefeitura contratou uma consultoria para auxiliá-la na revisão. O passo seguinte é a realização de audiências públicas e, depois, o envio à Câmara do projeto, que deve ficar pronto em 2024.
MAIS QUE MERCADO
A compreensão do significado urbanístico de verticalização insana pretendida pelo Clube dos Construtores já foi explicada neste espaço várias vezes, mas não custa repetir, e mais uma vez com o conhecimento do urbanista Sérgio Magalhães. Ele presidiu o Instituto de Arquitetos do Brasil entre 2012 e 2017 e escreveu recentemente mais um livro sobre a saúde urbana nas grandes metrópoles. Publicado pela Editora Rio Brooks, a obra “Reinvenção da Cidade – Interação, Equidade, Planeta” ressalta os principais desafios dos espaços urbanos contemporâneos, sugere caminhos para enfrentá-los e defende o coprotagonismo das cidades no desenvolvimento do País. Perguntado pela Revista Projeto sobre o futuro do País nesse campo, Sérgio Magalhães foi enfático.
REVISTA PROJETO – São elencados três pontos-chave para que se alcance a melhoria urbana – interação, equidade e sustentabilidade. Então, pode-se dizer que é uma reestruturação (ou como se afirma, uma reinvenção) de modo de vida, de consciência: portanto, essa nova substância injetada no extrato social, em massa, seria um pivô a ser refletido na própria cidade (como um espelho), para enfim alcançar a tal reinvenção urbana. Gostaria que comentasse essa engrenagem.
SÉRGIO MAGALHÃES – Esse é o grande desafio. O que fiz é uma contribuição para que a cidade brasileira possa corresponder aos nossos tempos com mais igualdade, atenção ao planeta, preservando sua condição existencial como local para interação, e que possa constituir, tão logo, uma pauta política, para que seja tratada convenientemente – coisa que não tem sido. Pelas condições de hoje, em que 85% da população brasileira mora em cidades (são mais de 170 milhões de moradores urbanos), nas cidades há desigualdade gritante em infraestruturas, serviços públicos, equipamentos, moradia, onde tudo se reflete tão fortemente na redução da potencialidade do país (e das pessoas). Então, inserir a questão urbana na pauta política brasileira, a mim me parece ser essencial. O livro tem essa enorme pretensão: ajudar a alertar para a necessidade de construí-la. O livro também tem a humildade de considerar o que ele está apresentando é algo pequeno, em face desse grande desafio, pois, além das três principais partes do livro, conforme citado, gostaria de destacar que, na minha compreensão, o Brasil que está patinando há décadas, e cujo desenvolvimento é muito menor que o necessário para inseri-lo no contexto contemporâneo mais justo e com suas dimensões continentais, vai continuar patinando, se não der atenção grande ao seu sistema de cidades. No livro, chamo a atenção para o fato de que, há décadas, estamos subjugados pela hegemonia financeira, e para muitos que veem a desigualdade de renda crescer, é dado como condição para o desenvolvimento de cidades o crescimento da economia -- o que a pandemia, ou a crise financeira de mercados de 2008 demonstrou que não é verdade. Então é interdependente a saúde, a economia, a política, a cultura, a cidade, o planeta. Todos eles se intercomunicam e é desta comunicação que se pode chegar a uma solução adequada aos nossos tempos – afirmou o urbanista.
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02/12/2024 MEXER DEMAIS PODE PROVOCAR ESTRAGOS