O locutor da Globo ainda modulava os decibéis com que comemorou o centésimo gol de Rogério Ceni domingo em Barueri contra o Corinthians quando me dirigi a dois dos meus filhos ao meu lado, no sofá da sala, e sugeri resignadamente que a diretoria do Corinthians deveria ter preparado um cartão de prata para homenagear o maior goleiro-artilheiro de todos os tempos. Quase fui linchado.
Eles, Dino e Lara, ficaram indignados. Quarenta e oito horas depois, pelo menos o Dino já concordava comigo. Algumas horas depois, leio na Internet que Andres Sanches, presidente que mais revolucionou o Corinthians, admite que ajudou a botar fogo demais na canjica da rivalidade com o Tricolor. Ainda bem. Porque a continuar nessa toada, teremos um caso típico de xiitas e sunitas. Uma barbaridade.
Mas, voltando ao cartão de prata, falei com seriedade, embora com baita dor no coração.
Rogério Ceni é exemplo permanente de meritocracia que cito aos meus filhos. Ele é mais uma estrela do futebol brasileiro que alia ao talento natural a transpiração de quem quer sempre a perfeição. Zico não ficava duas horas depois do treinamento tentando de fora da área acertar uma camisa esticada no ângulo da trave superior porque sofria das bolas. Ele queria mesmo era enfiar a bola no ângulo, para repetir o lance em dias de grandes jogos.
Hortência, a inigualável Hortência, virava horas pós-treinamento arremessando de todos os lados, solitária.
Pelé treinava incansavelmente domínio de bola. Tantos outros craques não se fiaram jamais na habilidade natural que os deuses do futebol reservam a poucos.
Faltou um cartão de prata do Corinthians para Rogério Ceni porque a rivalidade do futebol ainda não foi compreendida em sua imensidão de contraditórios.
Um cartão de prata para Rogério Ceni, além de meritocrático, amenizaria a dor alvinegra com marca histórica.
Não foi assim, ao transformar agressão em adoção, que a torcida do Palmeiras fez do debochado “porco, porco” dos adversários o grito de guerra que lava a alma nas arquibancadas? Isso, quando não cantam “festa no chiqueiro”.
Faltou um cartão de prata do Corinthians para Rogério Ceni porque a equipe que conduz o marketing alvinegro, sob a batuta do competentíssimo Luis Paulo Rosenberg, provavelmente deixou-se levar pelo embalo de um separatismo irracional. Ou quem sabe porque temia a repercussão do ato junto aos torcedores organizados sempre mais rebeldes, mais hostis.
Já imaginaram que destaque teria a entrega do cartão de prata para Rogério Ceni logo após a comemoração do centésimo gol, torcida em delírio, árbitro pronto para reiniciar o jogo? Um rival indigesto do Tricolor resolve reconhecer a competência do goleiro adversário numa marca mundial?
Nem sei como brotou essa ideia naquele momento em que meu coração chorava porque via ali, na televisão, realizada uma profecia que proferira um mês antes à minha filha. Sim, disse à Lara que desconfiava seriamente de que Rogério Ceni faria o gol 100 contra nós. Como disse lá atrás, no Campeonato Brasileiro de 2007, que o Corinthians seria rebaixado se dependesse do resultado da última rodada contra o Grêmio, em Porto Alegre. A última rodada chegou fatal.
Maldita boca maldita. Preciso aprender a ficar calado em determinadas situações. Mas não posso dar mau exemplo aos meus filhos. Fiz deles torcedores fanáticos, desses que não perdem um jogo sequer, mas também não deixo escapar oportunidade para meter o futebol no meio de uma conversa que sirva de exemplo a outras coisas.
Como foi o caso daquela fatídica tarde-noite em que o Corinthians perdeu do Grêmio e se viu rebaixado à Série B. Olhei para eles com uma vontade imensa de chorar e lhes disse com toda seriedade do mundo: a vida imita o futebol, basta se deixar apequenar para sofrer as consequências.
O Corinthians perdeu uma grande oportunidade de ser ainda maior do que é, um digno referencial para o centésimo gol de Rogério Ceni. Faltou o cartão de prata.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André