Pego carona num temário providencial da Editoria de Esportes do Diário do Grande ABC para ir um pouco além. Basicamente o Diário do Grande ABC tem exposto que técnicos de futebol dos times da região não contam com liberdade para indicar e solicitar a contratação de jogadores. Que recebem aleatoriamente insumos com os quais vão trabalhar. Santo André e São Caetano são casos específicos. O São Bernardo quebrou a cara com os jogadores sugeridos pelo então treinador da equipe, Ruy Scarpino. Essa realidade é lugar-comum no Brasil. Cada vez mais os treinadores mandam menos. Dirigentes e empresários do ramo da bola ditam as regras.
O resumo de minha ópera é o seguinte: técnico de futebol deve ser tratado como executivo de uma empresa. A liberdade é condicionada às responsabilidades e aos resultados. Fora disso, é loucura. A experiência prática manda dizer que dirigente que se entrega de corpo e alma aos desejos dos treinadores cai do cavalo. Ouvi-los é uma coisa, atendê-los no que há de mais premente, também, mas entregar-lhes a condução da montagem ou reestruturação de uma equipe é estupidez. Eles se sentem poderosos demais. Até chantageiam as equipes. Ou lhes dão liberdade total, ou a engrenagem enrosca. Quando não largam tudo por conta de um contrato melhor.
Senti olhares de reprovação senão de desdém quando nos primórdios da composição do clube-empresa que passaria a gerir o destino do Ramalhão, numa reunião de acionistas, sugeri que membros da comissão técnica, mais especificamente o técnico, passasse por encontros quinzenais com representantes dos acionistas. Ninguém me deu bola porque estavam de olho em contatos privilegiados com os treinadores ou não acreditavam na ideia. Quebrar convenções e suprimir barreiras culturais no mundo da bola são exercícios exaustivos e geralmente inúteis. É melhor deixar como está.
Aqueles encontros sugeridos não limitariam os poderes do treinador. Ao contrário. Como é especialista ou supostamente especialista, nada melhor para dirimir dúvidas, silenciar especulações, desmontar maquinações do que explicar o andamento dos trabalhos da comissão técnica. Quem tem poder de convencimento pela competência não pode temer nada em formato de prestação de contas.
Há muito tempo futebol deixou de ser uma brincadeira de meio de semana e de final de semana. Os investimentos e os custos aumentam cada vez mais. Não é sensato que apenas um homem, contratado geralmente em circunstâncias opressivas e demitido a qualquer tempo também em situações de estresse, mande e desmande na contratação e dispensa de jogadores.
Técnicos de futebol devem dirigir as equipes. É claro que necessariamente não devem ser excluídos das negociações. Eles são homens da bola, não homens de negócios. É fácil listar jogadores com os quais se pretende contar numa competição. Difícil mesmo é mensurar os custos das operações em redes de interesses cada vez mais intrincadas.
Há agentes de jogadores, os chamados empresários de futebol, em volume cada vez maior. Não é nada fácil conhecer os meandros da bola fora dos campos. As relações de confiança demoram a ser estabelecidas e nem sempre deixam boas recordações. Treinadores com liberdade demais costumam aproximar-se pecaminosamente desses agentes, privilegiando-os e consolidando vícios.
Vou muito além de uma espécie de prestação de contas quinzenais dos treinadores. O exemplo do Barcelona, o melhor time da atualidade, que conta com oito dos 11 titulares formados nas equipes de base, é ilustrativo: o profissional que vai cuidar da equipe precisa definir o sistema de jogo conforme prerrogativas filosóficas e de marketing do clube contratante.
O Barcelona não aceitaria um treinador defensivista para cuidar de suas estrelas. Seria a violação de uma longa história e, mais, de toda a potencialidade do grupo de jogadores com que pode contar. Aliás, o Barcelona só é essa maravilha porque, antecedendo a materialidade da equipe, definiu e criou condições para a execução de um plano tático dentro de campo.
Da mesma forma que uma empresa convencional define diretrizes para conquistar a clientela, um time de futebol precisa contar como planejamento tático interativo, que envolva categorias de base e a equipe principal, de modo a evitar solavancos no aproveitamento de talentos técnicos. O circuito virtuoso não é obra do acaso. Aliás, é o que o Flamengo de Vanderlei Luxemburgo começou a moldar. Parece bobagem para quem não é do ramo, mas se a equipe principal adota o sistema 3-5-2, as categorias imediatamente de base devem seguir o figurino. Por que? Porque essa será uma personalidade tática que determinará sobretudo com quais características de atletas será conveniente trabalhar no longo prazo.
Há diferenças abissais entre equipes que jogam no 4-4-2 e no 3-5-2. Mudanças circunstanciais de um esquema para outro durante determinado jogo, como o do último sábado em que Muricy Ramalho surpreendeu o São Paulo no segundo tempo, são exatamente isso, mudanças circunstanciais. Quem optar por um 4-4-2, por exemplo, e contratar alas para atuar como laterais, cometerá suicídio. Quem optar pelo 3-5-2 e contratar laterais para atuar como alas, desandará em fragilidades. O São Paulo de Muricy Ramalho foi tricampeão brasileiro jogando num mesmo sistema, o 3-5-2. Mudaram-se jogadores, mas mantiveram-se os pontos cardeais do sistema tático.
Por isso, equipe de competição que se preza conta com dirigentes que sabem o que querem em termos estratégicos e por isso mesmo devem escolher treinador que tenha vocação doutrinária explicitada no sistema de jogo.
O que quero dizer com isso é que técnico de futebol não pode ser tratado como salvador da pátria nem como vilão em situações pontuais. Seu trabalho precisa ser monitorado, avaliado, analisado, debatido, ao longo do contrato. A precariedade das relações entre clubes e treinadores decorre de uma realidade histórica forjada pela cultura do imediatismo, da qual a mídia é uma das principais responsáveis na sanha compulsória à espetacularização.
As relações corporativas das equipes brasileiras, de maneira geral, estão ancoradas nos tempos em que futebol era apenas diletantismo. Conceitos gerenciais de empresas convencionais fariam muito bem às equipes também dentro de campo. A modernidade já chegou na estrutura administrativa de vários clubes nacionais, mas ainda não superou a barreira do tradicionalismo que começa e termina nos vestiários.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André