Não é fácil para qualquer equipe, quanto mais para uma equipe com o currículo do São Caetano, o melhor time da primeira década deste século entre os clubes não-grandes do futebol brasileiro, resistir tanto tempo na zona de rebaixamento da Série B sem entrar em parafuso. Foram 75 dias e 76 noites de absoluta escuridão classificatória. Um calvário e tanto, convenhamos. E eis que conseguiu sair do atoleiro, embora a estrada ainda esteja recheada de pedregulhos.
Está certo que a chegada do técnico Márcio Araújo deu novo ânimo ao elenco, encaixando as peças mais fora do que em campo, mas isso é apenas parte do enredo. A estrutura do clube foi colocada em xeque. Os nervos à flor da pele, o assassinato de um dirigente num caso de segurança pública comum na metrópole, o peso da tradição, a insegurança de um elenco de valores semelhantes entre titulares e reservas, o distanciamento da torcida — tudo isso e muito mais levaram o São Caetano a permanecer numa pasmaceira técnica que só se rivalizava com o desastre contínuo nos resultados.
Pois foi exatamente quando a situação parecia mais inquietante, com a boia de salvação do rebaixamento subindo de nível e sugerindo que a marca de 45 pontos seria insuficiente como rota de fuga, eis que o São Caetano engata uma série de bons resultados.
Alcançar 70% de aproveitamento em nove jogos seguidos é uma façanha numa competição na qual o nível das equipes, excetuando a bem mais qualificada Portuguesa e os menos competitivos Duque de Caxias e Salgueiro, tem separação estreita de valores.
São raríssimos os casos na Série B do Campeonato Brasileiro — não consigo me lembrar de nenhum, por mais que puxe pela memória — em que uma equipe consegue safar-se da degringolada do rebaixamento ou alcança os festejos de classificação entre os quatro primeiros em arrancadas memoráveis. Tudo isso se deve à banda estreita que separa os melhores times dos times de rendimento médio e estes dos times mais modestos.
Diferentemente, portanto, da Série A, onde o batalhão de choque raramente encontra invasores, a zona de classificação à Sul-Americana pode ser esmiuçada antes das primeiras rodadas e os times rebaixáveis também não fogem de uma lógica de capacidade de investimentos.
Aprendizado doloroso
As quedas de grandes equipes em temporadas passadas devem ser interpretadas como aprendizado dos primeiros tempos do campeonato de pontos corridos ou de estruturas em decomposição que, mais dia, menos dia, acabariam por ruir de vez. Não existe rebaixamento por acaso.
Os rebaixamentos são o desenlace de equívocos que se acumulam. Na Série B, essa conceituação deve ser acrescida de um parágrafo amenizador. Rebaixamento na Série B também pode resultar de pequenos deslizes que a similaridade de forças da maioria dos concorrentes agrava.
No caso do São Caetano, até outro dia quase que condenado ao rebaixamento e, em seguida, catapultado a novos números, a queda ainda não revogada mas atenuada seria um desvio estatístico.
Pela sexta vez consecutiva na Série B, o São Caetano pautou rendimento nas edições anteriores por colocações mais tranquilas, até o 10º lugar. E se preparou para esta temporada com investimentos acima das disputas anteriores, embora bem abaixo das equipes que integram o chamado Clube dos 13, caso, entre outros, da líder e já classificada Portuguesa. Daí não haver sentido na debacle. Exceto as dificuldades internas para equacionar rivalidades técnicas compulsórias de quem sabe que uma competição tão longa necessita de elenco em vez apenas de um time.
O São Caetano se preparou com praticamente dois times para os enfrentamentos da Série B e em larga fase da disputa sofreu porque não conseguiu ter um time sequer, no sentido coletivo implicitivo do futebol.
A frouxidão dos comandos técnicos tornou-se latente porque os profissionais contratados não conseguiram dotar a equipe de um padrão de jogo minimamente compatível com a importância da disputa. E isso nos remete a uma constatação ainda mais dolorida: o futebol brasileiro sofre intensamente com a falta de especialistas de maior gabarito, principalmente na condução das equipes dentro de campo, tanto nos treinamentos quanto nos jogos. Talvez não seja por simples acaso que técnicos mais que surradamente conhecidos seguem requisitados pelos clubes da Série A, pulando de galho em galho e repetindo velhas e monótonas canções que empobrecem os espetáculos.
Basta acompanhar atentamente os jogos e conhecer minimamente o elenco de que cada treinador dispõe para entender o quanto existe de vulnerabilidades. Eles cometem erros crassos de avaliação individual e de interação coletiva. Têm em muitos momentos a semana toda e até mesmo intertemporadas especiais para treinamentos e o fazem de forma convencional. Não criam cenários que possam surpreender os adversários. São tantos os deslizes que se cometem em jogo e de forma repetidamente irritante que não se concebe a possibilidade de que não tenha havido um mínimo de cuidado nos treinamentos.
No mundo competitivo, e o mundo é competitivo, um dos instrumentos mais eficientes à transposição da normalidade mediana para o surpreendente de maior estatura é aplicar numa atividade específica princípios e conceitos que já foram experimentados à exaustão em outras áreas e asseguraram resultados positivos.
Planejamento compartilhado
O planejamento tático e a projeção estratégica de uma equipe de futebol não podem ficar restritos aos membros da comissão técnica, submetidos portanto a mudanças muitas vezes radicais, quando não incoerentes em relação ao material técnico à disposição.
A organização interna deve responder pela condução de uma proposta de competitividade da mesma forma que uma indústria projeta os níveis de produção com base no fluxo de vendas, entre tantas variáveis para que o negócio não degringole.
Por mais que o futebol tenha um componente adicional de sortilégio, na forma do imponderável, mecanismos teóricos não faltam para uma prática confortável de aplicação.
Quem conhece a gênese do sucesso do Barcelona, dentro e fora de campo, quem já tenha lido um livro imperdível escrito por um executivo do time espanhol, sabe do que estou falando. O transplante, a adaptação, a conversão ou qualquer coisa semelhante que procure extrair o máximo de lições daquele trabalho não podem ser qualificados de sonhos. Guardando-se sempre as devidas proporções e sustentabilidade, subestimar aqueles princípios é afugentar o aprendizado constante e aniquilar a sensibilidade à adaptação de pontos que podem sim ser aplicados independentemente do tamanho de cada operação.
Talvez o São Caetano tenha dado liberdade demais aos treinadores que contratou nos últimos tempos, mesmo não lhes entregando inteiramente a carteira de contratação de reforços. Uma filosofia de jogo, como tem o Barcelona e não necessariamente de vocação ao ataque permanente, deveria ser o ponto inicial de planejamento.
E que não se coloque a incontrolável rotatividade de negociação de jogadores como explicação isolada. A hipocrisia de se condenarem transferências é coisa de quem acha que futebol é diletantismo financeiro do período em que a TV e as agências de publicidade não davam a menor bola para os respaldos do mercado de consumo em forma de audiência e os jogadores de futebol encerravam a carreira geralmente com uma mão na frente e outra atrás. Não há problema algum às equipes vocacionadas a transformar promessas em estrelas ascendentes e, em seguida, negociá-las. Um planejamento bem feito amenizaria desequilíbrios com reposições bem encaminhadas.
Programado para atuar no sistema 3-5-2, contando para isso com um elenco em que vicejam alternativas de zagueiros de área e laterais com capacidade de apoio, além de meio-campistas menos combativos que apoiadores, o São Caetano raramente atuou nesta temporada com base no estoque técnico-tático disponível. Nada mais contraproducente, convenhamos, porque permite uma comparação ainda em âmbito empresarial, de prioridade de produção de itens menos competitivos em relação aos concorrentes em detrimento de outros artigos nos quais teria todas as condições de avançar no mercado.
E neste ponto a comparação conceitual com o Barcelona é emblemática: o grande time espanhol e mundial que sai da linha de produção das divisões inferiores, nas quais o argentino Messi é a peça mais cobiçada, ganha o formato técnico-tático de ofensividade levado ao extremo, como se pode ver nos gramados.
Equívocos de treinadores
A melhor explicação para o São Caetano dar-se mal nesta temporada, apesar da reconhecida competência individual da maioria dos jogadores do elenco, é que os treinadores que lhe serviram e também o que lhe serve não têm a engenharia de produção de resultados conectada com os anseios diretivos explicitados no perfil do elenco. É sobre essa base de dados técnicos individuais que os profissionais que comandam o futebol do São Caetano dentro de campo deveriam atuar, compromissados com a fixação de termos de definição tática nas negociações contratuais. Algo que parece exótico no futebol brasileiro de improvisos e concessões, mas que o Barcelona institucionalizou como marca registrada de negócios do futebol, que vão muito além das quatro linhas, e faz escola na Europa.
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