O setor de arquibancada coberta do Estádio Bruno Daniel veio abaixo depois das ruínas administrativa, financeira e técnica do Ramalhão sob o comando terceirizado do Saged de Ronan Maria Pinto. Completou-se um ciclo de horrores que compromete profundamente o futuro daquele que já foi o clube profissional mais admirado e respeitado da Província do Grande ABC. Por isso, a choradeira da Imprensa em torno dos entulhos é apenas um processo de dissimulação do caos estrutural da agremiação, cantado em verso e prosa por CapitalSocial. Pretende-se transformar o caso numa cortina literalmente de pó para encobrir o estado falimentar do futebol de Santo André.
Perdeu o Ramalhão sob as vestes maltrapilhas do Saged o respeito da Administração Pública. Desmorona provavelmente o último bastião protecionista que se imaginava incólume. O prefeito Aidan Ravin parece nem inquietar-se ante represálias impressas do Diário do Grande ABC, jornal do presidente do Saged e do comando do Ramalhão.
Pobre Estádio Bruno Daniel desnudo do lance de concreto para cinco mil espectadores que embalava a própria história do Ramalhão. Ali naquelas cadeiras de polietileno, sobretudo logo à entrada, e naqueles corredores emborrachados, circulavam associados e conselheiros num período em que o futebol ainda não fora descoberto nem pelo marketing nem pela TV, mas que exigia enormes sacrifícios para ser sustentado.
A arquibancada coberta do Estádio Bruno Daniel viveu jornadas épicas desde a inauguração, em 1969. Do outro lado nem se sonhava erguer aquela massa de concreto sem proteção contra a chuva e menos suscetível à ressonância de vozes.
Social no esportivo
Somente quem frequentou aquela metade do estádio antes que a nova arquibancada fosse construída no final dos anos 1970 e também durante a década seguinte sabe o quanto o burburinho de torcedores anônimos e de torcedores intimamente próximos da diretoria, quando não dos próprios dirigentes, significava desdobramentos durante a semana, conforme o resultado ao final de cada jogo. Movimentos salvacionistas do Ramalhão, troca de treinadores, contratação de jogadores, tudo isso emergia ali. A voz coletiva costumava vazar em direção à cúpula.
O Ramalhão dos tempos únicos de arquibancada coberta que o tempo tratou de deteriorar até impingir a demolição, num paralelismo intrigante com o próprio definhamento diretivo, popular, associativo e deliberativo da agremiação, era um time com alma, com paixão, a desafiar a influência maciça dos grandes da Capital. Desafiava tanto que a ideia de lançar camisas divididas, distintivo do Ramalhão de um lado do peito, de Corinthians, Palmeiras, São Paulo ou Santos, de outro, causava indignação, quando não revolta dos puristas. Hoje sobrevivem camisas de torcedores organizados, o último agrupamento em azul e branco que parece desperto contra as estripulias diretivas.
Havia tanta intimidade, para não dizer cumplicidade entre a torcida da arquibancada coberta e a equipe num gramado sempre maltratado, que não se duvidava da reação dos jogadores em campo.
O torcedor que frequentava aquele pedaço de cimento jogava com o time. Não era um jogo gritado o tempo todo, porque os ramalhinos jamais foram de botar a boca no trombone da paixão, mas eram reações já metabolizadas pela equipe em campo. Os decibéis eram discretos mas reproduziam uma carga cultural de apoio ou censura atentamente assimilada no gramado.
Quando decidiram colocar abaixo aquela marquise que se dobrava ao tempo e à incúria da administração pública pensei comigo sobre o ataque descomunal que atingiria em cheio a própria história do Ramalhão. Mais que o charme ditado por uma estética modernista a tornar o Estádio Bruno Daniel cartão postal pouco explorado, aquela marquise simbolizava quase meio século de encontros sociais num espetáculo esportivo.
Pouco interessava que do outro lado, na arquibancada descoberta, o espetáculo em campo oferecesse visão mais ampla e mais presencial do gramado. Aquela nova estrutura de cimento foi um bálsamo aos torcedores preocupados com a ameaça do concreto que se desmanchava em curva e exigia contorcionismos contínuos de quem não pretendesse perder um lance sequer. Mesmo assim, os tradicionais ramalhinos jamais se deixaram levar pela novidade. O ritual da arquibancada coberta pertencia a torcedores mais comprometidos com o futuro do Ramalhão.
Para quem se acostumou com a sensação de que ir ao setor coberto do Bruno Daniel era mais que uma decisão esportiva, era uma possibilidade de reencontrar amigos de longa data, era a certeza de que identificaria almas ramalhinas compatíveis na abordagem do jogo ao final do primeiro tempo, percorrendo o amplo corredor, a viuvez veio abaixo junto com toneladas de pedaços de concreto.
Foram anos a fio que naqueles encontros sob a marquise do Bruno Daniel a Santo André mais engajada no futebol debatia as lambanças políticas, o dia a dia profissional, as novidades familiares, as novas vítimas do tempo que esvai para todos, o futuro de um nova contratação a preço de banana, porque o Ramalhão só vivia na pendura.
Essas e tantas outras situações desapareceram com o envelhecimento biológico associado à falta de herdeiros esportivos cada vez mais sensíveis à concentração da mídia nos grandes clubes paulistas. O Ramalhão descuidou-se da reposição estimulada de torcedores nos berços escolares. Imaginou combustão espontânea numa área periférica de uma capital dominada pelos grandes clubes.
Possivelmente a Administração Aidan Ravin tenha feito as contas e constatado que, do jeito que está, o Ramalhão do Saged, o Ramalhão esfacelado como organização esportiva, o Ramalhão falido como instituição empresarial, o Ramalhão desprestigiado pela população, o Ramalhão que não honra a tradição, esse Ramalhão não merece mesmo outro estádio para mandar jogos senão um Bruno Daniel pela metade. Exatamente a metade sem alma.
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