Administração Pública

Maurício Soares já não tem
ilusões sobre ação do Estado

MALU MARCOCCIA - 20/09/1997

O prefeito Maurício Soares está preparado para grandes batalhas que vêm por aí e conta para tanto com o suporte dos vereadores. Esse ex-socialista e ex-petista que ganhou fama e prestígio como advogado dos metalúrgicos de São Bernardo já não tem mais ilusões sobre os limites de atuação do Estado. A Prefeitura deve investir em infra-estrutura social e deixar atividades empresariais para quem é do ramo, no caso a livre-iniciativa.


Por isso, transporte coletivo, entreposto de mercadorias e até mesmo água e saneamento vão ser privatizados. O que seria uma heresia há 20 anos, quando Maurício Soares e Lula compartilhavam ideologia, tornou-se pragmatismo. O prefeito simplesmente entende que o mundo mudou o suficiente para revelar as diferenças entre teoria e prática. E que o Poder Público é operador ineficiente.


Não seria exagero dizer que Maurício Soares mudou na mesma proporção de São Bernardo dos últimos 20 anos. A diferença é que enquanto o Município de 660 mil moradores teve deteriorada sua qualidade de vida, o prefeito ampliou conhecimentos e não se fechou às evidências. A São Bernardo de 20 anos atrás, de baixo adensamento vertical, de morros virgens, de trânsito quase interiorano e de 300 mil habitantes a menos só existe no enorme pôster plantado atrás da cadeira no gabinete do chefe do Executivo desde Tito Costa.


Mas esse pôster está com os dias contados. Maurício Soares não vai destruí-lo, evidentemente. Prefere tirá-lo dali. Vai continuar no gabinete, mas à sua frente. Cederá lugar a outro com as mesmas dimensões que mostrará, do mesmo ângulo, mas colorido, o que duas décadas podem provocar de transformações. Serão favelas subindo os morros, trânsito complicado, prédios e mais prédios a disputar cada metro quadrado.


Enfim, Maurício Soares vai ter às costas, e à frente de interlocutores, um retrato fiel do Município que mais arrecada impostos no Estado depois da Capital, com previsão de R$ 700 milhões este ano, mas que não consegue estancar a enxurrada de problemas sociais de uma periferia cada vez mais inchada e comprometida.


Um Município nestas condições não pode se dar ao luxo de manter a ETC, Empresa de Transporte Coletivo, que o próprio Maurício Soares criou durante sua primeira gestão, amarrado partidariamente que estava ao PT. Agora no PSDB, Maurício Soares encontra liberdade para mudar.


A ETC é um saco sem fundos e sem eficiência. Só a operação de uma frota de 200 ônibus com idade média de 5,5 anos provoca déficit mensal de R$ 1 milhão aos cofres públicos. Mas isso é fichinha quando se vai até o passivo acumulado da companhia, que atinge R$ 94 milhões e evolui no ritmo de juros elevados. São R$ 3 milhões por mês só para pagamento do serviço da dívida.


Maurício Soares demitiu 300 funcionários da empresa de ônibus, mas outros 300 deveriam ser dispensados, já que o total de 1.600 é um abuso. A relação alcança oito funcionários por ônibus, muito acima dos 5,5 das empresas privadas que controlam os restantes 40% do transporte municipal. O prefeito só não demite mais porque não tem dinheiro para indenizações. Mas propõe que o quadro seja preservado durante os seis primeiros meses de esperada privatização. É o que recomenda o projeto de lei enviado à Câmara Municipal com o sentido explícito de sufocar os oposicionistas, especificamente a indomada bancada petista.


A ETC é uma dessas aberrações empresariais que já teria sido fechada se não houvesse o Tesouro municipal a ampará-la. O pior de tudo, raciocina o prefeito, é que a Administração paga caro para ser criticada. Pesquisa recentemente realizada constatou que o índice de satisfação atinge apenas 32% dos usuários, contra o dobro do atendimento privado. Motoristas e cobradores da ETC, segundo o mesmo trabalho, maltratam os passageiros e tornam a relação tempestuosa.


O que Maurício Soares pretende com a privatização da ETC é semelhante ao que Celso Daniel, prefeito de Santo André, promoveu recentemente com a privatização da EPC, Empresa Pública de Transportes, igualmente criada em 1989. A empresa ou o consórcio de empresas que deverá arrematar a companhia pagará pela concessão das linhas, pelos ativos e terá de investir em novos ônibus. A Prefeitura vai receber uma taxa de administração, porque vai manter-se como gestora do sistema.


Além disso, o projeto de lei prevê algo diferente do de Santo André: a empresa vencedora da concorrência vai ter de investir também na infra-estrutura externa, isto é, no sistema viário propriamente dito, inclusive com a constituição de corredores exclusivos para dar mais velocidade média aos ônibus.


O prefeito de São Bernardo não tem dúvidas de que, pelo interesse demonstrado por empresários do setor, a privatização vai ser rentável para a Prefeitura. E também para a organização vencedora, porque, calcula o prefeito, a taxa de retorno do capital atingiria até 15% ao mês, muito acima, portanto, dos padrões financeiros de um País que até recentemente fazia da inflação grande parceira de rentabilidade. Algo que praticamente sacraliza a livre-iniciativa como fomentadora de receitas e crucifica o Poder Público como devastador de arrecadação.


O dinheiro que entraria nos cofres da Prefeitura seria suficiente para pagar o alongamento de várias das dívidas da ETC, as indenizações dos funcionários e ainda sobrariam recursos para aplicações sociais. Até porque a taxa de administração garantiria receita permanente.


Maurício Soares diz que a ETC deve para Deus e o mundo. “A administração anterior — referindo-se ao ex-prefeito Walter Demarchi — cometeu uma das maiores barbaridades em gestão pública ao descontar Imposto de Renda dos funcionários e não repassá-lo à Receita Federal” — afirma.


Há dívida também com o INSS, com o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço e com fornecedores. Pelos cálculos do prefeito, a concessão por cinco anos canalizaria perto de R$ 300 milhões aos cofres da Prefeitura.


Montante semelhante viria da privatização do DAE, Departamento de Águas e Esgotos de São Bernardo. Uma auditoria encomendada à Fundação Getúlio Vargas está avaliando o patrimônio físico dessa divisão pública. Maurício Soares antecipa que só os ativos chegariam a R$ 300 milhões. O DAE não é um sumidouro de recursos públicos tão escandaloso quanto a ETC, mas nem por isso deve ser preservado. Sua gestão continuará com a Prefeitura, mas a operacionalização será repassada a terceiros.


Até mesmo a Sabesp, estatal do Estado de São Paulo, esticou os olhos em sua direção. Quer comprá-lo e revendê-lo mais à frente, porque será privatizada pelo governo Mário Covas.


A negociação com a Sabesp é provável porque a Prefeitura de São Bernardo deve-lhe R$ 83 milhões. A dívida é, segundo Maurício Soares, herança de antecessores. “Quando assumi a Prefeitura pela primeira vez, peguei uma dívida elevada com a Sabesp, que consegui parcelar e cumprir as obrigações contratuais, mas agora, de volta ao cargo, me deixaram essa bomba” — afirma Maurício Soares, como que justificando porque não acredita mesmo na estabilidade administrativa do Poder Público.


A Prefeitura poderia preservar o DAE se dobrasse as tarifas e as tornasse, na projeção do prefeito, equivalentes a de outros Municípios da região. Mas o impacto seria muito alto. A receita do departamento de R$ 5 milhões por mês praticamente se iguala às despesas. O que sobra não daria jamais para investimentos. São necessários, de imediato, R$ 100 milhões, perto de 15% do orçamento anual da Prefeitura. É muito dinheiro para dar tratamento ao esgoto da periferia, principalmente do Grande Alvarenga, a região mais pobre e mais populosa do Município.


É possível que se a venda do DAE demorar, Maurício Soares decida lançar concessão para obras de saneamento do Grande Alvarenga, através do chamamento da iniciativa privada ou mesmo da Sabesp. Certo mesmo é que, embora tenha trocado de partido e também se convencido de que o Estado não é a panacéia da humanidade, Maurício Soares mantém a sensibilidade social ao argumentar que a falta de recursos para investimentos na área descarrega na Represa Billings todo o esgoto das moradias daquela região do Município. Algo de extrema gravidade à saúde pública.


Para completar, a Agesbec, Armazéns Gerais de São Bernardo, também pode ser traduzida em dinheiro. Trata-se de empresa de economia mista que tem a Prefeitura como maior acionista.


Maurício Soares diz que várias multinacionais, provavelmente as montadoras de veículos, têm interesse na compra de espécie de carta-patente, sobrevivente do Brasil cartorial. Seriam perto de R$ 12 milhões pela retirada da Prefeitura desse negócio cujos lucros são ínfimos desde que Maurício Soares decidiu tratar com realismo a locação dos 40 mil metros quadrados de área bem no centro do Município. O aluguel passou de R$ 40 mil para R$ 200 mil. Uma mudança que fez despencar a frágil rentabilidade da Agesbec, ancoradouro não tão descarado de emprego como a ETC.


Apesar de tentar de todas as formas, buscando apoios políticos diversos, Maurício Soares não conseguiu convencer o chefe da Receita Federal, Everardo Maciel, de que os tempos de cartório viraram pó. Mas o prefeito não crê que a posição seja irredutível. De qualquer forma, certo mesmo é que a Agesbec, uma tormenta ao já caótico trânsito nas vias centrais de São Bernardo, vai ser transferida para área mais afastada e provavelmente mais estratégica em termos de logística.


Em seu lugar, e aí mais uma vez Maurício Soares demonstra que questões sociais e culturais continuam a bater em seu peito, pretende criar espaço múltiplo nos cinco pavilhões. Haveria divisões para feiras, exposições, grande auditório para 1,5 mil convidados de atividades culturais de ponta, incubadora de empresas e uma coordenadoria para a juventude, cujo perfil o próprio prefeito confessa que não tem definido. “Criaremos um espaço nobre para todo o Grande ABC” — afirma Maurício Soares, justificando a medida em parte porque o Pavilhão Vera Cruz voltará a ser exclusividade de produções artísticas e em parte porque a Agesbec não tem mesmo razão de estar em área tão especial.


A perspectiva de que os estatistas incrustados no PT, partido que o tornou conhecido, vão radicalizar a luta contra as privatizações não o faz recuar na disposição de buscar na Câmara Municipal a aprovação dessas medidas. Até mesmo porque o exemplo de privatizações vem de cima, do governo federal.


Da mesma forma que nos anos 70 a propagação do Estado empreendedor também floresceu em Brasília e se espalhou como erva daninha por todos os cantos. Maurício Soares só quer que, dentro dos próximos 20 anos, o pôster da empobrecida São Bernardo que instalará brevemente em seu gabinete venha a ser substituído por outro menos inquietante. Para isso, a Prefeitura tem de preocupar-se com suas funções sociais e deixar os negócios para quem entende de negócios.


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