Meias Verdades

Quando o liberalismo
lambe o assistencialismo

DANIEL LIMA - 01/04/2003

  •  Trechos do principal editorial do jornal O Estado de S. Paulo de 30 de dezembro de 2002, sob o título “Um novo padrão de gasto social”:

Semanas atrás, ao receber o Prêmio Mahbud Ul-Haq por Contribuição Destacada ao Desenvolvimento Humano, concedido pelas Nações Unidas, o presidente Fernando Henrique disse que o seu governo realizou, possivelmente, “a maior redução sustentada da pobreza na história do Brasil”. Ele poderia ter acrescentado que isso se deu em um período marcado por taxas insatisfatórias de crescimento e pela compressão do nível de emprego. É óbvio que a expansão da economia e do mercado de trabalho representa condição necessária para o progresso social. Se assim é, como se explica que, ao longo destes últimos oito anos, a renda da população pobre tenha aumentado proporcionalmente mais do que o produto nacional e a população ocupada?


O fim da superinflação, por crucial que tenha sido essa conquista, não esgota a resposta. Seria descabido atribuir exclusivamente à estabilidade, por exemplo, a extraordinária redução da parcela de brasileiros em situação de pobreza e penúria nos anos recentes.


Entre 1990 e 1994, em média, eles eram 63 milhões de pessoas, ou 42% da população. No período de 1995-2000 (últimos dados disponíveis) passaram para 54 milhões, ou 33% dos habitantes do País. E a proporção de indigentes, naqueles totais, caiu de 47% para 42%. Estes são os dados que suportam a citada alternativa de Fernando Henrique. Dito de outro modo, são ainda muitos os pobres e miseráveis do País. Mas eles nunca foram tão poucos, porcentualmente, como no final de seu mandato.


Isto porque, nestes anos, o Estado foi tudo menos omisso diante das seculares chagas sociais do País. Em primeiro lugar, desmentindo as versões que, de tanto serem repetidas, foram aceitas como verdadeiras por amplos setores da população, o gasto social do governo federal aumentou notavelmente, apesar dos constrangimentos macroeconômicos sob os quais a área pública operou a maior parte do tempo. Já em 1995, esse dispêndio cresceu nada menos de 26,3%, em termos reais, comparado com o do ano anterior. A partir daí, até 2001, elevou-se em média 7%. Confrontando-se esse último ano com 1994, registra-se salto de 80%. Vistos os números por outro ângulo, o gasto social cresceu muito mais do que o PIB e a população.


O segundo e não menos decisivo ponto a ressaltar é que o aumento da participação da autoridade federal no combate à pobreza e à miséria se fez acompanhar de profundas transformações nos meios de investir. A preocupação com a eficácia e com o rendimento do gasto social é indissociável dos avanços mais destacados na primeira categoria (universalização do acesso à escola, redução do analfabetismo e da mortalidade infantil, elevação da expectativa de vida, além da expansão recorde dos beneficiários da Previdência, de 15,2 milhões em 1994 para 20 milhões em 2001.


Chegando a 6,8 milhões de trabalhadores do campo, a um custo de R$ 17,6 bilhões em 2003, a previdência rural, por exemplo, é o maior programa de transferência de renda do País. Trata-se de um dos 12 componentes da rede de proteção social existente hoje no Brasil para os setores mais desvalidos.


Tal conjunto de programas foi o que possibilitou a sensível evolução dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) verificados nos municípios brasileiros, de acordo com o atlas divulgado pelo Ipea na última sexta-feira e publicado sábado no Estadão. Abriu-se, em suma, um caminho para a ação social do Estado que o novo governo só poderá aprofundar.


Vertiginosamente fernandohenriquista, o Estadão cometeu uma série de abusos interpretativos e informativos. O principal, talvez suficiente para desqualificar completamente os enunciados de glorificação do governo peessedebista, é a chocante contradição de consumir linhas e linhas para enaltecer a atuação social de um governo rejeitado nas urnas presidenciais por 76% do eleitorado no primeiro turno sem levar em conta a montanha de dejetos macroeconômicos lançados na direção de seu sucessor, Lula da Silva.


Ao desprezar completamente a macroeconomia como contraface da análise enviesada do comportamento assistencial do governo Fernando Henrique, o Estadão transmitiu a impressão de que pelo menos temporariamente precisava exorcizar sua gênese liberal, de defesa do capitalismo, entregando-se de corpo e alma a uma pregação extraordinariamente contaminada de imprecisões e contradições. Em nome de FHC, o Estadão se converteu ao estatismo crudelíssimo.


As dificuldades econômicas e sociais que abatiam o Brasil em dezembro de 2002, data do editorial, já eram muito maiores e mais graves do que os números de dezembro de 2000 que serviram de base para as mesuras do jornal. Para uma publicação que preza a própria história, chega a ser calamitosa a omissão deliberada ou não de que Fernando Henrique Cardoso elevou de 25% para 36,4% a carga tributária do País. Em se tratando do Estadão, visceralmente defensor da livre iniciativa, o silêncio sobre o alargamento da embocadura fiscal do Estado nacional só pode ser justificado pelo magnetismo das relações com FHC.


A diferença de quase 12 pontos percentuais de aumento da carga tributária significa aproximadamente R$ 50 bilhões de transferência de recursos dos setores produtivos para o Estado em suas três dimensões — União, governos estaduais e municípios — só nos 12 meses de 2002.


A crescente elevação da carga tributária foi a moeda mais em conta para o patético acovardamento do governo Fernando Henrique Cardoso no combate aos custos de um Estado significativamente perdulário. Como se sabe, as reformas estruturais — previdenciária, tributária, trabalhista e eleitoral — para enjaular o Estado nacional num figurino dietético não encantaram FHC, em desacordo, portanto, com a volúpia com que se lançou à sedução de votos para a emenda da reeleição do presidente da República (ele incluído).


Como as estatísticas sociais mencionadas pelo jornal referem-se a períodos que se encerraram no ano 2000, a legitimidade é tão solidamente segura quanto um bêbado utilizar cabo de aço para trocar o 20º andar de um apartamento por outro do 10º andar a 100 metros de distância. O governo FHC, tanto no social quanto no econômico, só pode ser analisado integralmente ao final estatístico dos dois mandatos. Principalmente porque são de domínio público os rescaldos dos artifícios criados pela irresponsável valorização da moeda, quando do lançamento do Plano Real em 1994 pelo então ministro FHC.


As alquimias para blindar a moeda nacional durante os quatro primeiros anos de mandato acabaram desmascaradas no segundo. Nesse período, o mercado financeiro internacional deu uma rasteira no governo FHC, que lhe entregou os anéis juntamente com os dedos para financiar uma armadilha em forma de sobrevalorização do real. O pior período do acerto de contas do dólar com a realidade foram os anos 2001 e 2002, que registraram a ruptura do financiamento aos países emergentes. Os maiores impactos não foram capturados pelos estudos sociais divulgados pelo governo FHC e desfraldados pelo editorial do Estadão.


A evolução do PIB mergulhou na pasmaceira de sustentação vegetativa. Tanto que a emblemática Região Metropolitana de São Paulo, epicentro do desenvolvimento econômico do País, entrou em parafuso. A Fundação Seade registrava que a taxa média de desemprego na Grande São Paulo caiu de 19,3% em 1999 para 17,6% da População Econômica Ativa em 2000. Contabilizaram-se 1,466 milhão de pessoas desocupadas.


Já em dezembro de 2002 os números eram outros: o desemprego na Região Metropolitana de São Paulo atingiu 19%, a segunda maior taxa desde 1985, com 1,788 milhão de desocupados. Ou seja: 322 mil almas (uma população de Diadema inteira) sem produzir riqueza acrescentaram-se às estatísticas de dois anos anteriores.


Não é difícil imaginar os efeitos sociais colaterais dessa escorregada econômica de frondosas raízes explicativas, uma das quais fortemente profunda — o seguido desgaste da recomposição do peso da moeda nacional frente ao dólar americano, a partir de janeiro de 1999. Não foi mera coincidência a mudança de rota na moeda nacional 15 dias depois de Fernando Henrique Cardoso assumir a reeleição. Esticou-se o quanto pode, com os efeitos danosos da procrastinação, a ilusão de que a moeda nacional continuava saudável. Por isso, Fernando Henrique Cardoso teve de recorrer à desvalorização do real e, entre outras medidas, iniciar uma reviravolta na política econômica. Uma reviravolta que culminou, em 2002, com mais de US$ 13 bilhões de saldo comercial à custa, principalmente, de corte de importações.


Em janeiro de 2003 o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo, escrevia para o jornal paulistano artigo que praticamente atomizava o suposto legado de Fernando Henrique Cardoso na área social. Ao se referir ao programa humanitário que beneficiou os portadores de HIV, Cerqueira Cezar lembrou que a iniciativa ajudou 0,005% da população, mas custou o abandono de programas relativos a endemias que afligem cerca de 20% dos brasileiros.


A introdução de medicamentos genéricos também foi metralhada pelo articulista da Folha de S. Paulo: “A triste realidade é que esse programa não proporcionou a menor ampliação do acesso ao medicamento pela população de baixa renda, pois não houve aumento do consumo. A razão é que os aumentos sucessivos de preços, ocorridos desde o início da administração FHC, suplantaram a diferença de preços entre os medicamentos de referência e os genéricos. Corrigidos pela inflação, os preços dos genéricos são hoje bem superiores aos preços dos seus respectivos medicamentos de referência há oito anos. Ademais, a abertura do mercado para fármacos e medicamentos causou um aumento de 500% nas importações e o fechamento de cerca de 450 unidades de produção no Brasil” — escreveu.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite foi cortante ao analisar o avanço dos Índices de Desenvolvimento Humano mencionado pelo editorial do Estadão de dezembro de 2002: “Na realidade, o aumento desse índice se deve sobretudo a um de seus componentes, a escolaridade, que é responsabilidade de Estados e municípios, não da União. Além disso, a política de promoção compulsória do aluno, imposta pelo MEC, contabiliza alunos que são propulsionados automaticamente pela burocracia, não a melhoria ou a ampliação do ensino, o que desqualifica o conceito de escolaridade para o Brasil. Da mesma forma, a redução da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida são, em sua maior medida, responsabilidade e consequência de administrações estaduais e municipais. Prova disso é o fato de que essas melhorias ocorrem em medidas bastante variadas em diferentes Estados e municípios. Além do mais, certa melhoria deveria ocorrer vegetativamente como consequência da evolução tecnológica na área de saúde e do aumento da circulação de informação na mídia, que pouco ou nada teve a ver com o governo federal”– escreveu o articulista.


O editorial do Estadão pró-assistencialismo de Fernando Henrique Cardoso também desconsiderou a saia justa diplomática provocada pelo relator especial da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre o direito à alimentação, Jean Ziegler. O dirigente concluiu sua visita de 18 dias no Brasil, em março de 2002, com a constatação de que o País não cumpre os compromissos firmados nos pactos internacionais sobre a questão e que poderá sofrer punições da ONU em função disso. “Há uma guerra de classes no Brasil. São 40 mil assassinatos por ano, de acordo com estatísticas do Ministério da Justiça. Há uma guerra social aqui. Para a ONU, 15 mil mortos por ano são indicador de guerra” — afirmou Ziegler.


Seu relatório sobre direito à alimentação no Brasil seria apresentado na Assembléia Geral da ONU de setembro de 2002. Apesar de concluir que há desrespeito aos direitos de alimentação e saúde no Brasil, Jean Ziegler elogiou as ações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e das comissões pastorais da terra e da criança, ligadas à Igreja Católica. Um tapa no governo federal. “A grande esperança no Brasil está nos movimentos sociais das igrejas e da sociedade civil. A revolução, a mudança qualitativa, virá da base e isso é importante para a comunidade internacional. Não estamos aqui para fazer recomendações, mas também para transmitir as soluções brasileiras para outros povos” — afirmou.


E disparou, em entrevista coletiva: “Os dados indicam que um terço da população brasileira é afetada pela subalimentação. Isto é totalmente intolerável. No Níger, país africano localizado no centro-oeste e que tem um dos mais baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) do mundo, há fome porque não há nada, só areia e rocha. Mas no Brasil, onde há terra fértil, riqueza e clima tropical, a fome é um genocídio, não uma fatalidade. A responsabilidade é a ordem social, não a natureza. A responsabilidade é um produto de uma ordem totalmente injusta. Quem morre de fome no Brasil é assassinado”.


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