A resposta é simples, fácil, rápida e elevada: tem tudo a ver. Coincidentemente, a gravidez de quadrigêmeos de uma mulher de 25 anos, de Taubaté, foi desmascarada na semana em que se completou uma década do assassinato do então prefeito de Santo André. A Imprensa em sua totalidade, como a Imprensa na totalidade do caso Celso Daniel, menos este jornalista, caiu do andaime. A diferença é que o caso Celso Daniel foi de tal ordem mistificado por conta da operação-abafa de investigações da Polícia Civil e da Polícia Militar, em contraposição ao estrelado do Ministério Público, enquanto a suposta mãe de quadrigêmeos acabou descoberta por vizinhos, depois de a Imprensa levá-la às manchetes e às minúcias do noticiário como objeto de interesse especial tal o avantajar de uma barriga supostamente de um time quase inteiro de basquetebol, não de acolchoados.
Tinha prometido a mim mesmo não voltar a escrever tão cedo sobre o comportamento da mídia durante todo o caso Celso Daniel porque é de tal ordem tão nefasto, tão impreciso, tão discriminatório, tão partidarizado, que seria chover no molhado. Mas eis que um artigo do advogado Fábio Oliveira Ribeiro, postado no site do Observatório de Imprensa, uma joia rara de endereço digital de informação jornalística, me fez mudar de ideia. No embalo da pretensa megagrávida.
Pinço parágrafos do texto do advogado em questão, sob o título "A sovietização dos telejornais brasileiros", para tentar repassar aos leitores uma luminosidade de pensamento nas trevas de uma unanimidade mais que burra, insidiosamente perniciosa, que pautou a rememoração do caso Celso Daniel na semana passada.
Os telejornais noturnos de ontem (18/01/2012), especialmente o da Band e o da Globo, requentaram a história do assassinato de Celso Daniel. A propósito de uma entrevista do promotor do caso alertando sobre a possibilidade de prescrição do processo, toda a história da tragédia foi novamente contada. Curiosamente, a ênfase da cobertura não foi o fato narrado pelo promotor (a possibilidade de prescrição), mas o suposto envolvimento de José Dirceu e de pessoas relacionadas à tragédia que ocupam cargos no governo Dilma (a viúva do falecido entre as tais). A imprensa requentar histórias não é algo novo. Trata-se de um fenômeno bem descrito e estudado pelos teóricos do jornalismo.
(...) Novo mesmo, penso, foi os telejornais usarem esse procedimento para desviar a atenção dos telespectadores do fato relevante que deveria ser coberto: a possibilidade de prescrição do processo. O caso está na Justiça, portanto a matéria deveria colocar em foco a estrutura do Poder Judiciário (que possibilita a prescrição de ações penais, dentre elas a referente à tragédia de Celso Daniel) e as eventuais deficiências do próprio Ministério Público (que é órgão de acusação e dispõe de uma certa autonomia, mas tem seu procurador-geral nomeado pelo governador do Estado -- portanto, sujeito a injunções de natureza partidária. A tragédia vitimou uma personalidade do PT, mas o Estado é comandado pelo PSDB há décadas. Portanto, se há algum tipo de injunção política no MP para brecar a ação dos promotores, isto certamente não pode ser creditado ao partido de Celso Daniel. Da entrevista do promotor, qualquer cidadão pode concluir que o caso está na Justiça, ou seja, o conflito está sendo administrado e será resolvido na forma da Lei pelo Poder Judiciário. O TJSP é autônomo e sempre soube defender suas prerrogativas e sua autonomia. A possibilidade ou não de prescrição levantada pelo promotor diz respeito ao funcionamento, ou mau funcionamento, do Judiciário. Mas nenhum desembargador do TJSP foi contatado. O presidente do TJSP não foi entrevistado para dizer o que tem sido feito e o que pode ser feito para que os processos criminais sejam julgados antes da prescrição.
(...) A partidarização dos telejornais no dia referido a propósito da questão requerida foi evidente. Os principais personagens linchados nos telejornais noturnos de 18/01/2012 foram o PT e José Dirceu. A esposa do falecido foi tratada como se tivesse sido premiada pela morte do esposo e a presidente Dilma, apresentada como culpada, não pela tragédia em si, mas por associação aos suspeitos que nomeou. O suspeito José Dirceu, de quem nunca gostei (nem nos tempos em que era filiado ao PT), foi apresentado como culpado, culpado por suspeita (crime que, aliás, não existe na legislação penal em vigor). Os telejornais parecem não se dar conta de que estão a produzir uma verdadeira degeneração da cultura jurídica nacional.
(...) Senhores jornalistas, por favor, mais jornalismo e menos partidarismo ou ideologias jurídicas soviéticas no horário nobre. Se continuarem produzindo material jornalístico baseado-se nestes princípios jurídicos perigosos para poder linchar os partidos e políticos que detestam (ou inocentar os partidos e instituições que adoram), em pouco tempo a população brasileira, que gosta de televisão e a considera um repositório importante de valores culturais, vai esquecer que temos Constituição e que os princípios desta é que são válidos e eficazes.
Sou advogado há 20 anos e fiquei profundamente amargurado diante de minha TV em 18/01/2012. Como profissional e defensor de nossa cultura jurídica, só posso lamentar ao ver o jornalismo destruí-la junto com a Constituição que com tanta dificuldade foi discutida e promulgada ao fim de um regime militar horrendo. Como cidadão, confesso que estou perplexo e começando a ficar assustado, não com o PT (que é um partido legal e tem agido rigorosamente dentro dos limites admitidos pela cultura político-partidária brasileira), mas com este telejornalismo rasteiro, destrutivo, partidarizado, que parece querer fomentar não a civilidade e o respeito à nossa lei, mas a guerra civil com recurso a teorias jurídicas ultrapassadas e importadas de um regime autoritário que até os russos sepultaram.
Café pequeno
Eis ai reproduzidos os principais pontos do texto de Fábio de Oliveira Ribeiro, advogado de Osasco. Quase todo o texto publicado pelo Observatório da Imprensa, para ser mais preciso. Nada que, apesar de transparente indignação, sequer resvala no sentimento acumulado por este jornalista que acompanhou como nenhum outro todo o caso Celso Daniel. Uma história mais que vergonhosa porque se procurou fundir dois polos absolutamente distintos -- as possíveis falcatruas na Administração Celso Daniel, que seria o caixa forte do esquema de propinas do partido no Estado -- e um sequestro rigorosamente ocasional, cometido por um bando de pés de chinelo, como apuraram tanto a Política Civil quanto a Polícia Federal, em posição colidente com o Ministério Público, que criou um grupo de atuação especial saído diretamente do Palácio dos Bandeirantes para desviar a atenção da verdade -- que a Região Metropolitana de São Paulo estava infestada de sequestradores, como as estatísticas e a mídia daquele período registraram à exaustão.
O caso Celso Daniel é a fraude da megagrávida que deu certo entre outras razões porque supostos familiares, especialmente os irmãos João Francisco e Bruno Daniel Filho, foram devidamente preparados para dar sustentação à fantasiosa versão do Ministério Público -- como provam milhares de páginas dos inquéritos da Polícia Civil de São Paulo e da Polícia Federal.
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11/07/2022 Caso Celso Daniel: Valério põe PCC e contradiz atuação do MP