A Seleção Brasileira tão costumeira e abusivamente bajulada pelos narradores, comentaristas e analistas de arbitragem, vestiu a camisa branca do Milan da Itália nas quartas-de-final da Copa dos Campeões da Europa ontem diante do Barcelona, no Camp Nou. Só não foi assustador o que Galvão Bueno, Casagrande e Arnaldo Cesar Coelho proporcionaram para tentar equilibrar um jogo em que o time espanhol foi sempre superior porque já conhecemos o modelo de transmissão da Globo.
A emissora carioca tem a melhor e a pior transmissão esportiva da TV brasileira. A melhor porque seus profissionais são escolhidos a dedo por filtragem técnica. Pior porque eles sempre fazem o jogo que supostamente interessa à audiência. No caso de ontem, interessava manter a expectativa de que o Milan poderia atrapalhar o Barcelona. O que se passava em campo eram detalhes. O enredo fora desenhado com antecedência programática. Por mais que as imagens desmentissem, lá estavam os bravos globais a manobrar os cordéis interpretativos.
Quando se enfrentam duas equipes brasileiras de pesos semelhantes a TV Globo subverte também os critérios de equilíbrio. Faz todos os esforços possíveis para evitar bolas divididas que possam decepcionar uma das massas de torcedores que se postam nos sofás. É um tal de subir no muro que se chega a duvidar dos tucanos como artífices da modalidade.
Sem juízo de valor mais amplo sobre a arbitragem, que cometeu um erro na marcação do primeiro pênalti em favor do Barcelona, porque Messi estava em posição de impedimento (não precisei, como a equipe da Globo, esperar o intervalo para detectar a irregularidade) o que se viu foi uma constante e repetitiva tentativa de amenizar a força do Barcelona e de subir degraus de qualificação dos italianos, apesar de estilo e técnica contrastantes.
É de lascar ter de aturar contorcionismos verbais e interpretativos sempre direcionados ao mesmo lado do jogo, ontem, dos italianos. As relações de Galvão Bueno com o Milan são bem mais próximas do que com o Barcelona desde os tempos de Kaká, um xodó igualmente protegido pelo narrador. Daí narrativa, comentários táticos e análises de arbitragem mais que tendenciosos, é apenas um passo. A inteligência dos telespectadores que se dane.
Perguntaria o leitor mais atrevido a razão deste jornalista acompanhar o jogo pela TV Globo ante o viés italianíssimo de Galvão e companheiros de transmissão. Simples: o padrão de cobertura da TV Globo é insuperável, a audiência é sempre maior e é importante identificar como a emissora que forma opinião comporta-se aos olhos e aos ouvidos dos telespectadores.
A TV Globo é tão melhor que as demais que a audiência se dá por osmose, por consequência, por vasos comunicantes da programação. Trata-se de uma lição que deve ser reverenciada e que deveria servir aos demais donos de veículos, os quais pouco se lixam para a qualidade contínua da programação de TV e também de emissoras de radio. Também os donos de jornais deveriam estar atentos a esse conceito porque o vácuo informativo entre editorias mal-balanceadas afugenta leitores mais exigentes. Ninguém compra jornais que não sejam temáticos somente pela riqueza de informações e análises de uma editoria. O conjunto é que gera interesse, fidelidade e credibilidade.
Galvão Bueno chegou quase próximo à hostilidade ao Barcelona. Casagrande fez firulas para tentar empatar em qualidade geral um jogo integralmente sob controle dos espanhóis. Os erros de arbitragem foram superlativizados em acidez crítica pelos três profissionais quando o suposto beneficiário era o Barcelona e estupidamente minimizados quando os italianos protagonizavam deslizes. Nos últimos 15 minutos o Milan se esmerou em dar pontapés sob a complacência do árbitro e principalmente da interpretação da TV Globo.
O protecionismo da Globo aos brasileiros foi acintoso. Daniel Alves fez um péssimo primeiro tempo e não mereceu um único reparo. Robinho só fez uma jogada que honrasse seu talento, foi ovacionado por Galvão Bueno, e nada mais. Pato jogou 10 minutos e o máximo que Galvão Bueno fez foi desfilar o rosário de problemas físicos do atacante, sempre de forma paternalista. Fosse Messi Robinho, quem suportaria a patriotada de Galvão Bueno?
Se no jogo de ida na Itália o mesmo trio da Globo já emitira claros sinais de transmissão à milanesa, ontem foi de lascar. Tenho a impressão que, principalmente Galvão Bueno, um extraordinário narrador, desdenha da capacidade cognitiva dos telespectadores na exata medida em que se coloca com sua voz e entonação no altar dos intocáveis. Também as tentativas de orquestrar a marcha dos acontecimentos do jogo, forçando a barra para induzir os telespectadores a negar o que observam, transformando momentos circunstanciais de ofensividade do Milan em situações estruturais de defensivismo do Barcelona, não resistiram aos minutos seguintes, quando o time catalão perdeu mais oportunidades de ouro.
A equipe da TV Globo comanda o rito cultural da crônica especializada nacional. Por isso e sempre com classe tornou o jogo de ontem uma extensão dos jogos da Seleção Brasileira. A repetição de lances supostamente irregulares e a intermitente exibição de também supostos equívocos da arbitragem são clichês conhecidíssimos para sensibilizar telespectadores à doutrina interpretativa do espetáculo. Algo como editar um debate político escolhendo os melhores momentos de um determinado candidato e os piores do adversário. Como na disputa entre Collor e Lula, em 1989, lembram-se?
Agora, quando se trata de Seleção Brasileira, de times brasileiros em competições internacionais e de um Milan verde-amarelo ante um Barcelona "chato demais nas reclamações treinadas contra a arbitragem", como disse Galvão Bueno, a política de esconder ao máximo tais situações beira o anedótico, porque o Barcelona é de outra galáxia. Queira ou não a equipe de Galvão Bueno negar tamanha explicitude.
Os vícios de transformar narrações esportivas em mercantilização de patriotismo não são vícios vazios como alguns pouco familiarizados com as ramificações da cultura do futebol no País pretendem fazer crer. São ações que encaminham mensagens contraventoras a outras atividades. É a malandragem semântica em estado puro.
Para completar, a propósito do jogo e depois de completado este texto, vou ao Juca Kfouri e transponho, integralmente, os últimos parágrafos da análise que produziu:
Aos que gostam mais de apito que de bola: o primeiro pênalti foi fruto de um toque de bola claro do zagueiro que o cometeu em direção de Messi que, assim, deixou de estar impedido; o segundo foi fruto de um agarrão e o gesto de Puyol foi apenas para tentar liberar Busquets do puxão que levava de Nesta. O resto é choro à milanesa e cegueira de quem prefere discutir o árbitro e não o jogo.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André