A TV Globo poderia economizar um bocado de dinheiro se dispensasse a participação dos comentaristas dos jogos envolvendo cachorros grandes do futebol brasileiro – como o de domingo entre Vasco e Corinthians,
Não foi a primeira nem será a última vez que a TV Globo apronta para cima dos telespectadores que não querem apenas ver 22 marmanjos disputando uma única bola, porque futebol não é isso para quem tem certo gosto pelo esporte. O que a TV Globo quer nos impingir, a nós que vemos futebol por outros olhos e que fazemos das tripas coração para tentar deixar de lado a paixão clubística, é que sejamos não mais que uns robôs de audiência, incapazes de contar com discernimento para nos indignarmos com as supostas análises de seus contratados.
Se a máxima rodriguiana de que toda unanimidade é burra é a síntese da subserviência desses trópicos e de um povo que longe está de ser cordial, como pregou aquele antropólogo ingênuo, desmentido a cada novo balanço de criminalidade nacional, a devoção pela neutralidade é uma patologia social muito mais grave, porque é a associação de burrice e de desrespeito.
Não faço parte de grupos de ressentidos que transportam para o campo esportivo as diferenças ideológicas que os tornam inimigos preferenciais da TV Globo. Sei separar as coisas. Tanto que é inegável que se trata da mais competente emissora de TV do País. A Globo não é líder por acaso há tanto tempo.
A síntese de seu sucesso deveria servir de exemplo a tantos empresários de comunicação desta Província que se colocam como estrelas da companhia, substituindo aqueles que de fato interessam aos leitores, no caso os jornalistas produtores de informação. A TV Globo é disparadamente a melhor porque sabe valorizar seus quadros profissionais. Para isso, mantém mais de uma centena de atores, atrizes, comediantes, narradores, apresentadores, comentaristas, entre tantos, com contratos longevos, estejam ou não na telinha e nos aparatos operacionais que sincronizam talentos e tecnologia.
Os Marinhos sabem que ninguém liga a TV Globo porque eles são acionistas e donos dos negócios. Eles se recolhem humildemente aos bastidores da administração. Na Província do Grande ABC vários donos de veículos de comunicação detestam bons jornalistas. Basta se destacarem para ser perseguidos e demitidos. Eles não aceitam sombras, quanto mais quem os coloquem em segundo plano.
Exatamente por conta do fato de que a TV Globo é um exemplo de profissionalismo, incomoda muito o tom adotado nas transmissões esportivas quando envolvem jogos de massas. Todos parecem pisar
Foi assim domingo no jogo entre Vasco e Corinthians, como poderia ter sido em outro jogo qualquer entre paulistas e cariocas, entre cariocas e cariocas ou entre paulistas e paulistas. A norma provavelmente não escrita recomenda que somente em caso de extraordinária diferença de rendimento entre dois cachorros grandes, o que é muito improvável, as narrações e os comentários podem encaminhar-se para o lado real do jogo. E mesmo assim sem grandes arroubos.
Assisti como quase sempre ao jogo de domingo tendo ao lado um de meus filhos. Como o faço há 300 anos, tenho a mania de tentar cantar as bolas táticas e técnicas. Sou fanático por estratégia e por tática do futebol. Não vejo graça assistir a uma disputa sem que informações antecedentes abasteçam meu senso crítico. Ver um jogo de futebol sem o respaldo teórico de um passado recente de produção das duas equipes é algo como ir ao cinema ou ao teatro sem lançar mão dos críticos, é trafegar em direção a um destino sem conhecer minimamente o trajeto, é almoçar num restaurante sem ter alguma informação sobre a qualidade do cardápio. A vida sem prerrogativas minimamente mensuráveis é uma aventura. Futebol sem o cardápio de qualidades e deficiências das equipes é como um quarto escuro que precisa ser descoberto à luz de velas. Um mapeamento preliminar abre fronteiras à compreensão dos fatos.
Durante todo o jogo entre Vasco e Corinthians fiz observações ao filho fanático na poltrona do sofá. É assim que sempre faço, num esforço hercúleo, confesso, para driblar a paixão. Algo que geralmente controlo num nível mais que satisfatório para quem é do bando de loucos. Menos, é claro, naquela epopéia recente da Taça Libertadores, porque aí seria pedir demais e mentir muito.
O que me atormentava durante todo o jogo entre Vasco e Corinthians era a discrepância entre o que dizia a meu filho e o que Casagrande, Arnaldo César Coelho e Cleber Machado relatavam na transmissão da TV Globo. Será que estava eu a endoidar? Será que perdera o faro analítico? Será que a febre da Libertadores ainda não passara? Bobagem, bobagem, bobagem. Em praticamente todos os jornais do dia seguinte, o Estadão e a Folha consumidos logo de manhã, reencontrei-me com a verdade que me parecia fugidia. Um time fora bem melhor que o outro durante quase todo o jogo, pelos motivos que cansara de repassar a meu filho nos momentos de silêncio da transmissão.
A TV Globo precisa rever os conceitos que a colocam numa geladeira de indiferença à inteligência dos telespectadores nas transmissões esportivas. O distanciamento acrítico nos jogos entre grandes equipes nacionais é proporcionalmente tão ofensivo quanto o protecionismo marqueteiro nos jogos da Seleção Brasileira, quando chega a nos enrubescer em lances capitais, ignorados e até mesmo glorificados quando nos favorecem (lembram-se do gol duplamente de mãos de Luiz Fabiano na última Copa do Mundo?) e demonizados do outro lado.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André