Muito mais que o surpreendente, solidário e competitivo Palmeiras de dois desmanches seguidos, o inesperado, coletivo e criativo São Caetano deu um peteleco na viciada estrutura do futebol brasileiro feita de muito marketing na mídia, salários milionários e glamourosas estrelas que não reluzem tanto quanto se divulga.
Pelo menos até que a decisão da Taça João Havelange se consumasse, Fluminense, Palmeiras e Grêmio foram adversários reais a cair sob o efeito dominó de um adversário atrevido. Corinthians, Santos, Flamengo, Botafogo, Atlético Mineiro e tantos outros grandes clubes brasileiros foram adversários virtuais batidos pela mistura de transpiração e inspiração de um grupo de jogadores que até dispensam o título nacional para se consagrar como novo paradigma.
Por que o vitorioso São Caetano entra para a história de um reformismo indispensável do futebol brasileiro e o igualmente vitorioso Palmeiras não serve exatamente como modelo a ser seguido? Simplesmente porque o São Caetano redescobriu a fórmula mágica do futebol brasileiro de corte salarial adequadamente apropriado à estrutura social e econômica e de moldura técnico-tática em que o talento coletivo tem peso preponderante.
O Palmeiras, também econômico nos holerites de atletas e da Comissão Técnica, depois de anos de fartura com a Parmalat, só fez a lição do São Caetano pela metade. Esbanjou vitalidade e senso coletivo, mas as pernas de seus jogadores não têm as habilidades das do São Caetano. Por isso, enquanto os embates do Palmeiras lembravam gladiadores atirados à sobrevivência na arena, o time do Grande ABC fez de cada jogo momentos mágicos do balé bolshoiano.
É verdade que o Azulão tem lá limitações individuais, a ferir de certo modo a tradição de craques em abundância que o Brasil sempre ostentou. Mas seria exagero pretender que um time mal-saído da Segunda Divisão de São Paulo fosse de cabo a rabo uma jóia de qualidade em todas as posições. Além do que, futebol é a consagração do conjunto, do sentido de equipe. Craques preguiçosos ou supostos craques, como muitos times grandes alardeiam, mais prejudicam do que beneficiam. Jogadores menos virtuosos, quando a serviço do todo, se tornam peças indispensáveis e passam a ter um valor de mercado superestimado.
Mídia demais faz mal
Longe das camêras de TV e do assédio da Imprensa durante toda a invernada de preparação para o bote final que encantou a todos os brasileiros, o São Caetano provou também que mídia demais faz mal. Sobretudo mídia-esportiva, compulsivamente passional, pouco preparada e ávida por criar craques de meia tigela.
Na maioria dos casos, repórteres e comentaristas fazem privilegiadamente a ação de tietes nas vitórias e de algozes nas derrotas. Com isso, acirram os ânimos de dirigentes e torcedores, frustram projetos que exigem prazo de maturação e intensificam processo cíclico de contrata-vende que pode fazer bem para os bolsos dos intermediários, mas são péssimos ingredientes para a composição de um grupo uniforme na tática e efetivo na técnica.
Exemplos não faltam na praça. O maior é o Corinthians, campeão do mundo em janeiro e vice-lanterna da Taça João Havelange em novembro.
Distante do endeusamento ou do escrachamento, extremos a que mídia, torcedores e dirigentes se lançam com frequência, o São Caetano pôde esculpir às escondidas o perfil regenerador de um futebol ao mesmo tempo artístico e operário. Enfim, um estilo que de inovador não tem nada quando se observa que, numa perspectiva histórica, foi exatamente assim que grandes equipes se forjaram.
Tempos em que os compromissos do futebol estavam plantados nos gramados, não em gabinetes de empresários ávidos por negociar passes que não só lhe rendem comissionamento mas também a perpetuidade dos 10% sobre os novos salários das estrelas.
Tomara que a descoberta do São Caetano pela chamada grande mídia e também por intermediários nem sempre escrupulosos não marque um novo tempo no clube da região, transformando-o num novo suco a ser sorvido com avidez. Normalmente a fama é o estilete que atinge de forma fatal o sentimento de solidariedade que alicerça o sucesso em esportes coletivos.
Inspirando o País
Espera-se que esse possível acidente de percurso não se consume como também que um novo esquadrinhamento do futebol brasileiro sob a inspiração do São Caetano tenha expansão ágil e fluente.
Não se pretende, entretanto, considerar que haja incompatibilidade entre salários eventualmente milionários e competência coletiva. O perfil franciscano (comparativamente aos grandes clubes) do virtuoso São Caetano e do guerreiro Palmeiras opõe-se à quase totalidade dos desvarios grandiloquentes dos clubes de maior prestígio no País, mas não necessariamente é a explicação simplificada para o sucesso dos dois e o fracasso dos demais.
Não é o dinheiro mais parcimonioso da folha de pagamentos do São Caetano que explica ou justifica o sucesso. A estrutura empresarial que o sustenta -- e que o manteve durante todo o tempo a salvo de assaltos políticos e de inescrupulosos intermediários que manipulam passes, emoções e interesses dos atletas -- é a força motriz que não pode ser vilipendiada.
O sucesso do São Caetano bom-de-bola não só obscureceu o sucesso do Palmeiras bom-de-briga como também fomentou um contra-senso político-institucional que deve ser contabilizado como trama maquiavélica do destino. Trata-se da constatação de que a administração pública que menos esforços fez nos últimos anos pela integração regional foi aquinhoada pelo paradoxo de ter contribuído, aos olhos menos exigentes, com a recuperação de parte da auto-estima que o Grande ABC perdeu com a sequência de desafortunadas ocorrências policiais, sindicais e econômicas.
Sim, porque ao desfilar em horário nobre em rede nacional de televisão e ao frequentar noticiários diários de jornais e emissoras de rádio, o São Caetano de diretoria empresarial encheu a bola do Grande ABC.
Total de 985 matérias | Página 1
05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André