É claro que estou escrevendo antes do primeiro jogo das semifinais da Copa do Mundo entre Brasil e Alemanha. Acabo de ler uma reportagem do Estadão sobre hostilidades que já se manifestam contra torcedores argentinos, especialmente aos que entoam supremacia de Maradona sobre Pelé. Brasileiros querem que os argentinos se calem. A matéria só confirma o que ando falando informalmente a amigos nos últimos dias: Deus nos livre de uma final entre Brasil e Argentina domingo no Maracanã.
Fosse eu Galvão Bueno, o animador-narrador mais poderoso do futebol brasileiro e ultimamente levado a dividir a função de âncora do Jornal Nacional, rezaria para que essa final não passe da teoria. Ele, Galvão Bueno, comunicador socialmente mais irresponsável do País, poderá ser criminalizado por incitar ódio aos argentinos. E de ter feito seguidores além do território da Rede Globo.
A reportagem do Estadão não deixa margem a dúvidas sobre o aumento da temperatura de hostilidade aos argentinos. Até outro dia a finalíssima entre as duas seleções era apenas uma projeção. Agora, pelo menos até que o Brasil perca para os alemães ou os argentinos sejam derrotados pelos holandeses, virou espécie de senha à violência prévia que já se consuma em vários nichos de argentinos que invadiram São Paulo. Também há se de rezar para que brasileiros e argentinos não se encontrem na disputa do terceiro lugar. Ou seja: o mecanismo técnico capaz de brecar esse indesejável encontro é que apenas uma das duas seleções esteja na final, não mais que isso.
Antiargentinização massificada
Sei que não faltarão leitores adeptos de Galvão Bueno a destilar o mesmo ranço patrioteiro de meia tigela como forma de autodeterminação de suposta superioridade verde-amarela que ultrapassa os limites dos gramados e se encaixa em pressupostos culturais, antropológicos e filosóficos. A mútua coletivização de individualidades estereotipadas desses dois povos vizinhos é o caldo de cultura a antipatias gratuitas, forjadas pelos espertalhões da comunicação como estratégia de conquista de audiência. Galvão Bueno se notabilizou ao longo dos tempos como porta-estandarte do antiargentinismo que a maioria dos brasileiros repete com a cognição típica das macaquices que los Hermanos nos dedicam de forma igualmente idiossincrática.
O limite cautelar entre o deboche divertido e a provocação ostensiva e detonadora de violências físicas é tênue quando os nervos estão à flor da pele nestes tempos de semifinais de Copa do Mundo e ficarão ainda mais sensíveis ante a possibilidade de um encontro nas finais.
Talvez Galvão Bueno e a Globo já tenham se apercebido dessa projeção explosiva. Tanto que reduziram a carga de discriminação aos argentinos. A iniciativa, provavelmente respaldada por pesquisas de comportamento das quais a Globo jamais se afasta em busca de contínuo aperfeiçoamento da máquina de gerar audiência, teria efeito apenas paliativo. O fermento adicionado inescrupulosamente ao longo de temporadas gerou um estado latente de animosidade sobre o qual uma reportagem ajuizada veiculada pelo Estadão tratou de chamar a atenção.
Talvez a melhor explicação para o estado de ebulição iminente entre brasileiros e argentinos na reta final da Copa do Mundo seja o desprezo estúpido de intelectuais esnobes como também de profissionais que vivem do futebol à atividade como auxiliadora na formação do caráter nacional.
Definição acomodatícia
Diferentemente, portanto, do que escreveu outro dia o apresentador Milton Neves, de linhagem semelhante à de Galvão Bueno --”futebol é a coisa mais importante entre as coisas menos importantes”. Ao tratarem o futebol como algo qualquer, os próprios profissionais do ramo desvalorizam a importância que eles representam como formadores de opinião e de costumes que acabarão por forjar o cotidiano comportamental de parcelas da sociedade.
Talvez a atitude seja proposital, defensiva e dissuasiva. Afinal, ao reduzirem a atividade a uma dimensão social que se distanciaria de conexões culturais que constroem relações pessoais e coletivas além dos estádios, esses predadores disfarçados de animadores esportivos poderão continuar a destilar bobagens sem que supostamente paguem por seus erros de avaliação e de incitação à agressividade dos torcedores, seja no âmbito nacional, seja no âmbito clubista.
Ou alguém duvida que muitos dos casos de violência de torcedores organizados estão relacionados diretamente ou subjetivamente ao comportamento de torcedores travestidos de comentaristas e narradores esportivos, além de dirigentes de clubes igualmente despreparados?
Galvão Bueno e seus seguidores precisam começar a rezar para que Brasil e Argentina não se encontrem no final de semana. O pau já está cantando nas ruas brasileiras, ante o silêncio quase generalizado da mídia verde-amarela e o descaso policial, como mostra a matéria do Estadão.
O ambiente ostensivo de consagração da Copa do Mundo não permite contrapontos. Vivemos sob a ditadura do esportivamente correto, de crônica esportiva à capela. Quando a Copa do Mundo se for, as verdades temporariamente sepultadas vão emergir. Ou o encontro de velhos rivais, pouco provável mas não impossível, quebraria a corrente de felicidade vendida pela mídia interesseira nos contratos de publicidade?
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André