A crônica esportiva seletivista, que só enxerga os grandes clubes, os clubes que dão audiência, esquece-se dos clubes médios e pequenos, quando não os tratam com indiferença. Com isso, faz coro ao pouco caso com que federações estaduais e a confederação nacional conferem a agremiações de menor porte.
As convocações de Everton Ribeiro e Ricardo Goulart pelo técnico Dunga são emblemáticas de um lugar-comum que a ficha técnica da maioria dos jogadores que defendeu a Seleção Brasileira na última Copa do Mundo revela: sem a incubadora ou sem o entreposto de equipes que estão fora da grade da TV ou ocupam grades subalternas, o futebol brasileiro estaria ainda mais debilitado. Ou seja: quando os clubes menos populares passarem a ter mais respaldo da TV e também do calendário esportivo, quem ganhará com os avanços que a estabilidade operacional proporcionará serão as grandes agremiações e o escrete nacional.
O calendário do futebol brasileiro é escandalosamente protetor dos grandes clubes, os quais contam com os dois semestres para competições ininterruptas. A Série A do Campeonato Brasileiro distribui recursos financeiros de acordo com o potencial de audiência, uma medida que é justa, porque meritocrática, mas não poderia deixar de reservar um bom naco para as demais divisões. Dinheiro de verdade, não merrecas como as atuais.
Os 12 clubes mais populares recebem mais e mais devem mesmo receber. Os demais integrantes da Primeira Divisão não ficam a ver navios como a maioria que disputa a Série B, cujos repasses da CBF são ridículos. Nas Séries C e D os valores monetários são ofensivos e as datas reservadas aos jogos são extremamente escassas.
O desemprego no futebol brasileiro do segundo semestre, após as disputas estaduais do primeiro semestre, é aviltante. Centenas de jogadores ficam a ver navios. Profissionais de comissões técnicas permanecem à margem das competições. Viram espectadores e telespectadores. Perdem tempo e condições de aperfeiçoamento. São convidados à vagabundagem compulsória. Sofrem eles e seus familiares. Já ouvi depoimentos que se assemelham a de retirantes em busca de sobrevivência.
Destinos diferentes
Everton Ribeiro e Ricardo Goulart desenharam destinos diferentes até chegarem à Seleção Brasileira. Ricardo Goulart foi descoberto ainda menino em São José dos Campos e virou uma das preciosidades do projeto de descoberta de talentos que o então presidente Jairo Livolis (de volta à presidência) inaugurou no Santo André. Um trabalho heroico, porque se sustentou numa plataforma modesta, de muito sacrifício. Dezenas de bons jogadores foram reveladas. O time campeão da Copa do Brasil contava com mais de uma dezena deles, entre titulares e reservas. Ricardo Goulart jogou 34 partidas e fez oito gols pelo Santo André. Foi negociado com o Internacional e passou pelo Goiás antes de arrebatar o grande público no Cruzeiro de Belo Horizonte. Sem a base do Santo André não teria sido o que é.
Everton Ribeiro tem origem nas equipes de base do Corinthians, mas como a maioria desses meninos dos grandes clubes de São Paulo e também de outros Estados, acabou emprestado para ganhar experiência. É muito improvável que talentos da base de clubes populares saltem para o estrelato sem alçarem voos em outros espaços. A crônica esportiva que tanto fala em renovação é a primeira a cobrar-lhes futebol de veteranos. Muitos meninos bons de bola são estigmatizados e jamais encontram o eixo. Sem o São Caetano na vida de Everton Ribeiro, certamente sua carreira não teria o mesmo encaminhamento de sucesso. As duas temporadas que passou no Azulão forjaram um novo jogador. Deram-lhe personalidade, autoconfiança e ajustes técnicos e táticos. Tudo que o Corinthians lhe negou.
Anteriormente, com trajetória semelhante, embora sem a mesma importância local, Hernandes, emprestado pelo São Paulo, foi lapido no Santo André até brilhar de vez ao retornar ao São Paulo e daí ser negociado com o Exterior, de onde saltou para a Seleção de Felipe Scolari.
Jogando na região
Tenho no futebol minha origem profissional e uma das muitas paixões que exercito diariamente. Vi Everton Ribeiro e Ricardo Goulart em ação muito antes de ganharem manchetes de centros mais ricos do futebol. Everton Ribeiro jogou a temporada de 2009 e 2010 no São Caetano. Foram 88 jogos e oito gols. Everton Ribeiro jogava mais recuado em relação às atuações posteriores no Coritiba e Cruzeiro. Por isso, com praticamente o mesmo número de jogos, fez três vezes mais gols pelo Goiás e pelo Cruzeiro. Há nos arquivos desta revista digital várias matérias que abordam coletivamente as atuações do ex-corinthiano. Vejam o que escrevi na edição de 8 de novembro de 2010:
O retorno do meia-atacante Everton Ribeiro já há algumas rodadas confirma a impressão de que a contusão que o retirou da equipe por mais de meia dúzia de jogos é a raiz à explicação dos desarranjos do Azulão. Everton Ribeiro é o único jogador do elenco do São Caetano como capacidade para transpor a distância entre meio de campo e ataque em velocidade, com técnica, letalidade, dinamismo e compartilhamento de jogadas com companheiros de ataque. Sem ele o São Caetano é um time previsível demais, embora com qualidade técnica em quase todos os setores. O desgarramento do grupo de equipes com possibilidades de acesso, depois de frequentar o G-4, tem muito a ver com a contusão de Everton Ribeiro.
Melhor da temporada
Já sobre Ricardo Goulart, o trecho que selecionei corresponde à matéria publicada nesta revista digital em 12 de novembro de 2012, antes do jogo do São Caetano com o Goiás, time no qual Goulart brilhou como o melhor jogador daquela temporada da Série B do Campeonato Brasileiro, saindo daí para o Cruzeiro:
O Goiás, mais qualificado, fecha melhor os espaços defensivos e não usa um camisa nove enfiado entre os zagueiros. O melhor time do campeonato é solidário sem a bola e integrativo com a bola nos pés, compactando os espaços defensivos e ofensivos. Tudo sob o comando de Ricardo Goulart, um meia de armação, um meia de articulação, um meia-atacante que começou nas divisões de base do Santo André.
Abundância de valores
Fosse o futebol brasileiro algo minimamente sensível, fosse o governo federal razoavelmente eficiente, fossem as administrações municipais mais interessadas em contribuir com os clubes que representam as respectivas populações, as equipes de base contariam com projetos específicos de suporte financeiro. Nada de tutela inconsequente. A meritocracia estaria em cada centímetro de gramado. A renovação do futebol brasileiro em bases sólidas é uma mamata porque a matéria-prima é abundante. Basta plantar para colher.
Por isso uma parte do dinheiro da TV que demorou em descobrir as vantagens de investir no futebol necessariamente teria de ser distribuída a projetos que tenham a competitividade como questão de honra, com compromissos de que os resultados balizariam novos incrementos financeiros. Formaríamos mais valores tipo exportação sem comprometer o abastecimento interno. Somos uma fábrica natural de craques. Basta querer. E agir.
E tudo começa pelo calendário de competições o ano inteiro. Nenhuma atividade econômica resiste a seis ou sete meses anuais de fechamento compulsório, de distanciamento da demanda. Se mesmo assim os clubes produzem meninos bons de bola, o que esperar com um mínimo de organização?
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André