Tenho horror a currículo. Jamais contratei jornalista algum por causa de suposto passado. Isso mesmo, suposto, porque não faltam aqueles que anabolizam histórico profissional ao inserir informações nem sempre corretas. Recheiam dados com títulos acadêmicos, cursos, congressos, o diabo. Esquecem que bom jornalista precisa saber escrever. E para saber escrever jornalisticamente é preciso ter paciência para ler. E para ter paciência para ler é preciso ter disciplina e determinação. E que por cima de tudo isso existe algo mais precioso ainda, que é vocação. Jornalista de ocasião é jornalista descartável, porque trata a carreira profissional exatamente como quem troca de camisa.
O que vale para a área de comunicação provavelmente tem o mesmo sentido em outras atividades. Duvido que alguém seja urbanista de mão cheia se está de olho em outros afazeres, que não se dedique para valer, que não vá fundo no aprendizado constante. A imagem vale para médicos, advogados, arquitetos.
Há gente que devidamente apadrinhada, porque supostamente gentil, agradável, prevalecentemente dócil, invariavelmente servil, carrega tonelada de postos na algibeira curricular. O que aparentemente sinaliza competência pode ser exatamente o contrário. Afinal, como é possível alguém rodar tanto em tantos empregos num mundo em que os especialistas qualificados são disputados a tapa?
Está certo que em determinados setores, como o jornalismo, por exemplo, impera em larga escala o compadrio deslavado, aquela coisa nojenta de ajeitar a vida do amigo de cachaça, de noitada, de ideologia, de sexo, dessas coisas que não tem qualquer relação direta com competência técnica.
Atestado de competência
Lembro-me de um episódio que me deixou particularmente feliz, ocorrido já há alguns anos quando um amigo havia muito distante decidiu por uma contratação de reforço editorial ao retirar da interlocutora pretendente a informação de que trabalhara dois anos sob minha direção. "Era o atestado de competência que queria", disse ele. É claro que foi educado o suficiente para omitir o outro lado da moeda, que conheço muito bem e que é o preço da exigência: também sou irrevogavelmente chato na postura profissional. Sou incapaz de negligenciar eficiência contextualizada, diga-se, às condições de trabalho.
Nos nove meses de Diretor de Redação do Diário do Grande ABC fiz poucas contratações. Deleguei aos editores-secretários a definição dos reforços, porque eles trabalhariam diretamente com os colaboradores. Contratações de fato não ocorreram durante minha jornada no Diário. Tivemos, em realidade, reposição de vagas. Menos do que as originais. Tínhamos adotado política de reposição que consistia em combinar redução numérica de colaboradores, melhoria salarial média dos novos contratados e queda dos custos para a empresa. O desafio era dar mais qualificação aos textos em combinação com foco na regionalidade.
Quando cheguei ao Diário do Grande ABC a empresa devia aos colaboradores só com a estupidez do Banco de Horas perto de R$ 1 milhão. A Redação era um festival de desperdício não porque os profissionais fossem mal-intencionados. A gastança se explicava porque não havia comando algum. Era um balaio de gatos. Conseguimos reduzir a dívida para R$ 150 mil, resgatáveis em 10 parcelas, entre outras razões porque o quadro de colaboradores da Redação é sério, dedicado, interessado no futuro da empresa.
Vacância comprometedora
Exatamente o inverso do que diziam diretores quando cheguei àquela Redação com uma montanha de dívida de horas consumidas além da carga padrão. Tínhamos casos extraordinariamente avacalhadores. Profissionais que, por conta do Banco de Horas, ficavam até quatro meses fora do expediente. Uma barbaridade organizacional tratada com absoluta indiferença porque quem cuidava da Redação não entendia nada de jornalismo e quem se imaginava administrativamente entendedor não cuidava do próprio rabo.
Alguém que traga no currículo um posto graduado no Diário do Grande ABC ou em qualquer outra empresa precisa ser devidamente analisado. Provavelmente não deveremos crucificar quem mimetizou o Banco de Horas da indústria automobilística, embora a medida tenha sido uma estultice. O vilão maior é quem não soube coordenar as peculiaridades da Redação. Tanto que, por força contratual, mantivemos a medida mas entregamos principalmente às chefias a responsabilidade de monitoramento. E os resultados foram excelentes. Deixamos a empresa credora no Banco de Horas. Menos mal, como se vê.
A gestão compartilhada do Banco de Horas foi apenas uma das ações administrativas que pratiquei à frente da Redação. Um dos acionistas do jornal queria porque queria que eu assumisse novas funções na empresa, que me instalasse no indefectível sexto andar, que me embrenhasse por vários setores, mas não aceitei. Cansei de lhe dizer que os leitores não querem saber quem são os mandachuvas administrativos e financeiros de uma companhia de comunicação. Querem de fato é consumir informação qualificada, feita por gente que entende do ramo, no caso os jornalistas.
O melhor currículo para qualquer profissional é associar às suas qualidades o desempenho da empresa a qual serviu durante todo o período, correlacionando-o com a herança recebida. A função eventualmente de destaque não pode estar dissociada dos resultados. Há profissionais que conseguem esconder por algum tempo toda a inaptidão ao cargo porque receberam legados positivos. O futebol tem visibilidade impressionante nesse quesito.
O sofrível Oswaldo de Oliveira recebeu um Corinthians arrumadíssimo do tagarela mas competentíssimo Vanderlei Luxemburgo e, como se sabe, ganhou o Campeonato Paulista, o Campeonato Brasileiro e o Campeonato Mundial da Fifa. Tudo porque o time alvinegro estava no piloto automático. Quando o recall de eficiência técnico-tática começou a sofrer avarias, Oswaldo de Oliveira foi incapaz de reenquadrar o modelo na bitola do sucesso.
Há muitos Oswaldinhos de Oliveira no mundo corporativo. Com a diferença de que conseguem fazer o time desandar sem conquistar nada na esteira do antecessor.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André