O futebol profissional do Grande ABC continua a resistir aos desafios da globalização cultural que, como a globalização econômica e a globalização financeira, é filha dileta dos avanços das telecomunicações. O clássico entre Santo André e São Caetano em meados do mês passado levou quase oito mil torcedores (foram exatamente 7.773 pagantes) ao Estádio Bruno Daniel, em Santo André.
Válido pela fase classificatória do Campeonato Paulista da Segunda Divisão, o jogo não marcou a enxurrada de espectadores que os mais eufóricos imaginavam, mas também ficou distante da decepção dos céticos.
Muito mais importante que o placar de 1 a 1 dessa espécie de Sansão regional (o grande Sansão nacional envolve Santos e São Paulo), o clássico deve servir como objeto de reflexão para quem entende que futebol é importante componente de cidadania e de integração regional, além de instrumento que contribui significativamente para construir culturas e inter-relacionamentos locais.
Apesar da resistência à globalização das emoções, o jogo deixou evidenciado que o futebol do Grande ABC precisa de muito suporte profissional para não ser varrido do mapa estadual com a cada vez mais vigorosa transformação da modalidade em negócio de milhões em investimentos. Afinal, essa é uma tendência irreversível, um implacável processo seletivo que atingiu duramente os clubes médios e pequenos da Europa, onde as grandes agremiações, moldadas em estruturas empresariais, descobriram a força da televisão há muito mais tempo.
A concorrência dos vizinhos grandes clubes paulistas, que em tempos remotos representava dor de cabeça a mais para a formação de torcidas próprias das representações locais, há pelo menos uma década está acrescida da volúpia com que a televisão brasileira entrega-se às coberturas das equipes nacionais que oferecem maiores índices de audiência e rentabilidade aos anunciantes e patrocinadores.
Overdose televisiva
Num domingo como o de 18 de abril, em que a já costumeira overdose de esporte nacional e internacional desfilava nos televisores, até que oito mil torcedores no frio Bruno Daniel significaram algo razoável. Mas poderia ter sido melhor. Para superar a cadeia de espetáculos que a televisão de sinal aberto e fechado oferece, num escravizante convite ao conforto da TV, os clubes médios e pequenos precisam buscar maior representatividade junto à comunidade.
Nesse ponto o Grande ABC perde feio para outras regiões igualmente detentoras de equipes médias e pequenas. Vale do Paraíba, Grande Campinas, Grande Ribeirão Preto, Baixada Santista, Grande São José do Rio Preto, por exemplo, são áreas geográficas exploradas por afiliadas das poderosas redes de TV e contam com grade regional de programação. Como ainda não inventaram meio de comunicação mais massificador que a TV, é claro que se torna menos complicado naquelas regiões agregar valores culturais às equipes de futebol e, também, tornar esses mesmos clubes elementos indissolúveis dessas mesmas culturas. A cobertura de treinamentos e de jogos é elemento estimulador aos clubes dessas regiões porque facilita o retorno de investimentos de patrocinadores e potencialmente mobiliza mais os torcedores.
No mesmo domingo em que Santo André e São Caetano enfrentavam-se pela quinta vez na história e levavam oito mil espectadores ao Bruno Daniel, Ribeirão Preto, com menos da metade da população dos dois municípios do Grande ABC, contava com 16 mil torcedores no chamado Come-Fogo, Comercial vs. Botafogo, um clássico que se repetia pela 103ª vez. Ribeirão Preto tem fartura de emissoras de televisão e de rádio, além de vários jornais diários. Exatamente o inverso do Grande ABC.
Castigo natural
Castigado pela topografia, o Grande ABC não pode contar tecnicamente com emissoras de sinal aberto. As grandes redes de televisão não têm afiliadas em VHF na região. A explicação é que faltam barreiras naturais, como montanhas, para possibilitar cortes da programação com consequente aproveitamento de grade local. Toda a Região Metropolitana de São Paulo é potencialmente satélite cultural da Capital, cujas emissoras de TV praticamente ignoram o que se passa além das fronteiras paulistanas. Exceto, é claro, os casos escabrosos que geram dividendos de audiência em programas de mundo-cão -- como a morte na Favela Naval, em Diadema, que virou hit nacional de brutalidade policial.
Sem TV aberta, a saída para o Grande ABC são as ainda residuais audiências das emissoras que transmitem por meio de cabos e em UHF. O Canal 3, mantido pela Canbras, conta com assinantes em Santo André e em São Bernardo, suas áreas de concessão no Grande ABC. Só no mês passado, exatamente no dia seguinte ao clássico, passou a ter grade regional de cunho comunitário. Ganhou até programação esportiva, mas tem sérios limites de atuação. Não bastassem as dificuldades técnico-operacionais, sofre com as amarras legais. As imagens de qualquer jogo do Santo André e do São Caetano não podem ser transmitidas nem mesmo em videoteipe, porque contrato entre a Federação Paulista de Futebol e emissoras de televisão prevê exclusividade a quem faz parte do pool de investidores.
Trata-se, como se percebe, de agressão às regras de livre-mercado, cuja essência é beneficiar o consumidor e o usuário de produtos e serviços. Nesse caso, o espectador fica privado de acompanhar as equipes da região porque as emissoras participantes do pool não se sensibilizam pelos índices marginais de audiência de uma atração exclusivamente regional -- mesmo que essa região tenha o terceiro potencial de consumo do País. Tampouco se lixam com o absurdo de impedirem que quem tem interesse possa usar as imagens.
Abuso econômico
Essa situação de evidente fanfarronice de poder econômico, acobertada pela legislação federal, aborta a força de reação de parte da desventura de o Grande ABC não contar com janelas de programações locais das grandes redes de televisão, que por si só garantiriam audiência representativa. A TV São Caetano, Canal 45, da Rede TV Educativa, transmite janelas de programação própria em UHF, conta inclusive com mesa-redonda semanal voltada para o esporte regional, mas sofre com as limitações de audiência. Primeiro porque o sistema de transmissão é captado somente por aparelhos de televisão mais modernos. Segundo, é absolutamente desigual o confronto técnico-operacional com as grandes redes de sinais abertos em VHF.
Sem o reforço de TVs de audiência massificada e de transmissões ao vivo e em teipe de emissoras alternativas, o futebol profissional da região sofre também com a esqualidez de cobertura radiofônica. A Nova ABC é a única rádio regional a acompanhar o dia-a-dia e os jogos de Santo André e São Caetano. As demais foram encampadas por pregações religiosas. A ABC tem investido muito em jornalismo, mas sofre com a baixa potência.
Durante o clássico entre Santo André e São Caetano a vibrante transmissão dos lances se confundia com a pregação não menos emocional de um pastor evangélico de emissora vizinha de frequência. Ajustar o dial à transmissão do jogo tornou-se desafio para quem estava na arquibancada. Bastava um movimento e lá vinha o pastor de novo com suas mensagens. Se é verdade que pouco se diferencia o padrão de transmissão entre os narradores de futebol e os pouco ortodoxos tribunos evangélicos, futebol e religião têm finalidades bem distintas. Ao esperado grito de gol contrapõe-se o de aleluia. Juntá-los é ter a sensação de ouvir um samba de crioulo doido.
Olha o rádio
Pelo menos desta vez quem decidiu ir ao Bruno Daniel com rádio a tiracolo não foi barrado do espetáculo, como em tantas outras jornadas. Finalmente foi revogada uma inexplicável proibição da Polícia Militar que impedia tradicional tabelinha dos estádios brasileiros -- o torcedor e seu radinho, que formam um trio ainda mais famoso quando completado pelo saquinho de amendoim.
Não foram poucas as vezes em que o Santo André perdeu público e dinheiro por causa dessa decisão supostamente voltada para garantir a paz nas arquibancadas e nas numeradas. Temia-se -- pelo menos essa é a justificativa oficial -- que os torcedores arremessassem pilhas em direção ao árbitro e aos adversários. O Maracanã de mais de 100 mil torcedores no mesmo domingo do clássico Santo André vs. São Caetano era um festival de radinhos portáteis e de bandeiras de mastros gigantes. Milhares de potenciais armas -- se se considerasse a interpretação da PM do Grande ABC.
Por sofrer os efeitos das dificuldades no setor de comunicação regional e dos impactos macroesportivos, Santo André e São Caetano precisam avançar na estrutura extrafutebol para elevar o quadro de aficcionados. O Santo André, fundado há 31 anos, tem mais tradição e história, por isso conta com maior contingente de torcedores. O São Caetano surgiu nestes anos 1990 e ainda não conseguiu converter em apoio consistente o fato de reunir a população socialmente menos desigual do Grande ABC. Mais que isso: como se sabe, São Caetano é o poço do bairrismo municipalista mais exacerbado da região, mas não converte essa característica na quantidade desejada para sua representação profissional.
Faltaram ao clássico do mês passado, mas é provável que não faltem na revanche, em São Caetano, condimentos que enobrecem qualquer espetáculo. Por que, por exemplo, uma banda de música não executou os hinos dos dois municípios, para transportar aos espectadores a dimensão cultural que o futebol tanto explicita? Exagero? Bobagem: meia hora depois de encerrado o jogo no Bruno Daniel, o Maracanã de Flamengo e Vasco e de 100 mil espectadores ouvia os acordes do Hino Nacional, com as duas equipes perfiladas como se fossem escretes nacionais.
Equipamentos de sonorização, com informações para os torcedores, também são de frequência improvável no Bruno Daniel. Que torcedor não gosta de ouvir o hino de seu clube, de saber quem está saindo, quem está entrando? Quem não espera uma informação sobre os resultados da rodada? Tudo faz parte do espetáculo, mas tradicionalmente o Santo André dá pouco valor a tudo isso. O grande Santos, bicampeão do mundo, faz do sistema de alto-falantes da Vila Belmiro praticamente um estúdio de rádio. O São Caetano pratica algo parecido no Estádio Anacleto Campanella.
Clássico embrionário
Santo André e São Caetano fizeram nas arquibancadas e numeradas um clássico morno, desses que nem parecem clássicos. Falta tradição a esse embate. Bem diferente dos grandes jogos de décadas passadas entre Santo André e Saad, Santo André e Aliança e Santo André e São Bernardo. O clima de rivalidade nem de longe se assemelha a outros tempos. Até o foguetório que saudou a entrada do Santo André em campo não pode ser comparado aos grandes clássicos regionais.
Mesmo o prefeito Luiz Tortorello, que acompanhou o jogo das numeradas, comportou-se como torcedor frio. Embora tudo o que se atribua ao São Caetano seja correlacionado à sua força política, quando a realidade é diferente e ele não passe de um torcedor especial, Tortorello deu entrevista à Nova ABC nos minutos finais do segundo tempo que nem o próprio presidente do Santo André, Jairo Livolis, seria capaz de articular. Resumidamente, Tortorello disse que o Santo André estava sendo injustiçado com o empate, por ter sido sempre melhor no jogo, e que fora prejudicado pelo árbitro com a marcação de pênalti supostamente equivocado, que o São Caetano soube traduzir no gol de empate.
Em outros tempos, tempos bravios, dirigentes do Santo André e do Aliança de São Bernardo ameaçavam se engalfinhar na defesa de argumentos sempre apaixonados. Desta vez, o Santo André colocou à disposição dos dirigentes do São Caetano a cabine de autoridades no setor de numeradas do Bruno Daniel, com direito a refrigerantes e sanduíches. A embrionária rivalidade ainda não quebrou o senso de civilidade pouco comum nos estádios de futebol.
Na verdade, o que se viu em campo foi o reflexo dos investimentos das diretorias dos dois clubes. O Santo André de recursos mais modestos, mantido com dinheiro basicamente do quadro associativo e em menor escala do patrocínio da Coop-Cooperhodia, é uma equipe de menor porte físico que faz da habilidade e da velocidade principais armas. O São Caetano de recursos generosos, sob a coordenação de uma empresa que terceirizou atividades ancorada num grupo de fornecedores de eletroeletrônicos da Casas Bahia, tem postura física mais avantajada e parece programado por computador. Se ao Santo André sobra criatividade, ao São Caetano nada parece mais evidente que a lógica do planejamento tático.
Por isso que, ao ser reduzido a 10 jogadores antes do vigésimo minuto, o São Caetano desarticulou-se totalmente. O Santo André só não venceu o jogo porque insistiu em atacar depois de marcar um a zero, quando o correto seria esperar em seu campo de defesa o desespero do adversário e aplicar contragolpes mortais. Ao subestimar o poder de reação do adversário, inclusive substituindo os dois laterais e bagunçando todo o sistema de marcação defensiva, o Santo André ofereceu de graça o contra-ataque a quem passou a contar com dois atacantes velozes -- Assis e Zinho -- e o empate acabou sendo natural.
Acesso duplo?
Esses detalhes técnico-táticos são apenas parte de um enredo de prospecção teórica do futebol profissional do Grande ABC. As duas equipes, verdade seja dita, devem se classificar para a fase final da competição. Preencher numa mesma temporada as duas vagas que darão direito ao acesso à Primeira Divisão dos grandes clubes paulistas é sonho que os mais fanáticos acalentam.
Se acontecer, jamais o Grande ABC terá alcançado sucesso tão estrondoso, porque nos tempos modernos só contou com Saad e Santo André na Primeira Divisão, mesmo assim em momentos distintos. E jamais terá tanta responsabilidade de mobilizar todas as forças sociais, políticas e econômicas para fazer de tal acontecimento a plataforma de embarque definitivo a uma nova realidade regional. Antes que a globalização econômica, financeira e cultural e também a Lei Pelé coloquem os dois clubes a escanteio.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André