Esportes

São Caetano é uma
lição de eficiência

DANIEL LIMA - 11/05/2004

Passada a fase de euforia, de exageros e até mesmo de desconfianças sobre a meritória conquista do São Caetano, novo campeão paulista de futebol, o mais recomendável é colocar os pés no chão e os olhos na televisão. Esqueçam a possibilidade de o Azulão reconfigurar o mapa de predileção clubística no Brasil, saltando para os primeiros postos. Exceto a excepcionalidade pouco provável de avançar para o estrelato com a força e a vertiginosidade do esfuziante Santos de Pelé e outros gênios do futebol dos anos 60, o São Caetano voltará à brilhante e quase sempre discreta rotina de disputar os primeiros lugares das principais competições nacionais e mesmo da Taça Libertadores da América.


Nada, portanto, interferirá de maneira profunda na sonhada arregimentação popular além fronteiras de seu próprio território, onde, aliás, o índice de paixão é baixo e o de admiração não é levado ao Estádio Anacleto Campanella em proporção equivalente ao brilho da equipe.


Qualquer situação que possa ocorrer dentro das possibilidades convencionais será insuficiente para sensibilizar as massas. Tudo porque futebol virou produto televisivo e a assiduidade para degustação nas gôndolas de audiência privilegia clubes de maior tradição e popularidade.


Nada é por acaso


Não é à toa que Corinthians, Flamengo, Vasco, São Paulo e Palmeiras, o quinteto das maiores torcidas do País, dominam a grade de jogos nas TVs abertas e concentram as transmissões pagas. Na era da TV, as massas de torcedores dos grandes clubes são espécies de reservas replicantes de paixão que a frequência de transmissão de jogos pelos torneios estadual e nacional eterniza pela retroalimentação de aficcionados. Em consequência, essas massas garantem também a perenidade de receitas que em parte compensam a fuga dos estádios e tornam os clubes cada vez mais dependentes das próprias transmissões.


Uma prova de que o São Caetano ainda é avaliado como produto de segunda linha pelos conglomerados da mídia se materializou três dias depois de festejar o título paulista, quando estreou na Série A do Campeonato Brasileiro contra o Vitória da Bahia, no Estádio Anacleto Campanella. As imagens do jogo não foram levadas ao ar. A TV aberta e as TVs por assinatura optaram por outros jogos de clubes mais populares em seus respectivos Estados. Sem disputar audiência em igualdade de condições, a popularização estadual e nacional do São Caetano não ultrapassa os limites dos sonhos.


Esse é o preço que clubes de municípios periféricos de regiões metropolitanas pagam pela ousadia de procurar disputar palmo a palmo, dentro de campo, o que os grandes em outros tempos consideravam favas contadas, ou seja, lugar permanente entre os bambas do futebol. 


Patrocinadores preocupados


A final entre São Caetano e Paulista representou 20 pontos a menos de audiência para a Globo e a Record, que transmitiram o jogo ao vivo. A comparação se refere à final do ano anterior, entre Corinthians e São Paulo, que alcançou 52% de audiência. Os 32% de São Caetano e Paulista significaram números preocupantes para os patrocinadores das cotas vendidas com a perspectiva de uma final de grandes clubes. Nada mal, entretanto, para a equivocadamente chamada final caipira, como a mídia menos atenta identificou a disputa, desconhecendo que São Caetano está colada à Capital cosmopolita e seus moradores não têm por costume forçar o erre como os interioranos.


Tão constrangedor quanto a quebra de audiência foi o apelo do narrador da TV Globo, Cleber Machado, durante o primeiro jogo da decisão. Ao ver um Pacaembu com apenas 10 mil torcedores, ele ultrapassou os limites da discrição e cobrou maior empenho dos dirigentes dos dois clubes em lotar o estádio no jogo seguinte. Nada pior para uma final do que uma moldura de quase desolação num espetáculo que exige emoção nas arquibancadas e disposição no gramado. A reprimenda deu resultado porque no domingo seguinte foram 25 mil pagantes de um total de 37 mil lugares disponíveis.


Empresários de São Caetano foram estimulados a levar mais aficcionados. Adquiriram milhares de ingressos que incluíam transporte coletivo. Valeu o sacrifício porque a torcida em azul e branco festejou a conquista na Capital e a estendeu, agora sim de forma densa, até altas horas na Avenida Goiás, espécie de Avenida Paulista das comemorações locais.


Efeitos do capitalismo


Desprezar os efeitos do capitalismo de resultados no futebol é tão estúpido quanto acreditar que políticos de carreira descartarão os votos da periferia que geralmente abandonam durante grande parte dos mandatos. São Caetano e Paulista de Jundiaí, os invasores das finais do Campeonato Paulista, pregaram uma peça no teatro de expectativas que pretendia abrir as cortinas para finalistas mais tradicionais e populares exatamente no ano em que a Capital festeja 450 anos de fundação. Sobrou a ironia de que um dos representantes do Complexo de Gata Borralheira, síntese do sentimento de inferioridade do Grande ABC diante da Capital, acabou roubando a cena.


Mas o que se pode fazer se o Corinthians vive dias de “Faz-me rir”, uma canção de tanto sucesso nos idos de 1961 que acabou incorporada à medíocre campanha da equipe naquela temporada? E o São Paulo do auto-engano de um marketing tão abusivo que transforma um lateral sofrível como Gabriel em craque como o pai, Wladimir. Um erro que apressou a assinatura de um contrato milionário de cinco anos sem, evidentemente, o retorno desejado.


No Santos de Leão o que se observa é a costumeira quebra da unidade depois do encantamento de duas temporadas, com jogadores valorizados e já programados para bater asas internacionais. O Palmeiras mal saído da Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro ainda não se deu conta de que o trem da Série A estadual e nacional exige mais que um supostamente bem-acabado modelo tático. Ainda não se encontrou fórmula capaz de construir uma grande equipe sem um grupo de jogadores que se rivalize com os principais concorrentes.


Ocupação de espaço


No vácuo de mediocridade, desorganização e imprevidências dos grandes clubes paulistas -- reflexo quase linear do próprio futebol brasileiro -- a antítese São Caetano só poderia mesmo fazer sucesso. Méritos que nem todos conseguem entender ao enxergar relações incestuosas entre a direção do clube, formada por investidores, e o comando político-administrativo do Paço de São Caetano. Nada mais inapropriado. 


A influência do prefeito Luiz Tortorello na série de sucessos incompletos de quatro vice-campeonatos seguidos e também no festejado título paulista se limita à tradição do poder público de pequenos e médios clubes brasileiros.


As prefeituras costumam disponibilizar funcionários públicos para manutenção dos estádios municipais, abrem mão da taxa de uso, colocam ambulância para primeiros socorros em dias de jogos e introduzem outras providências para estimular os dirigentes esportivos a investir num dos mais interessantes instrumentos de marketing institucional.


Quanto custaria a divulgação de São Caetano e do Paulista de Jundiaí nos níveis que as finais do Campeonato Paulista proporcionaram?


Projeto empresarial


O título paulista do São Caetano é o corolário de um projeto empresarial que observa o futebol com a lupa da rentabilidade de um negócio ainda pouco compreendido no País. O modelo diretivo passa ao largo do emocionalismo vazio que ainda permeia a maioria dos clubes brasileiros. O Azulão extrai o máximo de vantagem e de produtividade do fato de ser um clube de periferia da Capital e detentor de torcida tão pequena quanto pouco exigente. Essas condições são a base da tranquilidade para que o planejamento não sofra ziguezagues como os que os grandes clubes são obrigados a conviver na sequência de duas ou três derrotas ou à falta de títulos.


Ao ingressar nos dois campeonatos mais importantes do País e também ao abrir brechas na Taça Libertadores, o São Caetano alcançou a plataforma de embarque de um calendário competitivo e assegurador de receitas dos direitos às transmissões televisivas. É verdade que recebe cotas inferiores às dos grandes clubes. Mas aí entra o fator gerenciamento. Com R$ 4,5 milhões distribuídos ao longo da Série A do Campeonato Brasileiro deste ano, o São Caetano fica atrás do quinteto de ouro, que receberá, individualmente, R$ 12 milhões. Como também perde em outras fontes de renda -- venda e patrocínio das camisas e receitas de bilheterias, por exemplo -- a ordem é tratar o futebol com absoluta racionalidade. 


Sem pressões externas, típicas dos clubes de massa, o Azulão não se precipita na tomada de decisões. Negocia jogadores sem contratempos. Extrai o máximo de cada bom momento individual a ponto de as estrelas que o deixam geralmente perderem o brilho com novas camisas. Sem contar que a estrutura enxuta e profissionalizada no quadro diretivo-empresarial lhe confere agilidade na tomada de decisões. 


Resolvendo complicações


O São Caetano sabe fazer dos problemas solução na concorrência desigual entre os clubes brasileiros. Com apenas 14 anos de atividades, em contraste com equipes já ou quase centenárias, o São Caetano e outros clubes médios do futebol brasileiro fora do circuito mais badalado e frequente da TV precisam compactar a estrutura gerencial e tornar dinâmica a administração, em vez de se espelharem no embaralhamento diretivo dos grandes times, cujos conselheiros são sempre um tormento. Basta ver as mais recentes complicações que atingem o São Paulo em véspera de eleições. 


Embora guardado a sete chaves, é financeiramente lucrativo o desempenho do São Caetano a partir de 1997, quando o gerenciamento convencional de clube então sob comando do prefeito Luiz Tortorello foi substituído pelo grupo de empresários. Ao deixar a Terceira Divisão do Campeonato Paulista e a Terceira Divisão do Campeonato Brasileiro para a mais empolgante ascensão na hierarquia do futebol nacional, o Azulão capitalizou lucros duplamente desafiadores. Além de atropelar os adversários dentro de campo, expôs toda a fragilidade organizacional dos clubes mais tradicionais, envoltos em disputas de egos dentro e fora dos gramados.


Resta saber até que ponto o São Caetano será capaz de manter-se imune ao deslumbramento dos clubes médios que um dia ousaram penetrar no seleto grupo de campeões de Primeira Divisão, casos do Bragantino e do Internacional de Limeira no futebol paulista. Acredita-se que a blindagem será mantida porque, ao contrário de seus antecessores de estrelato, o São Caetano é intestinalmente empresarial e não se deixará levar pelas emoções -- que devem ficar restritas às arquibancadas e à passarela de comemorações da Avenida Goiás.


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