O despreparo da crônica esportiva no tratamento de questões que transcendem o ambiente ao qual está acostumada resplandece quando torcidas uniformizadas patrocinam espancamentos como no mês passado envolvendo corintianos e palmeirenses. Nessas oportunidades não faltam os bufões de sempre, para quem o mundo se resume a uma bola de futebol e que por isso circunscrevem as tragédias em geral ao circuito esportivo.
Desconsideram o fogo que alimenta a fúria de jovens em forma de desemprego e de incauta entrega às drogas, problemas crônicos de um País que insiste em perder a corrida para o presente, quanto mais encontrar o futuro.
As torcidas organizadas não são mais nem menos problemáticas que outras manifestações coletivas das quais fazem parte jovens brasileiros. Não são torcedores uniformizados que inviabilizam matinês e noitadas dançantes de clubes associativos, por exemplo. O esgarçamento da margem de segurança não se dá porque eles são torcedores, mas porque são jovens ávidos por demonstrações de força. Agem no ritmo da desesperança e da revolta. Em grande maioria procuram a música como manifestação cultural, mas estabelecem relacionamento em que a confrontação é a lei suprema.
Mais manifestações
Também são jovens adolescentes os protagonistas de rachas de veículos. Eles se aperfeiçoam na busca de transgressões que lhes rendam auto-estima a platéias embevecidas. São celebridades circunstanciais especializadas em driblar a vigilância nem sempre atenta de policiais escalados para impedir que ruas virem pistas de corrida.
A algazarra é geral e não há entre eles, como nos bailes, qualquer simbologia explícita de clubismo esportivo. São jovens afetivamente desnorteados pela flacidez educacional tanto quanto pelo excesso de liberdade dos pais, cada vez mais ausentes porque a permanente crise econômica obriga a todos a se desdobrarem em suas atividades profissionais. Menos entre aqueles que nem de ocupações regulares dispõem.
Também são jovens adolescentes sem qualquer indicativo de vestimenta de paixão clubística aqueles bandos que frequentam os bares mais movimentados e incrementados de sons nem sempre civilizados que chamam para si a atenção dos demais frequentadores, quando não os desafiam para brigas.
Passaporte ao anonimato
Andar em grupo é o passaporte ao anonimato, embora, paradoxalmente, cada um dos jovens arrivistas se sinta dono de personalidade própria quando se projeta coletivamente nas noitadas intermináveis. Essa ambiguidade de anonimato coletivo e individualidade preservada parece um jogo de espelho comportamental, utilizado de acordo com as circunstâncias. Para o bem e para o mal.
A diferença entre os jovens que se unem em torcidas organizadas e os jovens das baladas diversas é apenas quantitativa e associada à notoriedade. Nas tardes ou noites de futebol, até mesmo pela força de atratividade da paixão do esporte nacional, eles são mais numerosos. A cada cabeça que se acrescenta ao grupo, mais complicações comportamentais florescem.
A visibilidade das torcidas organizadas e os efeitos danosos de entreveros entre facções rivais centralizam as reações da crônica esportiva na exata medida em que obscurece a capacidade de entendimento do fenômeno porque outros segmentos formadores de opinião, por considerarem futebol algo menos importante culturalmente, dão de ombros à gravidade do problema.
Exigir que os cronistas esportivos enxerguem mais que uma bola de futebol é um esforço de expectativa comparável à proposta de solicitar a cientistas da Nasa que desvendem o fenômeno da violência das torcidas organizadas. Tanto um quanto outro estão em mundos à parte, particularíssimos.
Alguns poucos cronistas esportivos conseguem esgueirar-se para observar que há muito de sociologia a explicar o entretenimento recheado de brutalidade. Longe estão eles de saber que os jovens torcedores são protagonistas de escaramuças só aparentemente relacionadas ao futebol.
Nó nacional
Não são especificamente os jovens torcedores de uniformizadas o grande problema como alguns pretendem fazer crer. Nem mesmo o são nos estádios esportivos ou nos redutos de sedes associativas. Os jovens de maneira geral, tanto os torcedores quanto os frequentadores de noitadas dançantes, noitadas de bebedeiras e noitadas de rachas, entre tantas outras noitadas, são o grande nó nacional, vítimas maiores do desemprego e das estatísticas de homicídios.
O Brasil é provavelmente recordista mundial de criminalidade entre jovens de 15 a 24 anos. As anunciadas 23 mortes que teriam acontecido em refregas de torcedores organizados são insignificantes perto dos números recentemente divulgados que extratificam a guerra de guerrilhas no campo minado do tráfico de drogas.
E, verdade seja dita, parte dessas 23 mortes de torcedores organizados deve ser debitada à própria crônica esportiva, cujos muitos representantes, especialmente nas emissoras de TV, exercitam o mais deslavado jogo de predileções. São especialistas em exacerbar rivalidades estimulando tramas, acentuando deslizes, instigando dúvidas, propagando animosidades — tudo em nome da audiência.
Sim, não faltam programas esportivos que guardam estreita relação com as tardes sanguinolentas com que a TV brinda o público na metrópole mais importante da América do Sul. Transmitem-se ao vivo cenas de um cotidiano em que a violência suplanta estupidamente qualquer resquício de civilidade.
Simplificação estúpida
A simplificação com que os desvarios dos torcedores organizados são tratados pelos jornalistas esportivos só contribui para reduzir a terapêutica necessária para retirar o Brasil do fim da fila do desprezo à juventude.
A obtusidade transmite a sensação de que nossos meninos só estão irreversivelmente perdidos quando exibem camisas de seus clubes preferidos. Antes fosse, porque, infelizmente, estamos perdendo grande parte de uma geração nessa disputa desigual em que o desenvolvimento econômico é goleado pela desesperança.
Como seria bom se fosse possível resolver o desalento dos jovens brasileiros com um rápido aperto policial sobre os encamisados clubísticos. Ações nesse sentido, se interpostas com rigor, vão melhorar o ambiente nas áreas próximas e nos estádios de futebol, mas, em contraste, vão mascarar um quadro de desalento que mesmo agora poucos conseguem detectar — evidentemente que longe das cabines de imprensa de uma crônica monocultora do futebol como espetáculo sempre potencialmente magnífico, mas extraordinariamente alienador.
Falta educação
Não se deve, entretanto, esperar por milagres num País que é incapaz de preparar seus jovens, como provou recentemente a especialista em recursos humanos Sofia Esteves do Amaral. Ela acompanhou em 2002 o destino de 180 mil currículos de jovens que disputaram 872 vagas de estágio e de trainee em empresas brasileiras. Além da concorrência encardida por vagas em empresas mais admiradas — uma das quais chegou a receber 20 mil currículos —, o que surpreendeu a especialista foi a dificuldade de preenchimento dos postos porque a baixa qualificação educacional superava a própria fila de candidatos.
A conclusão de Sofia Esteves do Amaral é que as escolas não preparam os alunos para o mercado de trabalho. A formação escolar por si só não basta. É preciso reunir iniciativa, persistência, comunicação, trabalho em equipe, flexibilidade e raciocínio analítico. Em vez de sintonizar-se com as exigências do mercado de trabalho de um País que nos últimos 23 anos só patina na economia, com crescimento per capita do PIB (Produto Interno Bruto) de apenas 0,3% contra média mundial de 1,5%, o que os jovens estudantes revelam é uma face constrangedora.
Impunidade prevalece
Os números estão escancarados em pesquisa da Ipsos Brasil em nove Capitais brasileiras com estudantes de escolas privadas. Nada menos que 59% disseram que fazem o que querem e não se preocupam com os outros, em evidente quebra de elos de respeito e solidariedade. Outros 45% afirmaram que em alguns momentos é aceitável desobedecer à lei. Mais más notícias: 82% simplesmente vêem falhas na Justiça e acreditam que a impunidade seja a regra.
De maneira geral, professores e psicólogos registram diagnóstico sombrio ao captarem essa desmotivação crônica dos alunos determinada pela falta de valores e de objetivos. O consumo de drogas e de álcool nas festas é a coroação do desajuste.
Pesquisa semelhante com estudantes de escolas públicas não oferece resultados diferentes. O jovem de classe média assemelha-se ao jovem de periferia. Esperar que tanto um quanto outro tenha comportamento exemplar nas vizinhanças e nos campos de futebol, nos clubes associativos, nas avenidas e nos points de música e entretenimento noturnos tem o mesmo sentido que ver jorrar ouro em pó em poços de petróleo já desativados.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André