As transmissões esportivas nas emissoras de TV são a extensão muitas vezes dissimulada outras vezes escancarada das torcidas organizadas das arquibancadas. São específicas as situações nas quais a crítica se manifesta com a limpidez forçada da desintoxicação clubista. Apenas nos jogos entre times grandes há comedimentos – e também omissões -- de quem pisa em ovos para não ferir suscetibilidades da audiência.
A conversão à amenidade, vocação das transmissões antes mais acentuada no rádio e mais tarde consolidada nas TVs, se consolidou de vez quando os torcedores organizados das arquibancadas passaram a monitorar os torcedores organizados travestidos de jornalistas.
A grande imprensa omite escaramuças, mas redes sociais e sites revelam frequentemente casos complicados. Não foram poucas as vezes que determinados profissionais se viram impedidos de trabalhar e correram de volta aos estúdios com escolta policial. Um comentário considerado injusto nos confrontos de times grandes do mesmo Estado basta a exageros de grupos organizados nas arquibancadas. Daí, as redes sociais reverberaram. A corrente de terrorismo esportivo ganha força e muitas vezes se torna incontrolável.
É emblemática a situação da Rede Globo, que conta com a maior audiência e a melhor equipe de jornalistas esportivos e convidados muitas vezes trapalhões. Caso do comentarista Casagrande, capaz de surtar em derramamento de elogios que desaparecem e viram lamúrias se o placar eventualmente o contraria. A ciclotimia do ex-centroavante e torcedor do Corinthians se pronuncia mais acentuadamente nos jogos do atual líder do Campeonato Brasileiro.
Exigências exageradas
Há outra característica em Casagrande comum aos demais jogadores de futebol que encerraram carreira e estendem a atividade nas cabines de transmissão. Todos, invariavelmente, quando decidem saltar do muro da complacência crítica, são mais exigentes e corrosivos com suas ex-equipes.
Sugerem uma linha de atuação que a psicanálise explica: para demonstrarem que não se deixam contaminar pelo coração, fazem da razão exacerbada a própria negação da autonomia que pretendem passar aos telespectadores.
Quem conhece a alma dos torcedores de futebol sabe quando toda a couraça de suposta imparcialidade se rompe. Conclusão? A maioria desses comentaristas marcados pela intimidade com um determinado time vive o drama da dualidade de esgueirar-se entre a frieza programada e o entusiasmo incontido.
Sei o que estou escrevendo porque já escrevi milhares de textos sobre jogos de futebol e não nego o esforço de me equilibrar no terreno movediço da paixão a açoitar a pretendida frieza. Foram tantos os embates dessa tipologia que enfiei na cabeça que seria possível conciliar os dois sentimentos na medida em que impusesse autocontrole emocional – o que é bem diferente, muito diferente, do condicionamento destes tempos vinculado à audiência e à segurança pessoal. Sem contar que ao vivo é outra história.
Experiência desafiadora
Querem saber o resultado de minha experiência de torcedor sufocado pelo jornalista comprometido com os fatos? Quando vejo meu time jogar, seja meu time de coração (ou meus times de coração da região) e meu time de coração no ambiente nacional (único, exclusivo, embora às vezes flerte com interesses nada puros com outras cores, sempre em favor das cores de origem), quando vejo meu time jogar, repito, procuro decidir desde o início quem vai assistir aos 90 minutos. Quem? Como? Ora, se o torcedor que mora em meu peito ou o jornalista que insiste em ocupar espaço em horas impróprias.
Geralmente cedo espaço ao jornalista. Não pretendo terminar o jogo como muitos torcedores que não enxergam um palmo à frente do nariz e demoram a compreender o resultado. Quando o entendem.
Essa história de que somos milhões de técnicos de futebol não passa de balela. Detesto discutir futebol tanto quanto é perda de tempo tentar mostrar aos fanáticos partidários que Dilma Rousseff caiu porque era incompetente e levou o País a uma pindaíba de dar dó, enquanto Michel Temer é o que está ai, pendurado no Congresso Nacional para não sucumbir a um escândalo materialmente muito mais explícito do que todas as barbaridades bem escamoteadas por Lula da Silva.
Diplomacia protetiva
No grupo de ex-jogadores comentaristas que se deixam trair pela paixão em meio ao ambiente de transmissões esterilizadas pelos patrocinadores e pelos censores de audiência (censores com “c” mesmo) incluo o também ex-centroavante Caio Ribeiro. O são-paulino que jamais foi um jogador de talento é um refinado usuário da linguagem da conciliação. É muito pouco provável ouvir de Caio Ribeiro um comentário mais agudo. A destreza com que sempre encontra um verbete que ameniza a contundência que a realidade imporia o coloca num patamar de elegância poucas vezes capturado no ambiente passional do futebol. Encontrá-lo numa posição crítica mais explicita é uma missão impossível. Rogério Ceni, seu amigo pessoal, passou por todos os testes de fidelidade de Caio Ribeiro -- até esborrachar-se numa série de péssimos resultados. Caio Ribeiro é, portanto, tão sutil que poucos identificam o favoritismo pessoal em meio à contenção verbal.
Embora se espalhem modelos diversos de comportamento das equipes de jornalismo esportivo na televisão brasileira, prevalece majoritariamente o ambiente festivo supostamente garantidor de audiência. Entre afirmar que o Corinthians perdeu dois pontos diante do Avaí em Santa Catarina, o que reduziu para seis pontos a vantagem sobre o segundo colocado do Brasileiro, o Grêmio, e destacar que foi a 29ª invicta do técnico Fábio Carille, a Globo preferiu a segunda alternativa. Para o torcedor corintiano, provavelmente as duas situações caberiam perfeitamente numa mesma equação.
Torcida múltipla
Embora as transmissões esportivas da Rede Globo carreguem nas cores de uma parceria compulsória que envolve interesses contratuais entre a emissora e as agremiações, o padrão de qualidade é infinitamente maior que a concorrência. Na realidade, são posições antípodas: nas emissoras em busca de audiência a qualquer custo o que encontramos são torcedores organizados sem pudor, sem disfarce. A Globo é espécie de torcida organizada múltipla, disposta a agradar gregos e troianos, desde que gregos e troianos sejam grandes clubes em confrontos diretos. Quando separados diante de adversários de porte médio ou pequeno, a preferência pela audiência é marcante.
As transmissões esportivas não são, portanto, nenhuma garantida de processo pedagógico à compreensão do que se passa, por exemplo, no Campeonato Brasileiro. As programações suplementares de emissoras de assinantes e, principalmente alguns dos grandes colunistas esportivos do País, como Tostão, desvendam ou ajudam a desvendar cromossomos das equipes, em muitos casos esquartejando-as técnica e taticamente para repassar detalhamentos que leigos jamais registrariam.
Mas no fundo, no fundo, se contam nos dedos de duas mãos os profissionais do ramo com embasamento teórico para destrinchar as entranhas das equipes. A maioria dos torcedores de futebol não tem ideia do quanto é interessante conhecer as duas equipes que se enfrentam. O jogo se torna muito mais compreensível. Algo como acompanhar os críticos de cinema. Mesmo sob o risco de que tanto num caso como no outro o olhar particular de interesse passional ou ideológico contamine a avaliação.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André