Os dois textos mais antigos desta revista digital sobre futebol foram publicados originalmente no Diário do Grande ABC. Era março de 1983. Deixara o cargo de Editor de Esportes daquela publicação para alguém mais que competente que, havia muito tempo, dava conta do recado, o jornalista Donizete Raddi. Passei a ocupar a função de coordenador de redação juntamente com os também jornalistas Ademir Médici e Valdir dos Santos. Menos de três anos depois deixei o jornal e fui trabalhar na sucursal do Estadão. Mas não é isso que importa. O assunto é o que chamei ao título deste artigo: você iria ao estádio onde seu time profissional da região joga vestindo uma camisa híbrida, nas cores e distintivo da equipe local no lado esquerdo e nas cores e distintivo de outra equipe, no lado direito?
Contava este jornalista com não mais que 32 anos de idade. Contava outro jornalista, dos bons jornalistas, Luiz Carlos Sperândio, com praticamente a mesma idade. Naquele dia, 18 de março de 1984, escrevemos para o caderno de esportes do Diário do Grande ABC duas matérias que se completavam. Tratamos de algo que parecia insinuar uma febre nos campos de futebol: as camisas divididas.
O jogo disputado no Estádio Bruno Daniel entre Santo André e Operário de Campo Grande, pelo Campeonato Brasileiro, expunha o que poderia ser um fenômeno em termos de marketing. O tempo passou e não há informações de que a ação tenha frutificado. Mas insisto na pergunta: você que torce pelo Santo André, pelo São Caetano, pelo São Bernardo ou pelo Água Santa, nossas principais agremiações, e também por equipes da Capital, aceitaria ir ao estádio com a camisa dividida?
Espere para decidir
A leitura dos dois textos que se seguem é elucidativa. Não responda agora. Consuma o que eu e o Sperândio (amigo que já se foi desta vida depois de uma carreira inigualável na cobertura do voleibol brasileiro) escrevemos naquela oportunidade.
Confesso que ao reler os dois textos antes de decidir repassar aos leitores desta revista digital fiquei em dúvida se manteria a convicção do passado, de que camisa dividida não era um bom negócio para o Santo André. Trinta e três anos depois e tantas mudanças consolidadas no futebol, acho que poderia mudar de ideia. Prometo que vou pensar a respeito para dar uma resposta definitiva.
Será que este jornalista toparia ver as equipes da região com camisas divididas? Até que ponto camisas divididas seriam um convite a conflitos dentro e fora dos estádios nestes tempos de selvageria, levando-se em conta que teríamos encontros indesejáveis entre torcidas rivais da Capital? Esse ponto nem chegou a ser sequer mencionado nas duas matérias que se seguem. A violência veio depois.
Enquanto não decido o que faria mais de 30 anos depois, sugiro uma leitura atenta. Os dois textos fazem parte da história esportiva da região.
Camisa dividida só poderia
ser uma ideia de mercador
DANIEL LIMA -- 18/03/1984
Só mesmo um mercador poderia idealizar a camisa dividida, exportando-a para diversos cantos do País, entre os quais Santo André. A reportagem do companheiro Luiz Carlos Sperândio, publicada nesta edição, transforma o assunto em saborosa polêmica porque, assim como existe quem defenda a grotesca mistura de cores, há outros que não aceitam. Nós estamos neste bloco, porque, longe de sermos rotulados de reacionários comportamentais, também não pendemos muito para certas revoluções.
Entendemos perfeitamente a análise dos conceituados psiquiatras ouvidos pelo repórter, bem como o apoio de alguns torcedores à camisa dividida, mas não abrimos mão da defesa do bairrismo no Grande ABC, o que, decididamente, a camisa dividida pretende pulverizar, voluntariamente ou não.
Felizmente, a maioria pensa assim, porque, de mais de 12 mil torcedores que estiveram no Bruno Daniel no último domingo, apenas 12 vestiram camisa dividida. E se é verdade que o vendedor reclama da falta de material, que vem diretamente de Londrina, confeccionado e expedido à revelia das ambições e necessidades de libertação cultural do Grande ABC, agrada saber que a maioria que se interessa pela aberração visual e filosófica é um novo estrato da torcida do Santo André. Tratam-se de torcedores ainda renitentes ao seu primeiro amor — o clube grande — mas já envolvido pelas cores azul e branco. Tanto que já dividem a camisa com as cores locais.
Pregando divisionismo
Muitos poderiam entender que esse gesto deve ser saudado, não execrado, porque se trata de uma conquista, mas, se na essência o é, realmente, a impressão que destila, e que supera a essência só revelada com o diálogo, é de que prega o divisionismo. E quem divide objetos ou amores sempre vive o momento de definição. E nos parece que, dada à preocupante estrutura do Santo André, clube sujeito a chuvas e tempestades, lhe convém muito mais ter um público só seu, custe o tempo que custar mas viável, ao invés de, de repente, ver-se esquecido em momentos de participação popular indescartável.
Por falar em torcida do Santo André, não nos parece que seja tão fria como falam. Ocorre que se trata de um fenômeno de alguns poucos anos e não se tem a escola das mais tradicionais, que, a bem da verdade, principalmente em São Paulo, não são assim tão festivas. Lemos atentamente esta coluna da última quinta-feira, escrita pelo companheiro Edélcio Cândido, onde se abordou a colocação de um torcedor desconsolado com o silente acompanhamento da massa que esteve domingo no Bruno Daniel, no jogo diante do Operário.
Gostaríamos de saber que jogo, em circunstâncias normais, no qual a própria rivalidade inexiste e os dois pontos não têm importância vital de um aproximar de final de etapa, eletriza tanto o torcedor como sugere o leitor?
Exigindo demais
Queiram ou não, Santo André versus Operário era um jogo que se encaixava perfeitamente nestas condições e contribuiu ainda mais para o silêncio criticado à performance comprometedora da equipe de Jair Picerni. Talvez o próprio rendimento do Santo André tenha sido consequência do ambiente de distanciamento entre o jogador e sua massa. Talvez, não; é praticamente certo que isso aconteceu. Entretanto, exigir-se do público frenético incentivo naquelas circunstâncias é exagerar.
Em resumo, ao mesmo tempo em que se deve reconhecer a híbrida atuação dessa nova massa popular em nosso futebol, não é justo que se lhe atribua responsabilidade que não lhe compete. Do jeito que jogou domingo o Santo André não sacudiria nem mesmo o entusiasmo tradicional da torcida do Corinthians se, num passe de mágica, aquela atuação fosse transportada para a Capital e, ao invés do azul e branco, os jogadores estivessem de preto e branco.
O que mantém basicamente a chama do entusiasmo popular nos estádios, em jogos comuns como o de domingo no Estádio Bruno Daniel, são as torcidas organizadas, representativas nos grandes clubes mas incipientes e reduzidas nos pequenos. Sem o comando forte e insinuante das organizadas os torcedores comuns viram espectadores comodistas. Eles passam a torcer para dentro.
Camisa dividida controversa não
seduz torcedores do Ramalhão
LUIZ CARLOS SPERANDIO -- 18/03/1984
Quem faz parte da pequena parcela de torcedores que comparece ao Bruno Daniel exibindo, na mesma camisa, o escudo do Santo André e de qualquer outra equipe grande de São Paulo? Eles não são muitos. Não somam 0,1%, tendo como base o jogo de domingo passado contra o Operário: 12 camisas divididas entre os 12.644 torcedores. e apesar de minoria absoluta, esses torcedores de todas as idades estão criando novo tipo de torcida do Santo André.
Explica-se: não seriam de certa forma fiéis radicais, a ponto de querer exibir uma nova paixão, sem, no entanto, esconder o amor antigo? Essa espécie de cultores à bigamia esportiva é, na verdade, nova vitória do Santo André que está invadindo terreno alheio e trazendo ao Bruno Daniel gente que, no mesmo horário, poderia estar no Morumbi, Canindé, Parque Antártica ou Vila Belmiro.
As outras duas torcidas do Santo André são conhecidas de longa data. O primeiro grupo foi nascendo junto com o clube, em 1968. É formado por torcedores que têm no Santo André o segundo clube do coração. Afinal, todos eles já morriam de amores por Corinthians, Palmeiras, Santos, São Paulo, e até mesmo a Portuguesa, que aos poucos vai trocando com o próximo Santo André à condição de quinta força nas bilheterias paulistas.
Torcida própria
E depois surgiram os andreenses autênticos. Apesar do noviciado, o Santo André já pode afirmar que possui torcida própria, desvinculada das equipes tradicionais. E entre esses torcedores, muitos que viviam a primeira infância em 1977 e 1978, e que foram habilmente catequizados pelas campanhas inovadoras de Reinaldo Toledo. Foi a época em que o ex-dirigente visitou escola por escola do Município para entregar ingresso gratuito para as crianças. Os alunos que iam ao estádio acompanhados pelo pai ou responsável, voltavam orgulhosos por ter ganho uma camiseta, pôster, flâmula, bandeira do Santo André. O ego da criança se satisfez; ela se sentiu importante e hoje, em sua maioria absoluta, não troca o Santo André por time nenhum.
Prova de que é o Santo André quem invade a área adversária é dada pelo corintiano José Alves de Lima, também conhecido por Bahia na equipe de futebol do Semasa. Bahia diz que resolveu adquirir a camisa em dezembro: “Fui comprar uma do Corinthians bicampeão. Mas quando vi essa do Corinthians e do Santo André, não tive dúvidas. Desfilei com ela pelas ruas de Alagoas, para onde viajei no fim do ano, e foi a maior glória, bacana mesmo. E não sou só eu. No meu bairro (Vila Linda) muitos amigos possuem camisas do Santo André junto com São Paulo e Santos”. E esse nordestino de 46 anos garante que no confronto direto, é Santo André: “Olha, assistir ao vivo, não aguento. Mas fico com o radinho ligado lá em casa e torço para o Santo André”.
Mauro Isidoro de Oliveira, amigo de Bahia, 34 anos e morador na Vila Helena, não exibiu, domingo, sua camisa Santo André/São Paulo: “Mas sou Santo André, é o clube de nossa cidade. Sempre torci para o São Paulo e a camisa foi uma forma de ajudar a divulgar minhas duas paixões”.
Adoção e coração
Geraldo Pires de Oliveira, 25 anos e residente na Vila Linda, se diz andreense por adoção e santista de coração: “Sempre fui santista. Há seis anos mudei-me para Santo André e desde aquela época comecei a curtir essa nova paixão. Num confronto direto, ainda pendo um pouco para o Santos, mas não saio do Bruno Daniel. É bem mais fácil vir para a Vila Pires do que enfrentar toda sorte de desconforto para chegar ao Morumbi”.
Em compensação, Adilson Zanichelli, 27 anos, morador na Vila Humaitá, não tem dúvidas em torcer para o Santo André num confronto direto com o seu São Paulo: “Sou tricolor desde que nasci mas passei a amar o Santo André também. Principalmente depois que subiu para a Primeira Divisão”. E Adilson responde no pé da letra sobre a duvidosa combinação de cores em sua camisa listrada – vermelho, preto e azul – no pano de fundo para os escudos: “Gosto é gosto. O que seria do vermelho se todos gostassem do amarelo?”.
Outro tricolor – Sérgio Gouveia, 25 anos, Bom Pastor – se diz hoje mais andreense que são-paulino. Garante que seu novo amor está sedimentado em viagens pelo Interior, durante a Segunda Divisão, em brigas com torcedores do Aliança, fatores – segundo ele próprio — suficientes para ter hoje o Santo André como primeiro time. “Sempre fui são-paulino. Mas moro aqui há oito anos e nesse tempo comecei a curtir um amor enorme pelo Santo André. Uso camisa dividida porque toda a minha família é tricolor, e isso não dá para esquecer, simplesmente. Mas o Santo André é mais coração”.
Dois amores
E quem não divide o peito com outras cores, o que pensa das camisas? Gabriel Portigo Filho, 47 anos, morador na Vila Pires, não tem nada contra: “Concordo. Eu, por exemplo, vestiria uma verde, branca e azul do Santo André e Palmeiras, meus dois amores. O que não se pode dividir é mulher. Ou melhor, gostar de Palmeiras e Santo André é como amar a esposa e uma filha”.
José Carlos Marinho compareceu ao jogo com uma camisa que se está familiarizando na região afora – vermelha do vôlei da Pirelli. Não uso a do Santo André nem a do Corinthians. E nunca usaria uma dividida: “Acho feio, não dá presença. Ou o cara se veste de Sant o André ou de Palmeiras. Os dois juntos não dá”. Marinho reside na Vila Lucinda, tem 27 anos e, num confronto direto com o Corinthians, garante que nem vai ao estádio: “Fico em casa dormindo. Só acordo depois do jogo para saber do resultado. Não sou masoquista, né…”.
E o que fala Hilário Bosísio, italiano da Mooca, que relegou o Corinthians a segundo plano, depois que se instalou com uma vendinha em Santo André? Pois Hilário aprova: “É melhor que o torcedor venha com camisa dividida do que sem o distintivo do Santo André. De qualquer maneira o torcedor está divulgando o time de lá e o time daqui também. Eu aprovo”.
Para Fernando Leça, deputado que não perde jogo do Santo André quando está na região, a camisa dividida é uma forma de conciliar a preferência do torcedor: “Por mais que goste de um time novo como o Santo André, o torcedor corintiano jamais irá renunciar ao antigo clube. É uma maneira de conciliar as duas paixões. Agora, imagino que fica difícil para o torcedor quando existe o confronto direto. De qualquer maneira, ela está aprovada”.
Demanda garantida
Sorte dos vendedores de acessórios, sempre presentes nas imediações do Bruno Daniel. Sorte, mais precisamente, de João Domingos da Silva, o Carioca, que todos os domingos se instala nas proximidades das bilheterias das arquibancadas. Ele oferece uma camisa dividida ao preço de oito mil cruzeiros e garante que vende o que tem.
Carioca afirma que a ideia, de gosto duvidoso surgiu em Londrina, há quatro ou cinco anos. “Foi um tal de Turquinho que na mesma camisa colocou os símbolos do Londrina e do Atlético Paranaense ou Curitiba”. E é esse mesmo Turquinho quem fornece a Carioca as camisas divididas do Santo André, segundo o vendedor: “Muitos pensam que a Sandra Bréa, na decisão entre Corinthians e São Paulo, no último Paulistão, foi a primeira a usar. Mas antes disso o Turquinho já faturava no Paraná. E continua faturando bem, tanto que é ele quem me remete as camisas vendidas aqui em Santo André”.
Visão dos psiquiatras
“Essa história de amor único está acabando”. É assim que Angelo Gaiarsa observa, desde seu apartamento nas Perdizes, em São Paulo, os torcedores que acompanham o Santo André usando dois distintivos na mesma camisa: “De regra, o homem escolhe um partido para espinafrar o outro. O amor único, consequentemente, só pode gerar a guerra. Se o homem aprendesse a amar este e aquele partido também, os conflitos terminariam”.
Angelo Gaiarsa fechou consultório de psiquiatria no final do ano e agora, como faz questão de dizer, é escritor, produtor de vídeo-tape, professor e boa vida. Ele pertence à tradicional família de Santo André. Seu irmão Otaviano, aliás, é autor de vários livros que contam a história da cidade. Angelo Gaiarsa ressalva que o amor único não se deve restringir à preferência clubística. Mostra coragem ao dizer que todo o homem gostaria de conviver com mais de uma mulher ao mesmo tempo. Preferência que, segundo o psiquiatra, os homens temem revelar.
Para André Gaiarsa, 35 anos de idade e que, além de continuar em atividade como psiquiatra, também é professor na PUC, alguns desses torcedores só não assumem definitivamente a nova preferência por causa da ética do futebol: “A fidelidade é um valor psicológico muito sério. Macho que é macho aguenta derrotas e mais derrotas, prova disso é a fiel torcida do Corinthians, que aumentava a cada ano sem títulos. No futebol é considerado feio mudar de time. É contra a ética do futebol. Então, a saída que esses torcedores encontram é usar a tal camisa”.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André