Depois de mais de duas décadas, o futebol de São Caetano foi redescoberto pela mídia paulistana e nacional. Como não poderia deixar de ser, foi tratado com o zelo de um macaco em loja de porcelana. De absolutamente desconhecido, o time comandado em campo por Jair Picerni passou uma semana de glórias. Afinal, não é comum um time de caipiras, como foi tratado o São Caetano pelos cariocas, derrotar o Fluminense em pleno Maracanã coalhado de quase 60 mil tricolores, classificando-se para as quartas-de-final da Taça João Havelange. Independente dos resultados subsequentes na competição, o São Caetano fez muito além do que esperavam seus investidores, as autoridades políticas que capitalizam o sucesso da equipe e os torcedores próprios e terceirizados por corintianos, são-paulinos, palmeirenses e santistas.
O que impressiona, além do sucesso do modelo esportivo-empresarial do São Caetano, é a pobreza de informação da mídia paulistana. Pior do que isso: os resultados do chamado Azulão desnudam até que ponto o Grande ABC virou periferia da Capital. Atrativo nas desgraças das páginas policiais, das greves de metalúrgicos ou em desatualizadas abordagens econômicas, o Grande ABC é simplesmente um apêndice da Capital. A mídia paulistana dedica à região absoluto desprezo. Verdade seja dita: também as demais cidades da Região Metropolitana de São Paulo, conglomerado de 16 milhões de pessoas contando a Capital, sofrem com desinteresse semelhante. A empáfia paulistana é estúpida porque desconsidera o potencial de consumidores de informações.
A absoluta ignorância da mídia paulistana sobre o esporte profissional do Grande ABC é quase tão antiga quanto o próprio futebol. Somente quando integram a Primeira Divisão os times locais têm alguma projeção, saem do gueto de terceira linha e a crônica esportiva se movimenta em busca de informações. Mesmo assim com clamorosas falhas, porque não há nada mais mal ajambrado no jornalismo do que a depauperação intelectual da crônica esportiva, cada vez mais dominada por principiantes e submetida à industrialização da produção.
A coleção de idiotices que se propagou desde que o São Caetano
fez do Maracanã sua plataforma de embarque no grande circo do futebol das estrelas ultrapassa a imaginação mais fértil de comediantes. Falou-se de tudo sobre o time e sobre o ABC. Só não se falou nem se escreveu absolutamente nada sobre o terreno que fez florescer uma equipe competitiva que nos últimos três anos só fez derrotar adversários e conquistar títulos.
Para os mal-informados, o São Caetano é um time mantido pelo prefeito Luiz Tortorello, os salários são modestos e a estrutura organizacional não foge à tradição dos chamados times pequenos. Mal sabem os cronistas que o prefeito Luiz Tortorello, merecidamente ovacionado pelos títulos de São Caetano nos Jogos Abertos do Interior, é apenas ilustre torcedor do time profissional. Mal sabem que por trás do São Caetano há toda uma engenharia empresarial dirigida por Saul Klein, um dos herdeiros do Grupo Casas Bahia, e parceiros comerciais que enxergam futebol muito mais do que uma bola. Mal sabem que o São Caetano tem patrocínio enrustido de fornecedores da Casas Bahia. O esquema é mantido a sete chaves com indícios de que os parceiros não são apenas financiadores dos negócios esportivos, mas co-participantes de um outro jogo, o jogo do mercado que inclui lucros e perdas.
Por mais que mantenha as entranhas do São Caetano longe do olhar da mídia, há frestas de informações que sustentam o caráter científico, se se pode utilizar esse termo quando se trata de futebol, na formação do grupo de jogadores. Uma rede de olheiros espalhada pelo País e que prepara relatórios sobre atletas com potencial de integrar o elenco do clube assegura a menor margem possível de erros nas contratações. O time que tanto sucesso faz na Taça João Havelange foi construído dessa forma. Saiu do anonimato para o estrelato aproveitando-se não só da capacidade de organização interna e da gestão técnico-tática de um treinador experiente, mas também do momento de extrema incompetência da maioria dos times brasileiros, fragilizados por profusões de vendas de craques para o Exterior e por um mercado de salários muito acima da capacidade individual de produção de receitas através de fontes convencionais.
O São Caetano é a versão mais modesta de um Palmeiras de pouca inspiração e muita transpiração, mas está muito acima dos clubes médios do País. Palmeiras e São Caetano são irmãos siameses no perfil técnico e tático, no orçamento e na seriedade de reconhecer suas próprias limitações, transformando-as em virtude.
Resta saber o que será da trajetória futura do São Caetano. Palmeiras, Corinthians e tantas outras grandes equipes do futebol brasileiro não dependem necessariamente de parcerias empresariais para se manter em atividade porque têm tradição de clubes com o agregado de massa de torcedores, de envolvimento social. A Parmalat está deixando o Palmeiras e nem por isso o horizonte da equipe é de desaparecimento. O Corinthians foi sugado pela centrífuga da desorganização e de campeão do mundo virou vice-lanterna da João Havelange, mas não vai demorar para voltar a empolgar. Até porque já passou por tormentos maiores ao longo de 90 anos. O São Paulo continua grande mesmo sem cogestão. O que será do São Caetano do futuro se seu presente de sucesso foi praticamente construído como clube-empresa, sem a base de consolidação popular das grandes ou mesmo de médias agremiações? Ou o São Caetano não era um time decadente de Terceira Divisão nos tempos de comando político, como dezenas e dezenas de clubes brasileiros que viraram passado?
É essa incômoda pergunta que poucos ousam fazer a quem interessar possa. Basta qualquer incidente no relacionamento entre a Prefeitura e os investidores, basta um desencanto qualquer dos mantenedores, basta uma circunstância qualquer mais relevante para que o futuro do São Caetano seja colocado em xeque. Não será a mídia paulistana, sem compromisso com a região, que estará preocupada com isso. Até porque, verdade seja dita, o São Caetano não passa, no fundo, no fundo, de uma grande curiosidade para a mídia imediatista. É algo como o macaquinho namorador do zoológico. Enquanto der audiência pelo inusitado, merecerá espaço como os convidados mais proeminentes de Ratinho, de Faustão e de Raul Gil. Quando sair de moda, voltará ao ostracismo. Como a Tiazinha. Lembram-se dela?
Patrimônio -- O São Caetano está tendo grande oportunidade de transformar-se em patrimônio cultural da cidade, não uma onda passageira e inconsequente. Perder esse momento mágico para dar densidade a sua representação e para aperfeiçoar o regime de parceria com os empreendedores pode custar caro no futuro. Afinal, a grande diferença entre o São Caetano de agora e o Saad dos anos 70 é que o time de Felício Saad fazia questão de carregar o sobrenome do patrono, distanciando-se de qualquer mobilização mais forte de uma cidade extremamente bairrista.
Enfim, o que se coloca como ponderação numa etapa da vida esportiva de São Caetano que nem os mais otimistas dos torcedores locais poderiam imaginar é questão que transcende a superficialidade dos resultados dentro de campo. Trata-se de saber até que ponto a sociedade municipal será capaz de articular-se para remover eventuais barreiras que poderão se opor entre emoção e empreendedorismo no futebol. A tendência de repaginação do perfil dos clubes de futebol no País é de que só sobrarão os mais aptos. Continuará a redução drástica das equipes profissionais porque a atividade é cada vez mais excludente, tendo nos indicadores de audiência de televisão o principal divisor entre vencedores e vencidos. Como cada vez mais futebol é business, convém prestar atenção no que vem pela frente. Se em tempos de romantismo o futebol fez de clubes de donos vítimas preferenciais, o que esperar agora que as leis de mercado prevalecem?
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André