Quem imagina que o estoque de dramaticidade do balzaquiano Santo André tenha se esgotado no gol de pênalti do experiente Adãozinho aos 48 minutos do segundo tempo da decisão contra o Ituano não identifica as primeiras letras do abecedário do futebol-empresa. A vitória por 1 a 0 que valeu o retorno à Primeira Divisão pela quarta vez pode representar a última oportunidade para o Santo André inserir-se no novo modelo de futebol profissional que se consolida no País. Ou o chamado Ramalhão abandona de vez o figurino convencional que lhe valeu o título do Acesso de 1981 e que está sendo celeremente desativado no País por anorexia financeira ou correrá o risco de desaparecer como tantas outras marcas esportivas que gravitavam em torno dos grandes clubes.
Tornar-se clube-empresa é saída tão urgente quanto única para um clube que este ano comemora 34 anos de fundação e que mostrou mais uma vez contra o Ituano que reúne milhares de aficionados prontos para dar respostas a qualquer chamamento de grande espetáculo. Sim, porque as cerca de 18 mil pessoas que lotaram o Estádio Bruno Daniel na tarde de 30 de junho e que esgotaram em 36 horas os 15 mil ingressos oficiais colocados à venda provaram que o regionalismo esportivo resiste no Grande ABC, apesar da massacrante ação da mídia televisiva, especialmente da Rede Globo, que transformou a audiência do futebol num dogma que joga para escanteio a importância social dos pequenos e médios clubes. Para a Globo do mesmo animador Galvão Bueno que soletra críticas contra o gerenciamento do futebol brasileiro, o que interessa são os clubes de massa que sustentem pontos no Ibope e milionárias receitas publicitárias.
É essa mesma Rede Globo, denunciada pelo deputado federal Eurico Miranda, presidente do Vasco da Gama do Rio, como autora intelectual da reformulação do calendário do futebol brasileiro, que pode perpetrar nova pá de cal contra os médios e pequenos clubes brasileiros. A mudança nas competições regidas pela Confederação Brasileira de Futebol e pelas federações estaduais foi anunciada na semana que antecedeu a classificação do Santo André à Primeira Divisão. Uma das consequências, se vier a ser mantido o que o cronista Juca Kfouri prefere chamar de grade para as transmissões de jogos pela Globo, é que o Santo André terá dado um salto para baixo.
A explicação é simples, porque a disputa do Campeonato Paulista da Primeira Divisão do ano que vem estará esvaziada. O sonho de enfrentar os grandes clubes (Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos) estará frustrado porque esses chamarizes de público estarião envolvidos num campeonato regional entre os maiores clubes paulistas e cariocas. Além dos quatro grandes paulistas, também representarão o Estado de São Paulo as equipes do Guarani e da Ponte Preta de Campinas, a Portuguesa de Desportos, o Etti de Jundiaí (campeão da Segunda Divisão) e o Botafogo de Ribeirão Preto.
Esse enunciado do novo calendário aprofunda a elitização do futebol e sacramenta absurdos técnicos que só se explicam, embora não se justifiquem, pelos escaninhos dos interesses escusos que fazem do futebol algo semelhante ao que se encontra, por exemplo, entre o côncavo e o convexo do Congresso Nacional, em Brasília. Um exemplo é a anunciada eliminação do São Caetano da disputa entre paulistas e cariocas. Outro é o convite ao Guarani de Campinas, rebaixado para a Segunda Divisão Paulista. Como pode um time como o São Caetano, vice-campeão brasileiro do ano passado, deixar de disputar um Rio-São Paulo revigorado e ter a vaga ocupada por um Guarani de Campinas que foi rebaixado dentro de campo para a Segunda Divisão de São Paulo? Uma proposta como essa só cabe mesmo na cabeça de cartolas sobre os quais paira a dúvida se são puramente incompetentes, petulantemente serviçais da televisão ou oportunistas da pior espécie.
É possível que o calendário ou a grade ibopeana anunciada com pompa e circunstância pela CBF dê com os burros nágua. Se depender de Eurico Miranda, a bola vai ficar quadrada para os interesses da Rede Globo. Protegido pela imunidade parlamentar e aparentemente irreconciliável com a emissora carioca, Eurico Miranda garantiu em entrevista à TV Cultura paulista na noite de 1º de julho que iria amealhar clubes e federações descontentes e independentes para impedir a exclusão dos grandes clubes dos campeonatos estaduais. O noticiário dos jornais do dia seguinte já dava conta de que mais dirigentes de clubes ameaçam rebelar-se contra a transformação do futebol em programação vantajosa para a Rede Globo. Ou não é um grande negócio colocar na telinha, sem os mesmos custos das telenovelas, uma atração que é espécie de alma suplementar do povo brasileiro e, por isso mesmo, garantidora de grandes audiências?
Independente mas massacrantemente estigmatizado pelas fanfarronices em defesa do Vasco da Gama, Eurico Miranda não é exatamente a liderança de que precisariam os opositores do calendário da CBF. É verdade que a crônica esportiva independente e crítica enxerga novos desastres no horizonte dos clubes brasileiros. No dia seguinte ao anúncio, descobriu-se, por exemplo, que grandes clubes poderão ficar até 140 dias sem jogos oficiais se uma combinação de resultados nada desprezível ocorrer no primeiro semestre do ano que vem. A impressão que se tem, quando a CBF minimiza essa possibilidade, isto é, de que um ou mais clubes de grande porte venham a ficar tanto tempo sem jogar, é que ou os formuladores do calendário são extremamente imprevidentes ou os resultados dentro de campo seriam devidamente assegurados para preservar os índices de Ibope de que se alimenta a máquina da televisão.
Ação por perdas -- O fato é que se prevalecer o esdrúxulo calendário nacional anunciado pela CBF, o Santo André terá dado realmente um salto para baixo. Afinal, subiria para uma divisão que estaria inexoravelmente enfraquecida pela ausência dos clubes mais tradicionais. Em circunstância normais, se futebol fosse negócio sério e não estivesse sob jugo de instâncias especiais que costumam bater escanteio e marcar o gol de cabeça, o casuísmo poderia ser levado à Justiça. Uma ação de perdas e danos caberia perfeitamente não só por parte do Santo André como dos demais clubes que disputarão a Primeira Divisão sem os concorrentes mais tradicionais. Quem estaria disposto a colocar o guizo da moralização no pescoço do gato da esculhambação?
Se for perpetuada a ferocidade pela audiência global, provavelmente os integrantes de campeonatos regionais como o Rio-São Paulo serão as únicas entidades esportivas de cada Estado a alcançar meios para resistir à limpeza esportiva de quem só enxerga audiência e faturamento. Os nove clubes paulistas e os sete cariocas que disputariam o novo torneio contariam com suporte motivacional e financeiro da Rede Globo, enquanto os 12 times da Primeira Divisão paulista apanhariam as migalhas de uma distribuição de cotas financeiras que na verdade teriam o mesmo efeito prático do dia a mais vivido por um condenado à morte. Ou não é assim que se têm registrado os óbitos do futebol profissional entre os pequenos clubes?
Quem acha que a imagem é forte deveria dar uma olhada no mapa dos clubes profissionais de São Paulo. Nos últimos 10 anos, segundo dados da própria Federação Paulista de Futebol, mais da metade dos clubes foi varrida das competições. Os custos para manutenção das equipes sobreviventes só não avançaram mais que os efeitos práticos da descoberta do futebol como grande atração televisiva. A centralização dos noticiários em torno dos grandes clubes e as maciças transmissões televisivas que contemplam sobretudo os líderes de audiência arrebentaram a cultura dos times locais. Mas nem tudo está perdido, como provou a avalanche de torcedores do Santo André no jogo com o Ituano. Depende, é claro, do impedimento à quase extrema-unção do Rio-São Paulo nos moldes propostos.
Seja qual for o desenlace dos movimentos que se estão efetivando para controlar a sanha televisiva, ao Santo André não cabe alternativa senão botar a mão na massa e realizar um projeto anunciado há dois anos em LivreMercado: tornar-se um clube-empresa, espécie de sociedade anônima. E é disso que o presidente Jairo Livolis está tratando nestes dias de pós-festa. Ele e os demais dirigentes sabem que o figurino que levou o Santo André ao título do Acesso de 1981 há muito morreu de morte matada pela descoberta de que futebol é business. E que também o modelo deste ano, híbrido entre o clubismo de antigamente e um regime pré-negocial, não cabe na nova estrutura do esporte. É preciso criar espécie de subsidiária do Esporte Clube Santo André com lançamento de ações que gerem recursos para montagem e manutenção de uma equipe suficientemente forte não só para continuar na Primeira Divisão, mas para chegar à grade televisiva.
O curativo estrutural deste ano foi circunstancial e o resultado não poderia ter sido melhor. Uma observação no perfil das equipes que subiram de divisão este ano em São Paulo revela o quanto o Santo André está atrasado como empresa esportiva. O Etti de Jundiaí, campeão da Segunda Divisão, é uma divisão esportiva da Parmalat de objetivos tão ambiciosos quanto o dinheiro farto. Uma mistura de grandes estrelas com muitos craques desconhecidos formaria a equipe de Jundiaí para disputar as principais competições do País. Depois de patrocinar o Palmeiras por sete anos seguidos, a Parmalat descobriu que ganharia muito mais e teria bem menos dores de cabeça diretiva com um time próprio.
Juventus e Ituano, que assombraram o Santo André até o último instante no Acesso, também têm mobilização empresarial. Quem cuida do Juventus é um grupo empresarial que faz do futebol principal vitrine. A Euroxport é uma empresa que trata o futebol com o mesmo desvelo de um negociante que observa a coluna de receitas e despesas. Não é muito diferente o Ituano do empresário de futebol Oliveira Júnior. Dono do destino de Roberto Carlos, lateral da Seleção Brasileira, Oliveira Júnior comanda pela sua empresa o passe de dezenas de jogadores. O Ituano não conseguiu subir diretamente para a Primeira Divisão deste ano, mas deverá ser beneficiado pelo novo calendário juntamente com Juventus, América e Moji Mirim (rebaixado teoricamente da Primeira Divisão deste ano), que ocuparão as vagas dos pequenos e médios que disputarão o Rio-São Paulo.
Os tentáculos de Oliveira Júnior se ampliam tanto que a frustração da perda do Acesso em campo contra o Santo André foi parcialmente compensada pelo Acesso do São Bento de Sorocaba, campeão da Terceira Divisão e sobre o qual detém a terceirização do departamento de futebol.
O conceito de negócio é tão elástico no futebol-empresa que uma outra equipe de Sorocaba, o Atlético Sorocaba, também subiu para a Segunda Divisão ao sagrar-se vice-campeã da Terceira. Por trás, em vez de um empresário do futebol, a equipe se aproveitou de investimentos da seita do Reverendo Moom. Se até a Força Sindical anunciou recentemente sua equipe profissional, por que a perseguida seita poderia ser condenada? Daqui a pouco até a CUT adere ao negócio da bola. Enfim, o que de fato se tem como consolidação no futebol de competição é a certeza de que já não há mais lugar para romantismo.
Messianismo limitado -- O modelo que o Santo André adotou este ano para subir à Primeira Divisão é tão precário quanto provisório. O clube garantiu com recursos próprios uma parte dos recursos investidos numa equipe numerosa e custosa. Mas a parcela substancial de dinheiro aplicado veio da articulação do vice-presidente administrativo e secretário de Serviços Municipais, Klinger de Sousa. Ele reuniu um grupo de empresários que se dispuseram a colaborar com generosos recursos financeiros. Essa alternativa messiânica não tem vida longa, porque não há empreendedor travestido de torcedor que suporte colocar dinheiro sem perspectiva de retorno.
Por isso o Santo André S/A é tão emergente quanto a disputa nos bastidores para anular o calendário incestuoso da CBF e da Rede Globo, como denunciou Eurico Miranda.
Não fosse a parceria comandada por Klinger de Sousa e pelo presidente Jairo Livolis, operacionalmente aplicada pelo vice-presidente de futebol Celso Luiz de Almeida, o Santo André estaria mais uma vez marcando passo no principal campeonato estadual de Acesso do País. Foi assim nos últimos sete anos. A falta de recursos financeiros compatíveis com o sonho do Acesso à Primeira Divisão se materializa de forma homeopática ao longo de um campeonato. O Santo André sentiu isso sempre que precisava dar o sprint na reta de chegada. Faltavam reservas à altura dos titulares, os prêmios prometidos não conseguiram ser suficientemente elevados, os salários nem sempre estavam em dia. Este ano foi diferente, apesar de alguns atropelos. Os investimentos foram 40% superiores ao último ano. Sobraram opções técnicas. Nem mesmo o excesso de contusões que tiraram jogadores importantes de jogos igualmente decisivos comprometeu o projeto. Em outros tempos, a equipe teria nadado, nadado e morrido na praia.
Por mais que organização e bastidores sejam ferramentas indispensáveis, nada resiste à falta de dinheiro num negócio chamado futebol. Dinheiro pode não garantir o Acesso, mas ajuda muito. Quando resolveu trocar toda a Comissão Técnica na virada do primeiro turno, inclusive o técnico Vagner Benazzi, a diretoria do Santo André sabia que estava arriscando tudo no projeto de voltar à Primeira Divisão. A chegada do técnico Luis Carlos Ferreira, um papa-título do Acesso tanto quanto seu antecessor, ajudou a transformar o pesadelo de mais um ano na fila em sonho do Acesso. Com Ferreira, uma espécie de Luis Felipe Scolari do Acesso, o Santo André ganhou 10 jogos e empatou cinco e, como Vanderlei Luxemburgo no Corinthians, saiu de posição incômoda na classificação, a nove pontos do líder Etti e a oito do vice-líder Ituano, para atropelar na reta de chegada. Sem dinheiro, Luis Carlos Ferreira não teria aportado no Estádio Bruno Daniel.
O Santo André que subiu para uma Primeira Divisão de desenho regulamentar ainda permeado por dúvidas jamais conseguiu ser um time brilhante em toda a competição. Já houve grupo de jogadores com mais qualidade individual e coletiva que poderia ter conquistado o Acesso nos últimos anos, como o time de 1997, invicto durante 24 jogos. A diferença em favor do grupo campeão deste ano é que, além da retaguarda diretiva e da relação mais próxima com a Federação Paulista de Futebol, praticou-se futebol pragmático.
À cintilância individual e coletiva sobrou objetividade. O jogo decisivo contra o Ituano simboliza a atuação do Santo André no campeonato: as dificuldades estruturais de uma equipe que não conseguia a mesma escalação duas partidas seguidas foram compensadas pela efetividade. O Ituano -- como o Etti e o Juventus, outros concorrentes ao Acesso desde as primeiras rodadas -- impressionou mais pela organização tática, mas não teve a agudeza técnica da equipe do Grande ABC.
O Acesso do Santo André provou também que por mais que se organize diretivamente, por mais que haja disponibilidade de recursos financeiros, por mais que uma comissão técnica experiente seja contratada e por mais que a torcida prestigie, é preciso ter pelo menos cinco ou seis jogadores capazes de contrariar a lógica de que futebol é conjunto e extrapolar individualmente. O goleiro Maurício, o zagueiro Eloi, o armador Adãozinho, o volante Careca e o atacante Jajá compensaram dentro de campo o desequilíbrio estrutural de um time montado pouco antes da primeira rodada e remendado durante a própria competição. Um time que, agora, se desfaz, porque não dispõe de estrutura empresarial consolidada. Esse tobogã de subir e descer precisa acabar porque a queda torna mais complexa a próxima subida numa atividade que não tem mais nada que lembre os velhos tempos de pouco dinheiro e muita paixão.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André