O Grande ABC, e particularmente Santo André, viveu um janeiro gratificantemente diferente. Se no ano passado, no dia 20, um bando de marginais assassinou o prefeito Celso Daniel, sequestrado dois dias antes na Capital, no dia 25 último, também na Capital, num Estádio do Pacaembu coalhado de palmeirenses, um time de jovens preparados anonimamente há cinco anos pelo EC Santo André conquistou a Copa São Paulo de Futebol Juniores, espécie de Campeonato Brasileiro na categoria.
A participação inicial de 64 equipes dos mais diferentes Estados dá idéia mais precisa da importância da competição. A exposição de um Grande ABC vitorioso quebrou a rotina de más notícias que perdurou durante todo o ano passado, em sistemáticos choques anafiláticos na auto-estima regional.
O 25 de janeiro de 2003 vai entrar na história do Santo André como data especial, dessas que, passem décadas, jamais o Grande ABC vai esquecer. A Copa São Paulo é a mais tradicional e valorizada competição de categoria. Cantada em prosa e verso a cada janeiro que chega como avant-première de craques que emergem, a Copa São Paulo desta temporada foi ainda mais importante que tantas outras. A vitória dos meninos da Vila Belmiro na final do Campeonato Brasileiro de 2002 contra o Corinthians, com Robinho e Diego consagrados, se somou à crise financeira epidêmica dos clubes brasileiros como senhas para uma reviravolta a partir das instâncias de base dos clubes.
O Santo André iniciou essa operação bem lá atrás, quando o presidente Jairo Livolis percebeu que sem calendário de competições continuamente extenso como o reservado aos grandes clubes brasileiros, e não fracionadamente curto para quem não detém índices de Ibope nacionais, o caminho da salvação é olhar para os lírios das divisões de base e, dali, retirar o sumo de esperadas e férteis colheitas.
Em outros tempos, tempos de dinheiro farto, ou aparentemente farto, dificilmente se veria o presidente do São Paulo, Marcelo Portugal Gouveia, e o técnico tricolor, Oswaldo de Oliveira, acompanhando os jogos da equipe no Estádio Bruno Daniel, em Santo André. Nem outros treinadores e dirigentes se armariam de espiões e empresários para tentar capturar reforços egressos das categorias de base. Exatamente por isso a Copa São Paulo conquistada pelo Santo André está em patamar diferente de muitas das edições anteriores. Especialmente nos últimos anos, quando o real valorizado artificialmente lubrificou a engrenagem de salários estratosféricos de jogadores cujos clubes procuravam resistir ao assédio da Europa ou do Japão. Agora que a realidade está posta e a moeda nacional vale tão pouco, o êxodo de craques ou supostos craques abriu uma cratera de oportunidade para a meninada boa de bola.
A trajetória da equipe na competição também ajuda a explicar o resgate de parte da auto-estima de Santo André, abalada com a morte de Celso Daniel e com os desdobramentos políticos do caso, como as eleitorais denúncias de propinas contra o Paço Municipal. Dobraram-se à equipe do técnico Rotta logomarcas tradicionais de formação de craques e de conquistas de títulos profissionais e de categorias de base, como São Paulo, Cruzeiro, Botafogo, Vasco e, finalmente, Palmeiras.
Particularmente a vitória contra o Palmeiras tem sabor especial, além do próprio título em disputa. O time paulistano foi campeão estadual de juniores da temporada passada depois de superar o Santo André na semifinal do mata-mata com dois empates e uma arbitragem até hoje excomungada pelo clube da região. O mesmo Palmeiras que ainda não sentiu o gostinho de erguer a Copa São Paulo, depois de 35 edições disputadas.
A historiografia do futebol regional não registra o fato alcançado pelo Santo André nesse Campeonato Brasileiro de Juniores. Na data de aniversário da Cinderela São Paulo, a maior Capital da América do Sul e horizonte para o qual o Grande ABC costuma olhar com submissão, um time da região conquistou título badaladíssimo em pleno Estádio do Pacaembu, diante de mais de 20 mil palmeirenses.
Antes disso, só há o registro do próprio Santo André, time de profissionais, que conquistou o título do Campeonato Paulista da Série-B numa sequência de cinco jogos contra o XV de Piracicaba e o Paulista de Jundiaí no Estádio do Parque Antártica, do Palmeiras. Como se observa, o adversário não era uma representante da Cinderela.
O São Caetano chegou a duas finais na Capital, contra o Paraná na Série B do Campeonato Brasileiro e contra o Olímpia do Paraguai, na Taça Libertadores da América. O time profissional de maior sucesso na região não conseguiu nenhum dos dois títulos, como se sabe. Seu técnico Jair Picerni consagraria o estigma de tetra vice-campeão porque ainda perdeu dois títulos do Brasileiro da Série A — para o Vasco no Rio e o Atlético Paranaense no Estádio Anacleto Campanela.
A manhã-tarde de 25 de janeiro é significativamente especial porque a Gata Borralheira da subordinação saiu de um resultado desfavorável de 2 a 0 para um heróico empate em cima da hora e, nas cobranças de pênaltis, deixou as marcas da virada. Uma manhã-tarde em que os inconformados filhotes de Cinderela, os palmeirenses, substituíram o “É campeão, é campeão” com que saudavam seus jogadores — depois de anteverem a vitória quando o placar registrou 2 a 0 — para uma reação localizadamente hostil. Jogo encerrado, derrota nos pênalti consumada, tentaram e até conseguiram invadir o gramado, mas foram obstados pela Polícia.
Não faltaram hematomas e até rostos ensanguentados de policiais para sobrepor às imagens dos campeões em festa cenas de bestialidade de uma torcida que desaguou na derrota dos jovens a frustração do rebaixamento à Segunda Divisão do Campeonato Brasileiro.
Se as câmeras das emissoras de TV deslocassem o foco do portão de entrada do Pacaembu, epicentro dos embates entre policiais e torcedores, e capturassem a tribuna reservada aos dirigentes palmeirenses, as imagens seriam ainda mais lamentáveis: não faltaram sopapos entre eles, perdedores sem diplomacia que, apito final, deram ordens para que a equipe deixasse o gramado e não recebesse o troféu. Um acinte contra jovens que honraram as tradições da equipe e que, tanto quanto o Santo André, também mereceriam o título decidido sem qualquer interferência da arbitragem.
Os meninos de ouro do Santo André e o bando de chumbo que matou Celso Daniel se cruzam em janeiros diferentes na Grande São Paulo, a mais insana das regiões metropolitanas do País com seus 18 milhões de habitantes em 39 municípios. A diferença é que um grupo encontrou um clube que lhes deu oportunidade de exercer profissionalmente o talento para o futebol, enquanto o outro, de deserdados, de desempregados, de excluídos sociais, como tantos, optou pelos atalhos da criminalidade.
O contraponto do assassinato de Celso Daniel ao título do Santo André não é desproposital. O prefeito vencido por tiros fatais de um jovem seduzido por outros jovens e adultos marginais sabia a importância de o clube vasculhar a região em busca de novos talentos e, com isso, dar ao segmento esportivo um dos ramais de política pública de inclusão social. Por isso sempre incentivou parcerias com fornecedores de serviços da Prefeitura, casos específicos da Rotedali e da SinalRonda no futebol e de outras empresas em outras modalidades. Também Coop e Diário do Grande ABC se juntaram ao projeto Jovem Santo André.
Pouco depois da morte de Celso Daniel, o legado esportivo que a Prefeitura ajudou a construir no Santo André foi igualmente bombardeado, porque atingiu em cheio empresas e dirigentes que contribuíam para a manutenção do projeto. O então secretário de Serviços Municipais Klinger Sousa, vice-presidente administrativo, e o empresário Ronan Maria Pinto, comandante da Rotedali, foram os mais atingidos pela oposição político-eleitoral que, através do irmão do prefeito assassinado, João Francisco Silvério dos Reis Daniel, forneceu munições até hoje comprovadamente de festim para abater o círculo de amigos de Celso Daniel.
A aproximação entre Poder Público e o clube que representa o futebol profissional de um Município é prática tão óbvia quanto a circunferência da bola. A diferença está no grau de participação. Esportista e andreense, Celso Daniel protagonizou o governo comprovadamente mais comprometido com o futuro do Santo André. Nenhum administrador público fez tanto pelo clube. Mesmo em outros tempos, quando a Prefeitura de Santo André nadava em dinheiro e não em dificuldades orçamentárias como agora. Tempos de industrialização vigorosa, de impostos fartos, de exclusão social rarefeita. Tempos distintos dos de agora, como se observa. Tempos que sacrificam o Município brasileiro que mais perdeu receitas tributárias nos últimos 20 anos.
A sensibilização de fornecedores da Prefeitura partiu de Celso Daniel e de secretários e assessores que observavam o sucesso do vizinho São Caetano com certa dose de inveja, como é natural entre clubes rivais. Em outros tempos, tempos remotos, o máximo que o Santo André conseguiu foram minguadas cotas liberadas oficialmente pelo Executivo em três ou quatro datas comemorativas, como 8 de abril (aniversário da cidade) e Sete de Setembro. Eram tempos em que o futebol profissional não ostentava a valorização mais recente, a partir da descoberta desse filão de audiência pelas emissoras de TV. Tempos em que, por maior que fosse o craque estrelado, os salários não comprometiam o futuro dos clubes.
Ao incentivar a aproximação de fornecedores e clube, Celso Daniel desafiava os limites hipócritas da suspeição rancorosa. Ele sabia o risco político que corria. A oposição, que por vezes frequentou a direção do clube, colocaria seus interesses político-eleitorais acima do pragmatismo e da irreversível realidade de que o futebol é um poderoso marketing institucional para municípios que, como os do Grande ABC, estão fora da órbita da mídia de massa. Exceto, evidentemente, das manchetes sensacionalistas.
Talvez Celso Daniel não tenha jamais imaginado que, mesmo morto, seu espólio esportivo viesse a sofrer tanto bombardeio, rescaldo de denúncias de supostas improbidades administrativas. Não é por outro motivo, portanto, que as comemorações pelo título da Copa São Paulo não tenham contado com representantes oligárquicos de Santo André. Gente que quer mudanças para que se dê meia-volta aos tempos passados de imprevidência com o futuro. Gente que abomina o sucesso alheio.
Há pouco menos de dois anos já havia sido assim. Quando Celso Daniel vivia, os mesmos patrocinadores apoiavam o clube e a equipe de profissionais conquistou o vice-campeonato da Série B e o direito de retornar à Série A. Como na tarde do último dia 25 de janeiro, naquela data o caminhão de bombeiros desfilou pelas principais ruas do Centro, levando os vencedores a bordo.
Seria aconselhável que os agourentos de sempre deixassem a cidade quando o Santo André entrasse em campo para decidir qualquer coisa. A tradição reza que o clube não tem vocação para morrer na praia seguidamente como o brilhante vizinho São Caetano. Ter de ouvir insistentemente o hino do clube em decibéis elevadíssimos e as sirenes dos bombeiros deve ser sensação horrível para quem ficou em casa, colado no rádio ou na televisão, torcendo pelo adversário contra o time da casa.
Pena que Celso Daniel não tenha visto os meninos campeões. Diego, Rafael, Nunes, Tássio, Denni e tantos outros que encantaram o Brasil com futebol que não deixa dúvida sobre o futuro de cada um. Pena que Celso Daniel tenha visto em seus dois últimos dias de vida um bando que representa a realidade de exclusão social da juventude dos grandes centros urbanos. Pena que ainda haja quem prefira intimamente se deleitar com os marginalizados. Salve, entretanto, a maioria esmagadora que, política partidária à parte, se emocionou com os meninos de Santo André.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André