Juntou-se a fome da ousadia com a necessidade de comer da oportunidade. O Santo André precisava fugir do rebaixamento friamente projetado pelas restritivas condições financeiras, situação contra a qual lutaria com todas as forças. O técnico Fernando Marchiori sonhava com uma oportunidade no principal campeonato de acesso estadual do País.
O resultado final foi a vitória de três a um do Santo André na decisão de quarta-feira de manhã no Estádio Bruno Daniel, diante do Internacional. Um placar suficiente para reverter a derrota de dois a um em Limeira. Completava-se o ciclo de sucateamento do improvável.
O Santo André ganhava pela quinta vez na história o título da Segunda Divisão (Série A-1) e colocava na prateleira de novidades do futebol paulista o treinador que transformou conceitos modernos em pragmatismo.
Procurar e encontrar um treinador fora do circuito batido do futebol paulista foi decisivo à empreitada que levou 10 mil torcedores ao Estádio Bruno Daniel. Mas também poderia ter sido um fracasso.
Quando o dirigente Celso Luiz de Almeida trocou ideias com o assessor técnico Carlos Arini sobre inovar com um treinador jovem e vitorioso, a resposta foi Fernando Marchiori, campeão seguidamente em competições no Mato Grosso e Paraná. Ex-meio-campista, Marchiori teve autonomia para montar a equipe.
Seleção de rejeitados
Entenda-se autonomia como algo diferente do que os treinadores consagrados exercitam. Marchiori foi mesmo um selecionador de rejeitados, de excluídos, de quase deserdados do futebol.
Com o Santo André fora do circuito do futebol brasileiro, dividido em quatro competições, e integrante de uma Segunda Divisão que em situação normal de temperatura e pressão não passa de ancoradouro dos desiludidos dos gramados, Fernando Marchiori fez uma garimpagem meticulosa. Salários baixos e pouco competitivos atrapalharam os planos. Geralmente o terceiro da lista de cada posição era o que lhe sobrava como opção prática.
O Santo André dos excluídos dos excluídos, como parte dos times de Segunda Divisão o são num calendário que privilegia os bem-aventurados que contam com atividades o ano interior, não de apenas três meses, tornou-se pentacampeão. O Santo André dos excluídos dos excluídos, sem respaldo de agentes profissionais de jogadores, chegou ao topo da competição.
Um multicampeão que passou aperto na Segunda Divisão. Flertou com o rebaixamento até as rodadas finais da competição. A vitória de um a zero contra o Juventus na Rua Javari na fase classificatória foi o passaporte para a felicidade. Contra a Portuguesa consumou-se a passagem à série de mata-matas. Aí o talento do técnico Marchiori em moldar a equipe a seu gosto se consolidou. Até porque recuperou na reta de chegada da fase classificatória dois dos jogadores mais importantes do grupo, a dupla de volantes Jonathan e Raphael Toledo.
Pequeno entre pequenos
Dizer que o Santo André das comemorações de ontem fora composto por um grupo de rejeitados não é mesmo exagero. No mundo financeiramente cada vez mais competitivo do futebol é difícil usar frases politicamente corretas sem incidir em erro.
Para um time que não tinha alternativa senão evitar o rebaixamento, a perspectiva de reforços colocava em primeiro plano o que sobraria do mercado em geral.
Como competir com times grandes entre os pequenos da Segunda Divisão? Um Água Santa de Diadema, por exemplo, com suporte milionário. E o XV de Piracicaba, a Portuguesa Santista, o próprio Internacional de Limeira? Uma por uma as identidades podem ser listadas. O Santo André entrou com a tradição de bagunçar o coreto das probabilidades. Era uma espécie de Fortaleza ou Ceará da atual Série A do Campeonato Brasileiro. Era o time dos excluídos entre os excluídos da Segunda Divisão.
Fernando Marchiori foi múltiplo como profissional de futebol. Quem o vê à beira do gramado em cada jogo não sabe da missa um terço. Ele treinou duro e intensamente o elenco. Detalhista, deu suporte técnico e tático aos jogadores. Cuidou das individualidades e do coletivo. E chegou ao ponto máximo de competência: o Santo André como conjunto tornou-se bem melhor do que como individualidades. Ou seja: multiplicou as individualidades enquanto muitos treinadores as reduzem, quando não as fragmentam.
Entre quatro paredes
Mas para chegar ao estágio que se viu sobremodo nos dois jogos com o Água Santa e na finalíssima diante do Internacional de Limeira o técnico Fernando Marchiori também ralou muito entre as quatro paredes do improvisado estúdio de gravação e edição em sua residência, na Vila Mariana, São Paulo.
Um exemplo do quanto é obcecado por futebol pode ser resumido no pós-jogo com o Internacional em Limeira. A derrota de dois a um manteve o Santo André com possibilidades de título. Quando Fernando Marchiori utilizou o verbete “reversível” ao dar uma entrevista ao SporTV antes de o jogo começar em Limeira, referindo-se a uma possível derrota, ele já havia calculado tudo sobre o que seria necessário no jogo de volta.
Marchiori saiu aliviado depois de o Santo André cair de produção no segundo tempo, quando sofreu uma virada que poderia ser mais contundente. O time comemorara com certo abuso individual o acesso assegurado diante do Água Santa, em Diadema, e sentira mais que o normal o calor intenso de um jogo às 11h da manhã no Interior.
Vendo jogo jogado
Entre o domingo pós-jogo e a terça-feira pré-decisão, Fernando Marchiori fez sozinho o que os clubes médios e grandes contam com equipes inteiras do Departamento de Análise de Dados. Assistiu três vezes à gravação da partida. Anotou tudo. Editou os lances mais importantes. Observou atentamente aspectos coletivos e individuais. Transmitiu informações aos jogadores com o uso de aplicativo de celular. Fez tudo, repita-se, o que equipes inteiras tratam de fazer como auxiliares de treinadores mais afortunados.
Quando o Santo André entrou em campo para a decisão de ontem não havia um detalhe que fugisse do conhecimento do treinador. E também do mundo tático particular e periférico dos jogadores. Deu no que deu, mesmo com um primeiro tempo abaixo da expectativa.
O Santo André dos primeiros 40 minutos parecia inibido, encapsulado por um adversário que se empenhava em desaquecer o ambiente do jogo. E o fez muito bem, até que nos últimos minutos uma forte pressão chegou ao ponto da marcação de uma penalidade máxima transformada em gol.
O que se viu no segundo tempo foi a expressão tática do trabalho de Fernando Marchiori. O Santo André exibiu uma coleção de virtudes retiradas das extenuantes horas de treinamentos sempre respaldadas por sessões intensas de gravações dos jogos jogados. Mostrou-se um time capaz de executar com brilho tanto jogadas de ultrapassagens simples como triangulares, de virar o jogo para explorar deficiências de marcação e cobertura do adversário. Imprimiu o ritmo que mais lhe convinha, aquecendo e desaquecendo a temperatura de acordo com as necessidades.
E jamais se acomodou com a vantagem no placar. Nem mesmo quando, após chegar aos três a zero e ouvir a torcida iniciar as comemorações, foi surpreendido com uma falha do goleiro, traduzida em gol do adversário. Mais um gol do Internacional e tudo terminaria em cobrança de penalidades máximas. O padrão de comportamento dos treinadores brasileiros, de defender a vantagem a qualquer custo, foi jogado no lixo. O Santo André seguiu ofensivo, prospectivo, e poderia ter chegado à goleada.
Para todos os gostos
Para quem dá tratamento ao futebol levando em conta essencialmente os aspectos materializáveis, de treinamento e de resultados, a explicação para o título da Segunda Divisão tem nome e sobrenome: Fernando Marchiori.
Para quem prefere combinar essas virtudes com uma espécie de pés invisíveis do futebol, que dariam ao Santo André o sortilégio de crescer nos momentos decisivos de uma competição de acesso, também a resposta é Fernando Marchiori. Ele honrou a tradição de treinadores que chegaram a um Santo André quase sempre desfiado a contrariar orçamentos esquálidos e vocacionado à superação nos gramados.
Se o futebol brasileiro decidir prestigiar profissionais com talento e obsessão e, mais importante ainda, com vocação ao ataque, à compactação entre as linhas, à técnica acima da violência, a alternativas de jogo que desprezem o chutão como arma preferencial, o futebol brasileiro terá espaço para Fernando Marchiori.
O Santo André ousou trazer um desconhecido que se provou altamente compensador para alcançar um acesso mais que improvável e fugir de um rebaixamento mais que possível. Um time de deserdados costurado no dia a dia, centímetro por centímetro de gramado, segundo por segundo na tela de um computador, numa mixagem perfeita entre tecnologia e o que subsistia de talentos individuais.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André