O Santo André campeão da Segunda Divisão (Série A-2) do Campeonato Paulista desta temporada vai virar Água Santa de Diadema, desclassificado no mata-mata pelo próprio Santo André. O técnico Fernando Marchiori e boa parte dos titulares do Santo André já acertaram contrato com o Água Santa. O treinador já foi anunciado como reforço para a disputa da Copa Paulista, prestes a ser iniciada. Os jogadores o serão nesta semana.
Dizer que o Água Santa virou Santo André ou o inverso, que o Santo André virou Água Santa, é um desafio semântico. Vale a primeira ou vale a segunda premissa? Desafio o leitor a responder à questão.
Certo mesmo é que o que separa o tradicional Santo André do novato Água Santa é algo que faz a diferença em todo o mundo: dinheiro. O Santo André é o primo pobre do futebol da região. O Água Santa é o novo rico. Quem pode mais, chora menos. Ou busca comemorar títulos.
Não faltaram inquisidores quando, antes do confronto entre as duas equipes na semifinal da Série A-2 desta temporada, escrevi que o Santo André era o primo pobre e o Água Santa o primo rico. Alguns me rotularam de oposicionista que pretendia destruir o Santo André. O que se pode fazer quando a paixão emburrece?
Economia de guerra
O Santo André que vai disputar a Primeira Divisão do ano que vem terá uma equipe totalmente modificada na Copa Paulista prestes a começar. Não há recursos financeiros para fazer da Copa Paulista preparação para o Campeonato Paulista. O Santo André vive numa penúria de dar dó. Por isso vai lançar muitos jovens a preços de banana, por assim dizer. Preços de banana quanto aos salários, bem explicado.
Só restariam duas saídas para o Santo André superar a situação econômica e estrutural em que se encontra, de perder praticamente o time inteiro para o Água Santa: que a cidade o abraçasse ou que investidores do futebol aportassem no Parque Jaçatuba. A primeira saída é mais que improvável, porque Santo André é uma peça de museu em institucionalidades. A segunda depende de uma oportunidade de ouro que pode surgir a qualquer momento. Como não surgiria jamais.
Trocando em miúdos: como é muito mais que provável que a cidade de Santo André não se mexerá jamais para reforçar uma equipe que só tem contribuído para lhe dar uma imagem menos suburbana e complicada, e como os investidores não estão a dar sopa, o mais provável é que o chamado Ramalhão continue a saga de superar desafios.
Como o mais recente, no qual era candidatíssimo ao rebaixamento e virou campeão da principal competição de acesso estadual no País.
Todas as divisões
A Copa Paulista é uma competição entre equipes de todas as divisões. Está programada apenas para preencher o calendário anual da Federação Paulista de Futebol. Não há repasses de patrocínio pela entidade. Cada time entra com a cara e a coragem, e com o suporte financeiro que têm à disposição. Significa, em última instância, apenas despesas.
As receitas são minguadas. Bilheterias e patrocínios quase não fazem cócegas orçamentárias para os clubes na Copa Paulista. Visibilidade também não. Raramente os jogos são transmitidos pela TV. A Copa Paulista é, portanto, uma competição pouco importante. Mesmo para os padrões já esquálidos de equipes de pequeno porte.
Quem está fora do circuito nacional joga a Copa Paulista apenas para não paralisar de vez as atividades no segundo semestre da temporada. Os três meses de competições estaduais para valer no primeiro semestre são um período muito curto.
Imaginem uma padaria que só abre as portas três meses no ano com possibilidade de obter receitas adicionais com base em subsídios. Imagine a mesma padaria que, nos demais meses, é obrigada a abrir as portas e vender mercadorias abaixo do preço de compra.
Reserva especial
É assim a Copa Paulista para o Santo André e a maioria dos concorrentes. Para quem quer acabar com as competições estaduais, ou mesmo estrangulá-las ainda mais, é um prato cheio. Esses pragmáticos só esquecem que a base da renovação do futebol brasileiro passa também pelos clubes menores, fora da bolsa de valores de marcas valiosas.
Não é o caso do Água Santa de Diadema. O time favoritíssimo ao título do Acesso deste ano, mas eliminado pelo Santo André porque entendia que seria uma barbada ganhar os dois jogos, cedeu à realidade. E a realidade é a que o Santo André pratica desde sempre: um time vitorioso na divisão de Acesso não pode perder a humildade, precisa contratar com cuidados especiais para não desperdiçar munição financeira sempre escassa e não pode prescindir de comando diretivo.
Tradução: o futebol de Santo André, do Município de Santo André, é uma lição a tantas outras instituições fora da órbita da bola que, ao gozarem de muito mais condições estruturais e financeiras, não cumprem os respectivos deveres de atender aos anseios da sociedade.
O Santo André tradicionalmente vitorioso na Segunda Divisão (o título desta temporada foi o quinto na história, um recorde juntamente com o desempenho de XV de Piracicaba) chega ao limite máximo do possível. Manter-se na Primeira Divisão é outra história.
Competição desigual
Na Primeira Divisão, a maioria das equipes tem calendário nacional e disputa a Série A ou a Série B do Campeonato Brasileiro. São concorrentes desleais, por assim dizer. Estão consolidados em receitas financeiras bem mais expressivas. São franquias bem geridas contra lojista de rua com três meses apenas de faturamento.
Virar Água Santa é, na verdade, um tapa na cara do conjunto da sociedade de Santo André. Na última vez que o Santo André procurou sair do casulo que o prende à contínua superação para não se desgarrar das duas principais divisões do futebol paulista, o resultado foi desastroso. A constituição do Saged, uma empresa que durante cinco anos administrou o futebol do Esporte Clube Santo André, virou um pesadelo que não se acaba.
O rebaixamento à Sexta Divisão do futebol brasileiro (é esta, de fato, a hierarquia reservada aos integrantes da Série A-2 do Campeonato Paulista) e dívidas que esfolam o orçamento já bastante modesto tornam o Santo André ainda mais fragilizado e sujeito a apanhar dos concorrentes em qualquer competição.
Improvável contrariado
Ganhar a Segunda Divisão deste ano com um elenco reduzido, salários baixíssimos em relação aos favoritos e com um técnico que ninguém conhecia no futebol paulista tem toda a textura de improvável. Mas, mesmo o improvável a olhos de terceiros, pode ser um substrato do planejamento do desespero de quem tem a obrigação de colocar uma equipe em campo.
Qualquer morador de Santo André que tenha paixão pelas cores do Ramalhão deveria se sentir humilhado quando tomar conhecimento dessa bomba que produzo neste texto: perder o time inteiro que interessa ao Água Santa é um chute na canela da viuvez em que se encontra o futebol da cidade.
A classe média mais tradicional do passado praticamente desapareceu do Estádio Bruno Daniel. Seus representantes morreram ou perderam mesmo o interesse em se deslocar à Vila Pires. As novas gerações desse estrato social possivelmente debandaram em busca de melhores empregos, que escasseiam na região. Ou simplesmente se lembram do Santo André apenas em momentos especiais. De resto, há times grandes vizinhos a prestigiar. Times que contam com toda a força do marketing esportivo.
Resiliência da periferia
O que surpreende como representação popular do Santo André é a resiliência de jovens de regiões periferias, principalmente do entorno do Estádio Bruno Daniel. Eles, a maioria nascida no Município, vestem para valer a camisa do clube. Vibram como torcedores de times grandes. Sofrem. Reclamam. Apoiam. As torcidas organizadas dão todo o apoio. O Santo André resiste no futebol fora de campo quase que como um fenômeno. Contra tudo e contra todos. Como é possível despertar paixão de uma torcida jogando apenas três meses a cada temporada?
Apesar de o presente estrutural do Santo André estar muito aquém do desejável para uma cidade de mais de 700 mil habitantes e uma região de quase três milhões de moradores, há sempre a esperança de novos tempos. A tradição de desafiar adversários dotados de recursos financeiros muito acima do que pode somar é possivelmente a lógica da escassez produtiva.
Os dirigentes e conselheiros mais antigos do Santo André já morreram ou estão cansados de guerra. Não há reposição à altura sobretudo quanto à imperiosidade de contar com experiência no mundo da bola. Futebol profissional não é para qualquer um, para curiosos ou oportunistas.
Penitência matutina
Uma jornada projetada sem bases históricas de entendimento de como se move o jogo de bola dentro e fora dos gramados pode ser fatal. O Saged que morreu e levou o Santo André ao estágio atual, de mais complicações do que as já naturalmente impostas, é prova disso. Sucesso temporário sem sustentação é sempre seguido de comprometimento prolongado no futuro.
Cada morador de Santo André deveria acordar consciente de que poderia reservar um minuto de reflexão na hora do banho para se penitenciar por dar tão pouco à instituição que mais bem representa o nome da cidade em qualquer atividade humana.
O Santo André é o melhor de Santo André, mesmo quando é rebaixado da Série A-1 Paulista. As demais instituições não passam por qualquer sabatina de competência tão democrática quanto a que se mede quando a bola começa a rolar no gramado. Ali é a hora da verdade.
O Santo André que vira Água Santa é a costura esportivo- sociológica mais compulsória destes tempos no futebol. Sem parceria com a sociedade e sem ser descoberto por financiadores e investidores, só resta ao Ramalhão seguir a fazer milagres nos gramados. Até que o estoque se exaure.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André