Depois de uma longa folga, acho que vale a pena voltar ao debate sobrea ocupação da potencial vaga que se abriria na Série A1 do Campeonato Paulista do ano que vem, ante eventual desistência do Red Bull de Bragança Paulista.
Qualquer que seja o resultado no Conselho Técnico da Federação Paulista de Futebol, provavelmente no final de setembro, a lisura ética poderia estar comprometida. Um festival de erros marca esse caso que poderia ser definido como “A vaga da discórdia”.
Se houver, além do rompimento ético, também uma escolha afrontosa ao regulamento da Série A1 e da Série A2, estará completo o circo de equívocos. Como sou cético por natureza, sinto que se cometerá uma barbaridade. Seria impossível não exalar um cheiro nauseabundo de algo carregado de impurezas. Um enredo tão absurdamente construído não teria, portanto, um desfecho saudável. Para dizer o mínimo.
Para apreciação que espero igualmente crítica dos leitores, colocaria o que chamaria de quatro pontos viscerais do que temos nesse momento.
1. Transparência do Red Bull comprometida.
2. Determinação da PFP prolongada demais.
3. Arrefecimento comprometedor do São Caetano.
4. Pressão oportunista do Água Santa.
Um clube multinacional como o Red Bull jamais poderia protelar tanto e se furtar a dar explicações públicas sobre o que pretende fazer com a vaga de que deve dispor por conta da incorporação do Bragantino.
O Red Bull vai vender a vaga oficialmente, vai desistir limpamente da vaga ou vai anunciar à Imprensa que disponibilizou a vaga à Federação Paulista de Futebol, embora supostamente, como se especula, faria acerto de bastidores com algum clube interessado na maior vitrine estadual do País?
Ética vai para o lixo?
Quem disser que não existe motivo algum ou mesmo motivo consistente para a construção de um cenário em que a ética vai para a lata do lixo desconhece o mundo do futebol. E o Red Bull não terá motivo algum para condenar interpretações com vínculos nada republicanos à eventual desistência da competição.
Quem demora tanto tempo para se definir teria razões de sobra para supostamente pretender levar vantagem (legítima ou não) em eventual retirada de cena, porque de fato continuará no palco, agora com as cores do Bragantino.
Duvido que se eventualmente reunir a mídia para dar explicações sobre a decisão tomada, a direção do Red Bull no Brasil dissiparia a onda da desconfiança de que supostamente deixaria a Série A do Campeonato Paulista sem compensação alguma. Sobretudo porque pagou os tubos pelo Bragantino.
Quem vai acreditar?
É verdade que o Red Bull não comete delito jurídico ao esticar a corda do tempo na definição do que fará com a vaga. O regulamento de todas as séries do Campeonato Paulista estica a corda de desistências ou novas configurações associativas até as vésperas do Conselho Técnico. O Red Bull ficaria restrito exclusivamente ao bom senso. Uma marca tão prestigiada não poderia correr esse risco.
Muito antes da definição dos quatro finalistas da Série A2 do Campeonato Paulista este jornalista já alertava sobre a improcedência da massificação midiática de que o terceiro colocado da Série A2 teria direito a eventual vaga de desistência de uma agremiação da Série A1. Essa ressalva é importante. Retardatários procuram vincular a improcedência à demanda do Água Santa de Diadema, não ao conceito fundamentado no próprio regulamento.
Naquela altura do campeonato a equipe menos provável a classificar-se em terceiro lugar no campeonato de acesso era exatamente o representante de Diadema, considerado (inclusive por este jornalista) franca favorita ao título da temporada.
Quem recorrer ao arquivo deste site vai notar que abandonei uma quase sempre posição de cautela quando se trata de futebol e apontei o Água Santa favorito quilométrico na semifinal diante do Santo André.
Omissão da Federação
Quem deveria esclarecer e dirimir dúvidas acabou por estimulá-las. Mais que isso: fez vazar à imprensa que trata diariamente do futebol paulista uma leitura enganosa do Artigo Nono, Parágrafo Primeiro, do regulamento da Série A2.
Estou me referindo especificamente a fontes da Federação Paulista de Futebol. Saiu dali, dos corredores da FPF, a doutrinação pró-terceiro colocado. Que virou unanimidade burra da mídia.
Chegou-se, portanto, ao estágio atual, de desconfiança generalizada sobre o prevalecimento da ética e da legalidade. Fontes da Federação Paulista de Futebol assim o alimentaram. Os responsáveis pela versão pecaram pela imprecisão. Firmaram juízo de valor com base no regulamento de acesso cujo prazo de validade esgotou-se na temporada de 2016.
Nas disputas subsequentes, desapareceu do regulamento da Série A2 o verbete que resguardava eventuais direitos de acesso do terceiro colocado. Mais que isso: substituiu-se o que era direito por uma monolítica restrição no ponto em que o parágrafo primeiro definiu que o terceiro colocado só ocuparia eventual vaga em aberto na Série A1 caso um dos primeiros colocados do mesmo acesso desistisse da classificação obtida dentro de campo. Antes disso, não existia condicionante.
A catequização em torno do acesso do terceiro colocado chegou a um estágio de delírio interpretativo. Qualquer tentativa de esclarecimento ganha o universo paralelo de radicalismo obsessivamente cego.
Presidente contraditório
Por razões que somente o tempo poderá desvendar, durante todo esse período de embates a presidência do São Caetano teve comportamento ambíguo. O que se pergunta é o seguinte: por que razão o presidente Nairo Ferreira assinou um documento preparado por um especialista contratado pelo clube, o qual não deixava uma brecha técnico-jurídico sequer em defesa de manutenção na competição, e, paralelamente, distribuía material à Imprensa sugerindo conformismo com o rebaixamento?
Possivelmente esse descaminho do presidente do São Caetano, ou seja, com uma mão assinou uma documentação detalhadamente consistente, e com a outra jogou tudo para o alto, tenha lubrificado ainda mais a engrenagem que atropelou os interesses do São Caetano no ambiente pró-terceiro colocado.
Exceto se Nairo Ferreira entender que é muito mais lucrativo para o São Caetano jogar a Série A2 do que a Série A1, e mesmo assim sugerindo-se que explique e convença a todos de tamanha insensatez, o que temos nesse caso é uma situação que mereceria investigação mais apurada. Já haveria um movimento de conselheiros do São Caetano em torno desse desajuste.
É verdade que o regulamento da Série A1 do Campeonato Paulista, cuja forma de disputa é diferente da Série A2, não contempla uma linha sequer que proteja explicitamente o São Caetano diante de eventual desistência do Red Bull. Da mesma forma que não existe nada no regulamento da Série A2 que premie o terceiro colocado na classificação final, exceto se um dos dois primeiros colocados jogar a toalha.
Entretanto, o São Caetano tem como argumento que daria consistência à demanda de continuar na Série A1 a caracterização da desistência do Red Bull como rebaixamento. Como penúltimo colocado na competição, o São Caetano escaparia da degola -- a queda atingiria diretamente o último colocado São Bento de Sorocaba e o retirante Red Bull.
Ouviu-se e ouve-se de tudo na tentativa de dar ao terceiro colocado da Série A2 méritos que nem o regulamento nem a história esportiva lhe conferem. Sobre o regulamento, já expliquei. Sobre a história esportiva, nem é preciso recorrer ao passado muito mais destacado do São Caetano do que do Água Santa. Até porque, de nada adiantaria sob o ponto de vista regulamentar.
Vamos nos fixar, por isso mesmo, exclusivamente nos resultados desta temporada e nas duas classificações finais: o São Caetano terminou a Série A1 em 15º lugar e o Água Santa terminou a Serie A2 em terceiro lugar. Quem hierarquizar os 32 clubes das duas principais divisões do futebol paulista encontrará o São Caetano na 15ª posição e o Água Santa na 19ª.
Quem acha que meritocracia não se corporifica nesse tipo de comparação, porque suposta e estranhamente o terceiro lugar da divisão de acesso valeria mais que o 15º lugar da divisão principal, pode ser questionado com substância técnica: as dificuldades impostas ao São Caetano na competição entre os maiores clubes do Estado foram muito maiores que as interpostas ao Água Santa numa divisão inferior.
Como assim? Basta o seguinte enunciado: enquanto o São Caetano jogou uma competição na qual 11 dos 16 integrantes disputam a Série A e a Série B do Campeonato Brasileiro, o Água Santa enfrentou adversários que não constam de nenhuma dessa divisão. Jogar contra equipes da Série A e da Série B do Brasileiro é uma roubada, porque esses adversários gozam de calendário de competições ao longo do ano. Já na Série A2 do Paulista jogaram nesta temporada apenas equipes de calendário estreito, sem classificação nacional.
Alguém tem dúvidas de que, além do tiro curto de apenas 11 jogos na fase classificatória, enfrentar um Corinthians na primeira rodada, um Palmeiras na terceira rodada e fechar a disputa com o São Paulo, é uma escalada desafiadora muito, mas muito superior a qualquer sequência de jogos de qualquer equipe que disputou a divisão de acesso de 19 rodadas classificatórias?
Trocando em miúdos: dá para usar sensatamente o critério de meritocracia, sem reconhecer os direitos do São Caetano também nesse sentido, quando o cardápio que se apresenta é um contraste de qualidade e quantidade de confrontos dentro de campo?
A brecha que o Água Santa encontrou na interpretação caolha e deformada de se contemplar o terceiro colocado da Série A2, gozando para tanto de ambiente criado a partir de fontes da Federação Paulista de Futebol junto à mídia, principalmente digital, é uma arremetida inteligente.
O time de Diadema, melhor em campo disparadamente durante a fase classificatória, encontrou uma saída mais que esperta para procurar compensar no que poderia ser chamado de tapetão o que deixou escapar nos vãos das pernas na semifinal contra o Santo André.
Até mesmo uma patética jurisprudência que jamais se desdobrou de raríssimas situações como a que está se apresentando foi avocada pelo advogado do Água Santa, referindo-se numa confusa reportagem publicada pelo Diário do Grande ABC a um caso especifico no Campeonato Paranaense. Um caso que não ultrapassa a linha de semelhança forçada, que não é exatamente um atributo jurídico indiscutível à reprodução integral.
O São Caetano tem motivos de sobra para defender o direito de permanecer na Primeira Divisão de São Paulo, mesmo à falta da especificação regulamentar de que rebaixamento e desistência são juridicamente parentes muito próximos.
Estamos diante de um caso de extraordinária criatividade conflitiva. A obviedade foi tão violentamente esmagada pela falsificação interpretativa que se chegou a um estágio de surrealismo; ou seja, o que seria objeto de definição automática foi soterrado pela consagração do absurdo.
Talvez apenas a venda da vaga a uma equipe fora do entorno dessa confusão dos diabos salvaria as quatro correntes de interesses específicos, mas sempre permanecerá a sombra de eventuais terceiros que se moveriam na penumbra para se locupletarem.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André