Esportes

Quatro problemas e uma única
saída para FPF evitar escândalo

DANIEL LIMA - 16/08/2019

O presidente da Federação Paulista de Futebol tem quatro desafios a superar para impedir que se cometa uma barbaridade esportiva com repercussões escandalosas para uma administração essencialmente discreta. 

Reinaldo Bastos é em última instância quem vai decidir quem vai ocupar a possível vaga que o Red Bull abriria na Série A1 do Campeonato Paulista. Em várias ocasiões, sempre longe da oficialidade declaratória, o dirigente manifestou-se favoravelmente ao terceiro colocado da Série A2. Trata-se de um equívoco monumental que abriria as portas do Judiciário e da Justiça Esportiva. 

É disso de que tratamos mais uma vez. Há quatro cavaleiros do apocalipse ético e legislativo diante de Reinaldo Bastos. Caberá a ele uma decisão que se confirmaria em assembleia dos clubes. 

Açodadamente, e estranhamente, o dirigente já fez disseminar junto a dirigentes esportivos e na mídia não graúda posição que estaria consolidada não fosse movimento de contestação. O Água Santa, no entendimento do dirigente, depois de ouvir conselheiros da própria FPF, ficaria com a vaga. O regulamento não contempla essa alternativa. 

Judicialização à vista 

Tem-se informações que a competição do ano que vem poderá ser judicializada por qualquer torcedor que faça uso da legislação que protege os direitos dos consumidores. O São Caetano, diretamente interessado na provável vaga aberta pelo Red Bull, prefere não se manifestar, embora a diretoria executiva seja pressionada por torcedores inconformados com o desenho de uma arbitrariedade decisória. 

CapitalSocial debruça-se sobre o que chama de vaga da discórdia muito antes de se definirem os semifinalistas da Série A2. Portanto, as restrições ao acesso do Água Santa de Diadema não é discricionariedade nominativa. É a consolidação de um conceito embasado e solidificado no que se segue nesta análise. 

Optamos por produzir uma avaliação que leva em conta quatro vetores igualmente importantes aos consumidores de informação. O conjunto de informações e ponderações que se segue está sendo encaminhado à direção da Federação Paulista de Futebol. Aliás, como o foram os textos anteriores que tratam do assunto. 

Ainda estamos longe de encerrar esta série. Enquanto a situação não for resolvida, seguiremos em frente. Há outros pontos a revelar nos próximos dias. E o serão. 

Nas últimas horas encontramos provas documentais irrebatíveis quanto a movimentações que ferem a ética esportiva, quando não instalam a vaga da discórdia num compartimento que pode ganhar ares de irregularidades cujo destino seria o Judiciário. Há vícios de origem que ferem de morte o regulamento, além do Código de Defesa do Consumidor. 

Olhem o regulamento 

Ou seja: a interpretação canhestra do regulamento é um convite à barafunda organizacional da Série A1 e da Série A2 da próxima temporada. O paradoxo disso tudo é que a própria Federação Paulista de Futebol está rasgando o regulamento que concebeu. A discussão em torno da chamada terceira vaga é uma aberração. Basta uma leitura atenta. O Artigo Nono, parágrafo primeiro, é escandalosamente esclarecedor.  Repetimos mais uma vez esse trecho precioso do regulamento da Série A2. Acompanhem: 

Artigo Nono – Terão direito de acesso à Primeira Divisão (Série A1 de 2020, os dois clubes classificados para a fase final da competição).

Parágrafo Primeiro – Em caso de não participação de algum clube classificado para o Campeonato Paulista de Futebol Profissional (Primeira Divisão, Série A1 de 2020), terá também acesso o clube que obtiver a 3ª melhor campanha no Campeonato Paulista de Futebol Profissional, Primeira Divisão, Série A2 de 2019, dentro os que disputaram a fase semifinal. 

Agora passamos aos quatro núcleos que podem levar a Federação Paulista de Futebol ao precipício de um favoritismo lubrificador de idiossincrasias.  

 Constitucionalidade pétrea

O regulamento de uma competição é espécie de Constituição Esportiva. Há cláusulas pétreas enquanto duram, por assim dizer. Quando a Federação Paulista de Futebol publicou o regulamento da Série A2 (e também da Série A1, como de outras divisões, sempre em encontros separados no tempo, geralmente em outubro de cada ano) não alinhavou uma preliminar de improvisos que possibilitariam, mais adiante, o ajuste de acordo com o freguês de interesses nobres ou não. 

Há antiga máxima do futebol que diz sem sofismas, porque peremptória: regulamento é regulamento. Ora, se regulamento é regulamento, não tem sentido o regulamento ser fraudado com leituras enviesadas, quando não apadrinhadas, quando não suspeitas, quando não recheadíssimas de outras coisas. 

Buscar eventuais interpretações com uma tática mais que conhecida, de cruzar regulamentos no tempo e no espaço, como se fizessem parte da mesma maçaroca de malabarismos interpretativos, é uma ingênua aventura, fadada à desmoralização. Misturar as bolas, literalmente ou metaforicamente, é o que no jargão popular poderia ser chamado de roubada. Em todos os sentidos. 

Querer puxar a sardinha de uma interpretação malandramente oportunista traçando um paralelo semântico entre competições separadas pelo tempo e pelos contextos regulatórios tem o mesmo significado de penalizar quem afrontou a Lei Maria da Penha antes que a Lei Maria da Penha virasse lei. No caso da vaga da discórdia, a situação é ainda mais grave. Não há, mesmo descontextualizada no tempo, situações que sugeririam equivalência. 

Por incrível que possa parecer, não falta na praça quem assassine a lógica de raciocínio toda vez que se coloca em debate a vaga da discórdia da Série A1. Os mandraques não perdem a pose. Falam com o caradurismo típico dos ignorantes que se pretendem espertos. E há uma horda de descuidados que seguem o funeral de aberrações.

 Limitação ocupacional

Não faltam aventureiros, quando não piratas interpretativos, que procuram o milagre da encomenda de algo chamado de jurisprudência para tentar dar legitimidade ao ilegítimo; ou seja, entregar de bandeja uma eventual vaga da Série A1 do Campeonato Paulista a uma equipe que, na Série A2, não fez jus à premiação, sempre considerando os termos regulamentares. 

Ao longo dos anos a Federação Paulsita de Futebol promoveu mudanças regulamentares nas divisões de acesso e também na divisão máxima, no caso a Série A1. Com relação ao acesso, é claro que as mudanças só se deram nas divisões abaixo da Série A1, porque a Série A1 é o topo da hierarquia, no qual só há espaço para o rebaixamento – e logicamente para o título. A Série A1 é a fita de partida e de chegada. Não existe nada além disso.  

Houve competições em que equipes poderiam potencialmente se beneficiar de critérios de acesso sustentáveis. Quando o regulamento da competição determina elasticidade de equipes rumo à divisão imediatamente acima, não há a menor possibilidade de bloqueio. Regulamento é regulamento. Se o regulamento afirma que uma terceira equipe rebaixada da Série A1 deve ser substituída pelo terceiro colocado da Série A2, não existe nada a discutir. Esse não é o caso desta temporada.  

Qualquer regulamento aprovado no Conselho Técnico dos clubes é uma obra constitucional no sentido de caracterização de obediência ao que está escrito. Não fosse assim, a própria etimologia de “regulamento” deixaria de existir. O que teríamos, portanto, seria algo como “Especulação sobre as regras do campeonato desta temporada”. 

A condição pétrea do regulamento de cada temporada é, portanto, paradoxalmente, provisória. O que vale durante uma temporada pode eventualmente não valer na temporada seguinte. A aprovação em assembleia da Federação Paulsita de Futebol com os clubes é o fórum de mudanças que transformam o supostamente definitivo em provisório. 

Para ser mais claro e provocativo: o definitivo ao longo de uma temporada de disputa (e que, portanto, não comporta invasões interpretativas que firam o espírito do regulamento) vira provisório na medida em que o Conselho Técnico da edição seguinte eventualmente interferira para mudar as regras de um jogo que ainda não começou. Quando ao jogo é dado um destino regulamentar, tudo cessa. Até que se definam as regras da temporada seguinte. 

 Divisibilidade territorial

Quem tiver a ousadia de dizer (e vamos ficar apenas nas duas principais divisões, porque o conceito vale para todas) que a denominação Primeira Divisão, que engloba as Série A1, Série A2 e Série A3, é um imenso guarda-chuva regulamentar que contempla uniformidade de artigos, parágrafos e incisos, incide em grande erro. 

Há evidente sistemicidade, mas também eloquente divisibilidade territorial a envolver as três divisões em especificidades. As três divisões têm muitos pontos em comum, entre os quais o período de disputas e tantos outros, mas também várias veredas próprias. Nem poderia ser diferente, sobretudo quando se colocam a Série A1 e a Série A2 em confronto.

Querem um exemplo de separação de corpos regulamentares? Enquanto a Série A1 comporta 16 equipes em quatro grupos de quatro equipes, classificando-se as duas primeiras de cada grupo para a fase de mata-mata, após jogos entre os integrantes que não sejam do mesmo grupo, a Série A2 também contempla 16 equipes, mas conta com regulamento em que todos jogam entre si em turno único e os oito primeiros partem para uma segunda fase, agora de mata-mata. 

As duas divisões são tão distintas que na primeira etapa de cada competição, fase classificatória, as equipes da Série A1 disputam apenas 12 jogos, enquanto as da Série A2 jogam 15 vezes. Parece pouco, mas é nada menos que 25,00% de diferença. Ou seja: o poder temporal de recuperação de equipes que erram na largada da competição da Série A1 é muito inferior ao das equipes da Série A2. Quem tem dúvidas de que essa distância pode ser determinante ao acesso e ao rebaixamento? 

Mais diferenças?  Na Série A1 os dois finalistas disputam o título da temporada e mais nada, porque não existe um elevador de destaque a ser ocupado. Na Série A2 os dois finalistas disputam não só o título da temporada como também ratificam o acesso à Série A1. 

Também há uma valorização mais expressiva das equipes da Série A1 nas cotas de participação e de premiação. Recebem muito mais valores monetários que as equipes da Série A2. A pressuposta qualidade superior dos ocupantes da Série A1, patamar no qual os grandes clubes são frequentadores desde sempre, determina os valores de patrocínios. A audiência dos grandes clubes carrega nas costas os preços aos patrocinadores. Tanto é que recebem as maiores fatias. 

Tratar a Série A1 e a Série A2 como integrantes do mesmo pacote do Campeonato Paulista é um erro de cálculo matemático, uma falha de avaliação técnica dos competidores, um tropeço no diagnóstico do que mais chama a atenção da audiência e uma fraude técnica deliberada para conduzir o debate ao subjetivismo pretensamente esclarecedor.

Tanto é verdade que houve quem defendesse, à falta de argumento técnico-regulamentar, mais meritocracia na subida do terceiro colocado da Série A2 do que a manutenção da vaga pelo penúltimo colocado da Série A1. Desprezou-se, entre outros aspectos, a própria hierarquia do futebol paulista e o grau de dificuldades muito superior às equipes de menor porte da Série A1, cujos adversários na temporada foram predominantemente ocupantes da Série A e da Série B do Campeonato Brasileiro. No caso da Série A2, não havia nenhuma representação das duas divisões do calendário nacional.

 Restrição ascensional 

Tanto a Série A1 quanto a Série A2 desta temporada contaram com regulamentos que interditam qualquer tentativa legal de se premiarem com o acesso e se condenarem com o rebaixamento mais de duas equipes. Nem mais, nem menos. Há artigos e parágrafos nos respectivos regulamentos que assim o determinam. 

Desta forma, o arrombamento dessa regra de ouro com a inclusão de uma terceira equipe na Série A1 depois de disputar a mesma temporada na A2 é escandalosamente fraudador. Aliás, como o rebaixamento de uma terceira equipe da Série A1 para a Série A2, seja por conta do rendimento em campo, seja por razões de cunho organizacional, como é o caso do Red Bull após a aliança com o Bragantino.

Não existe nos dois regulamentos nada que, mesmo que incipiente, enseje quantidade de acesso e de descenso suplementar – e tampouco redutor. Sobem dois e descem dois, essa é a condição estabelecida na comunhão de interesses dos clubes e da Federação Paulista de Futebol durante os respectivos Conselhos Técnicos.

A provável saída de cena da Série A1 do Red Bull, por conta da associação com o Bragantino, e a consequente ocupação da vaga pelo São Caetano, que terminou em penúltimo lugar dentro de campo, estão contempladas explicitamente e implicitamente, pela ordem, no regulamento. Portanto, o rebaixamento do São Caetano feriria as normas regulamentares.  

Não custa lembrar que tanto a Série A1 quanto a Série A2 ainda não foram encerradas, conforme as disposições regulamentares. A qualquer momento, até que se iniciem os conselhos técnicos que definirão os respectivos regulamentos das duas competições, será possível haver novidade. Essa possibilidade é regulamentar. Basta ler o regulamento. 

Se o Santo André ou o Internacional de Limeira, primeiro e segundo colocados da Série A2, desistir por qualquer razão da disputa da Série A1, o Água Santa é o imediato ocupante da vaga. Está no regulamento. Se Santo André e Internacional não apontarem nenhum problema e confirmarem a vaga, o Água Santa terá de disputar novamente a Série A2. Está no regulamento. 

Da mesma forma, eventual retirada do Red Bull por conta do negócio com o Bragantino, contemplará o São Caetano como ocupante de uma vaga que teria perdido dentro de campo. É o que diz o regulamento ao determinar que as duas últimas equipes serão rebaixadas. O São Bento de Sorocaba foi o lanterninha e o Red Bull também não escaparia da degola, agora fora de campo. 

Diferentemente do caso envolvendo o terceiro colocado da Série A2, cujo acesso é condicionado à retirada de um dos dois primeiros colocados, o regulamento da Série A1 não especifica nenhum embaraço à continuidade do São Caetano em caso similar – que envolve o Red Bull. 

Qualquer medida que se tome para impor uma equipe fora da Série A1 para recompor o grupo de 16 será ilegal porque a desistência ou algo assemelhado que venha a ser anunciada pelo Red Bull caracterizaria do ponto de vista legal compulsório rebaixamento. 

Dessa forma, a equipe se juntaria ao São Bento de Sorocaba, último colocado, como a dupla que passaria a ocupar as duas vagas que se abririam na Série A2 com o acesso dos dois primeiros colocados. Ou o Red Bull seria multiplicadamente rebaixado. Se eventualmente pretender retornar ao futebol, teria de começar do primeiro degrau da hierarquia paulista.

Na hipótese pouco provável de o Red Bull negociar a vaga com uma equipe integrante ou não da Série A2, estaria estabelecida uma situação que exigiria muita transparência e estudos jurídicos minuciosos. Afinal, o Red Bull não poderia transferir a vaga. Claro que há dúvidas sobre isso, mas esse deve ser o ponto de partida a esclarecimentos. 

Não está fora de cogitação que o Água Santa de Diadema, que tanto pleiteia o acesso como terceiro colocado, em confronto com o regulamento da Série A1, associe-se ou simplesmente adquira a vaga do Red Bull. Caso não faça nem uma coisa nem outra, lhe restaria contar com o protecionismo da Federação Paulsita de Futebol, que transladaria a equipe à Série A1 em flagrante conflito constitucional-esportivo. Aí tudo pode acontecer. 

A Federação Paulista de Futebol só conta com uma saída para evitar que a vaga da discórdia percorra caminhos insondáveis: cumpra o regulamento que concebeu e fez aprovar. Sem sofismas que garantiriam boa-vida a gente que faz do futebol grandes negócios. 



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