Dono da melhor campanha do Campeonato Paulista da Série A1 desta temporada, com incríveis 18 pontos de 21 disputados, o Santo André é um desafio aos analistas e um sucesso estrondoso entre os curiosos que não enxergam o futebol além da superficialidade dos resultados. O jogo desta noite contra o Corinthians na Arena de Itaquera talvez seja mais um compartimento interessante do laboratório de análises. Resistirá o Santo André à blitz alvinegra? Confirmará a equipe o que parece um conceito sólido de empilhamento de bons resultados?
A mídia em geral demorou um bocado para descobrir o Santo André que já nas duas ou três primeiras rodadas, como escrevi, parecia diferente do que tudo o que está aí. Santo André zás-trás é a expressão que escolhi para sintetizar o time de Paulo Roberto dos Santos. Um time que sai da defesa para o ataque em segundos. E que se recompõe também em segundos. É um estica e puxa sincrônico, embora oscilante na maioria dos jogos até agora.
Democracia no gramado
O Santo André zás-trás é a democratização de empenho individual mais intrigante do futebol brasileiro nesse começo de temporada. E com prazo de validade a vencer em breve. Exatamente quando se despedir do Campeonato Paulista. Talvez não deixe sucessores. Um time fugaz não deixa herdeiros. Sobreviverão apenas lembranças. Boas lembranças de um time marcado para desmanchar-se e que se transformou na sensação do futebol paulista.
Quem for ao dicionário, caso seja preciso ir ao dicionário, vai entender o que quero dizer. O Santo André zás-trás não dá bola para lantejoulas de marketing do futebol. É um time cuja premissa é o antimarketing. Vou explicar o que isso significa. E o que significa serve como pedra de toque para entendimento e conscientização dos próprios jogadores do Ramalhão. Se deixar de ser o que tem sido e procurar os holofotes do estrelismo, todos cairão do cavalo. O jogo com o Corinthians esta noite, porque Itaquera é tudo de bom para quem quer dar passos rumo à individualidade, é um grande teste de fidelidade ao receituário esculpido pelo técnico Paulo Roberto dos Santos.
Limitação e elasticidade
Se algoritmos forem capazes de detectar a capacidade técnica e tática dos jogadores de futebol em associação com o rendimento efetivo, o Santo André não só justificaria a liderança isolada no campeonato como também atingiria níveis insondáveis. Seria uma espécie de extremo do extremo da eficiência.
Quero dizer com isso que o Santo André é uma combinação perfeita de limitação individual técnica e elasticidade de desempenho coletivo técnico. Fosse cientista do futebol, traduziria tudo isso em siglas para impressionar a plateia.
Diria que o Santo André é a síntese do fator LIT associado ao EDCT. Ou seja: Limitação Individual Técnica e Elasticidade de Desempenho Coletivo Técnico. Tradução em termos simples: a equipe, em todos os jogos, flui na integração dos dois vetores. Com oscilações durante cada 90 minutos e os descontos regulamentares, mas, no conjunto da obra, sempre prevalecendo os dois condimentos de um tempero inusitado.
Mineração de dados
Especialistas já mediram o tempo em que o Santo André tem a bola sob controle e o tempo que o adversário do Santo André tem a bola sob controle. Outro dia o jornalista Derek Bittencourt, do Diário do Grande ABC, apresentou detalhes estatísticos de um site especializado em numerologia esportiva. Nada que contrariasse a movimentação e o rendimento humano no gramado. O Santo André fica menos tempo com a bola. Não o faz por vocação ao contragolpe planejado. O faz porque não se ilude com a própria fama. Sabe que mais importante que a posse improdutiva e a letalidade.
Ao contrário dos conservadores, entendo que a mineração de dados no campo futebolístico tem grande serventia. Mas, ao contrário dos idólatras dos dados, há limites que precisam ser devidamente ponderados. Mas isso não interessa agora, claro.
O fato, com software medidor ou sem software medidor de especificidades nos gramados, é que o Santo André é prova patente de maturidade que sai dos vestiários depois de treinamentos mais que produtivos durante a semana.
Planejador e executor do projeto bom e barato do Santo André, o técnico Paulo Roberto dos Santos tem feito um trabalho fantástico no sentido de que não está deixando que o rebanho seja fraturado com desgarramentos individuais. E olhem que isso é um feito enorme. A mídia em geral e os assessores de imagem escravizam as individualidades.
Máximo de cada um
O Santo André retira o máximo das individualidades operacionais que compõem as 11 funções. Na média geral, os jogadores do Santo André não estão entre o mais elevado nível na competição quando se analisa atentamente cada titular ou reserva imediato. O que os colocam como pepitas de ouro é o coletivismo pragmático.
E a senha para que o Santo André seja na soma das partes muito mais brilhante que a individualidade das partes é o princípio tático zás-trás.
O time de Paulo Roberto dos Santos apenas transmite a sensação de que não tem intimidade com a bola, porque se desfaz da preciosidade do futebol com rapidez. Mas é aí que mora o paraíso tático: há conscientização de cada jogador no sentido de que, para fazer o que mais sabem, o melhor é fazer o básico, porque ao se fazer o básico, a engenharia coletiva será uma sinfonia finíssima de virtudes.
Simplicidade funcional
Vou dar exemplos para que não se tenha nada do que escrevo como subjetividade ou teorização sem fundamentação.
Peguemos os laterais do Santo André: nenhum dos que jogaram até agora é brilhante, ou deveria estar obrigatoriamente numa seleção da temporada. Mas fazem o básico. Como o time é bem ajustado coletivamente, eles conseguem exercer a tarefa a que estão habilitados: marcam com eficiência e atacam igualmente. Tudo com muita objetividade. Certos de que são mais aplicados que qualificados, não podem brincar em serviço.
A simplicidade funcional torna os jogadores do Santo André mais efetivos e eficientes. São peças de um enorme quebra-cabeças que, espalhadas numa exposição de artes plásticas, pareceriam inúteis, inexplicáveis ou mesmo obsoletas. Entretanto, ao juntá-las numa coreografia de formas e cores, viram obra de arte.
A mesma avaliação vale para os zagueiros de área e às demais ocupações individuais. O meio de campo marca com denodo, sempre com o suporte de atacantes, e constrói jogadas por aproximação, principalmente, tendo como princípio a intensidade e a objetividade. Não existe firulas a temperar a organização tática. De vez em quando alguém dá-se o luxo de um virtuosismo solo, mas nada que afeta o grupo. Os atacantes Branquinho, Baggio e Ronaldo são extremamente eficientes no que devem ser os atacantes: finalizam sem restrições quando uma boa oportunidade aparece.
Fugindo do estrelismo
O Santo André não cede ao marketing da individualidade porque sabe que o conjunto é que faz a diferença. Isso é obra do treinador. Impedir que um ou outro jogador vá além da partitura de praticidade funcional não é um ato ditatorial de quem comanda a equipe. É, antes de tudo, a essência do que é possível extrair de cada jogador sem o comprometimento do conjunto.
O Santo André não é um time para ser degustado como um antepasto que dispensaria o prato principal. O Santo André é o prato feito de cada dia, uma espécie de fast-food que mata a fome na construção de resultados.
Uma prova provada de que o Santo André surpreendente desta temporada é um time que está muito além do que todos os indicadores do futebol recomendariam antes da primeira rodada é que não existe um jogador sequer entre titulares e reservas que tenha estado, nos últimos 12 meses, entre mesmo que discretos destaques nas competições que disputaram. São heróis anônimos à espera de um contrato consagrador ao final da competição, porque estão apenas de passagem pelo Santo André.
Qual é o limite?
A maquininha zás-traz do Santo André no Campeonato Paulista ainda não me dá a segurança do quanto poderá alcançar na competição. Se a primeira fase do mata-mata está praticamente garantida, agora o que resta desvendar é como a equipe chegará exatamente a essa nova etapa. A cinco jogos do encerramento da etapa classificatória, o Santo André sinaliza rendimento médio superior ao dos primeiros seis jogos – exatamente a metade dos 12 jogos que definem que disputa os mata-matas e quem é rebaixado.
O jogo contra o Bragantino Red Bull foi o melhor entre todos disputados pelo Santo André. O time não teve vácuos de eficiência e apagão durante os 90 minutos (cedeu terreno apenas nos 10 minutos finais, quando foi saldo numa penalidade máxima). Mais que isso: além de não oscilar, foi ainda mais intenso, veloz e contundente na execução das tarefas de marcação, armação e ataque. Jogou num ritmo alucinante sustentado por controle tático sereno com troca de passes progressivos, mesmo sem efetividade voraz.
Sedução da mídia
O Santo André é um time diferente de todos, portanto, porque faz da prática do sistema zás-trás a moldura e o recheio do sucesso.
Trata-se, portanto, de uma contradição ao momento estelar em todas as atividades humanas. O Santo André é um time democrático, no sentido mais qualificado do termo, de comprometimento com resultados. Seus valores individuais desprezam a sedução da mídia convencional e da mídia digital. Eles, os jogadores, não estão à procura de 15 segundos de fama que vira fumaça na próxima esquina desse mundo em transformações.
O Santo André líder do campeonato faz dos poucos segundos em que mantém contato com a bola uma corrente de felicidade em que a velocidade, a intensidade e a objetividade são o arco-íris a ser atingido.
O vídeo do gol da vitória contra o Bragantino Red Bull domingo no Estádio Bruno Daniel, após uma sequência que envolveu nove jogadores e 15 passes em 42 segundo é uma exceção à regra de zastrasismo (me perdoem pelo neologismo) do Santo André. Mas é uma prova de amadurecimento do modelo implacável de contornar as dificuldades impostas por não serem os melhores jogadores individuais, mas se imporem como peças de uma engrenagem de valor agregado exemplar. Que não se esqueçam disso esta noite em Itaquera.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André