Esportes

Santo André é bom negócio?

DANIEL LIMA - 05/10/2007

Ainda estão à venda cotas do empreendimento chamado Santo André Gestão Empresarial. Faltam interessados num modelo de clube-empresa pouco comum no mercado global da bola. A característica dos investidores atuais é de homens de negócios que se confundem com torcedores da equipe que está disputando a Série B do Campeonato Brasileiro e foi rebaixada à Série B do Campeonato Paulista.

Na maioria dos casos nacionais no qual os clubes associativos dirigidos por voluntários não resistiram à necessidade de virar empresa, o comando foi entregue diretamente a poucos investidores, geralmente com ramificações no mundo da bola.

Outros casos apontam para a terceirização do departamento de futebol profissional, com repasse da responsabilidade e dos eventuais lucros a especialistas no assunto, sobremodo agentes que detêm direitos federativos dos atletas, um dos nacos mais nobres de receitas. Não faltam também desenhos híbridos, gestados de forma que clubes e agentes dividem responsabilidades com distribuição de lucros ou prejuízos.

Certo mesmo é que futebol profissional nos moldes românticos, exclusivamente de dirigentes voluntários, vai para o acostamento da competitividade. O extremo oposto, de voracidade de investidores estrangeiros, como no caso do Corinthians e da MSI de desenlace policialesco, é o preço que se paga à precipitação combinada com a ganância.

A pergunta que se faz é se o Santo André é negócio viável. Quem quer saber se o investimento vale a pena, se o dinheiro aplicado em suaves parcelas de R$ 2 mil durante 60 meses e que corresponde a 1% do capital do empreendimento terá retorno, deve se preparar para resposta condicionada e complexa.

Primeiro: quem contar com dinheiro sobrando não tem por que não arriscar a sorte no Santo André. Isso mesmo: arriscar a sorte, porque o negócio chamado futebol no Brasil ainda está mais para ponto de interrogação do que de exclamação. O território nacional é um mercado marginal na globalização da bola. Por enquanto, as poucas e tumultuadas investidas, casos da Parmalat no Palmeiras, da Hicks Muse e da MSI no Corinthians, e de outras iniciativas menos votadas, foram aventuras efêmeras que provocaram dores de cabeça — além de títulos, é verdade.

Segundo: quem tiver dinheiro contado, que pode fazer falta no orçamento doméstico ou empresarial, deve pensar um pouco mais e acrescentar porção de cautela. O Santo André empresarial ainda é uma incógnita. O sucesso não depende apenas da velocidade com que vai se estruturar para abandonar o perfil de mais de quatro décadas. Há variáveis que também precisam ser relativizadas.

A transposição do modelo de voluntariado diretivo para gestão profissional se dá em passo de tartaruga. Há idas e vindas. Como era de se esperar, a travessia da ponte tem mais carregamento emocional do que de racionalidade. A bola de futebol vale mais que o marketing negocial. Marcelinho Carioca é mais assunto que um novo investidor. A ameaça de novo rebaixamento toma mais tempo que o planejamento para organizar o empreendimento. Os acionistas não se deram conta de que o clube-empresa precisa de executivos em vários departamentos. Eles mesmos, empreendedores privados, poderiam monitorar atividades compatíveis com a experiência que detêm.

Está certo quem disser que não há surpresa alguma nos solavancos diretivos que o Santo André vive. Seria ingenuidade demais acreditar que a mudança não desencadearia choques culturais. Assembléias Gerais de acionistas, representados no Conselho Consultivo e na Diretoria Executiva do clube empresarial, são arenas de disputas que fogem da objetividade de empreendimentos tradicionais. Futebol é negócio recém-lançado como subproduto da globalização econômica, financeira e cultural. É um cavalo bravio ainda sem domadores apetrechados.

Se em empresas convencionais os números costumam ser resultado direto do desempenho no mercado, no negócio chamado futebol ainda em fase experimental no Brasil há carga muito maior de imponderabilidade. O imprevisto que pode tingir de vermelho ou alavancar os balancetes faz literalmente parte do jogo. Um craque pode saltar das equipes de base e transformar-se em lucro astronômico numa negociação internacional. Caso do Santos de Robinho, clube que saiu de anos de ostracismo e da dependência financeira do presidente Marcelo Teixeira que, evidentemente, se ressarciu dos gastos. Grandes contratações podem fazer furo n’água e comprometer o orçamento da temporada. Basta uma contusão por tempo prolongado, como Nilmar no Corinthians, ou relacionamentos tumultuados, como tantos jogadores ejetados de elencos de cartas marcadas, para o descasamento entre receita e despesa.

É por isso que, além do embrionário estágio de criação do Santo André empresarial, a resposta para quem pretende investir em futebol não pode utilizar o mesmo tom de conhecimento técnico e certezas macroeconômicas dos aplicadores na Bolsa de Valores, dos investidores no boom imobiliário, dos especialistas em fusões e aquisições de empresas. No futebol o buraco é muito mais embaixo. As ações do Santo André representarão R$ 120 mil de investimentos depois de cinco anos. O montante equivalente a um apartamento de dois dormitórios de classe média em Santo André pode virar um Fusca usado ao final do período. Mas também pode ser festejado com retorno comparável ao de uma cobertura em bairro nobre.

Certo mesmo é que quem gosta de futebol, tem dinheiro disponível, torce pelas cores azul e branco e se interessa em ver o Santo André mais forte e competitivo encontrará horizonte próprio para não morrer de tédio se resolver comprar pelo menos uma das cotas ainda disponíveis. A novidade é que passará a ver os jogos sob outra ótica se quiser de fato converter em lucro o dinheiro aplicado. A acuidade em relação ao rendimento técnico da equipe, individual e coletivamente, se tornará mais sensível do que a de simples torcedor. As exigências aumentarão. Por isso, a pressão será cada vez maior para os jogadores e a comissão técnica do Santo André, bem como para os dirigentes que representam os acionistas.

E é exatamente o que está acontecendo no Santo André. O trauma do rebaixamento à Série B do Campeonato Paulista é latente na disputa da Série B do Campeonato Brasileiro. Rebaixamento é muito mais que tropeço técnico quando à identidade tradicional do clube se incorpora negócio. Nos tempos em que dinheiro e futebol não caminhavam necessariamente na mesma direção, cair reunia significado esportivamente insatisfatório. Agora é uma mistura de desastre esportivo e hecatombe financeira.

Recebe maiores cotas de transmissão de TV quem ocupa os melhores postos na hierarquia do futebol. E direitos de transmissão esportiva são o suprassumo de receitas. As finanças do Santo André no próximo Campeonato Paulista vão ser mutiladas em R$ 1,5 milhão por conta da queda de divisão. Se não houver recomposição em outros vetores, os efeitos vão ser sentidos na formação da equipe. A competitividade da companhia, que se dá inexoravelmente no gramado, será duramente afetada. O Santo André na Série A do Campeonato Paulista era espécie de sistemista, empresa que abastece diretamente as montadoras de veículos por rede de subfornecedores. Na Série B, o Santo André não passa de uma autopeça desgarrada do núcleo de produção.

A prova provada de que os novos tempos do Santo André empresarial serão diferentes do passado recente e que os resultados em campo vão ser observados muito além da tabela de classificação, alcançando horizontes nunca antes perscrutados, é a renúncia de Jairo Livolis e de Celso Luiz de Almeida na última semana do mês passado. Eles deixaram a presidência e a vice-presidência da direção executiva, agora ocupadas pelos empresários Romualdo Magro e Ronan Maria Pinto. O primeiro faz parte de uma família do varejo de farmácia de manipulação e o segundo é o dono do Diário do Grande ABC e de empresas de transporte coletivo.

Celso Luiz de Almeida deixou o clube em solidariedade a Jairo Livolis, companheiro de uma década e meia à frente do Santo André. Mais precisamente desde quando o Parque Poliesportivo do Jaçatuba era um amontoado de escombros. Jairo Livolis transformou o Santo André de time literalmente de 11 camisas em clube social, uma das raras alternativas de lazer e entretenimento do outro lado da linha de trem, como são chamados os bairros do 2º Subdistrito.

A presença de Jairo Livolis tornou-se insuportável depois de invadir os vestiários do Estádio Bruno Daniel ao final do empate com o Barueri. Em altos brados, ofendeu jogadores e comissão técnica. Apenas o zagueiro Dedimar foi excluído da relação de impropérios. Em outros tempos, atitudes análogas de Jairo Livolis fizeram efeito, como ele mesmo costuma propagandear. Foram choques anafiláticos no ânimo do grupo que redundaram em reação — inclusive em conquista de títulos. Desta feita foi diferente. Jairo Livolis já não tinha a autoridade suprema de antes. Ronan Maria Pinto se tornou mais próximo do elenco e do técnico Sérgio Soares ao tomar providências para tapar buracos de infra-estrutura do clube e também atendendo a demanda individual de jogadores.

A disputa pelo comando do grupo entre Jairo Livolis e Ronan Maria Pinto alcançou lances de varejismo que afrontava o regime empresarial. O ex-presidente executivo chegou a defender medidas radicais, como atraso de salários e endurecimento nas relações com jogadores e comissão técnica, acusando-os de protegidos. Ronan Maria Pinto se opôs. Desencontros acabaram por contaminar o elenco.

Por isso, quando Jairo Livolis esculhambou com os jogadores e o técnico nos vestiários, estava assinando a sentença de renúncia. Ele mesmo admitiu aos acionistas, quando anunciou retirada do clube, que tomara atitude extrema para provocar mudança de comportamento do grupo. Sabia que não teria mais ambiente para conviver com o elenco. A tática jogou no colo de Ronan Maria Pinto, dos jogadores e da comissão técnica a batata quente da recuperação no campeonato. Faltavam 12 rodadas para o término do segundo turno quando Jairo Livolis invadiu os vestiários. Dos 36 pontos então em disputa o Santo André precisará de pelo menos 18 para fugir do rebaixamento. Um Índice de Aproveitamento de 50%, contra a média de 37% nos 26 jogos anteriores. Uma quase façanha.

O Santo André não pode subestimar a necessidade de associar musculatura negocial e representatividade social. A esqualidez da torcida do Santo André é um fenômeno geracional que segue ritual de tantas outras agremiações de pequeno e de médio porte, sobretudo da periferia de regiões metropolitanas. A matriz dessa morte anunciada é o milionário controle do calendário pela televisão. Desde o começo dos anos 1990, quando de fato televisão e futebol passaram a formar dobradinha de vantagens principalmente para as emissoras, inclusive com a descoberta do filão da Taça Libertadores da América, a trajetória de adensamento popular dos pequenos e médios clubes virou refluxo.

O Santo André de idas e vindas à Série A do Campeonato Paulista e só no início deste século descobridor da Série B do Campeonato Brasileiro ficou para trás na renovação de torcedores entre outros motivos porque o calendário de disputas se limitava a cinco meses na temporada.

Passaram-se os anos e nada de mobilizador para repor aplausos perdidos se preparou, também por conta da escassez de jogos competitivos. Nem mesmo quando ganhou a Copa do Brasil em junho de 2004 e foi recepcionado com entusiasmo pela população em cima de um caminhão do Corpo de Bombeiros o Santo André soube usufruir. Camisas com as cores e o distintivo do clube dificilmente eram encontradas em lojas especializadas. A glória ficou para a história, mas o novo patamar de investimentos para dar suporte à fama conquistada não passou de espasmos na breve disputa da Taça Libertadores da América. Pior ainda: o clube teve de se defrontar com realidade orçamentária e, como não conseguiu reagir ao sucesso, voltou à escassez de antes. A queda à Série B do Campeonato Paulista é um dos efeitos colaterais do retrocesso.

A concorrência dos grandes clubes paulistas, sempre paparicados pela mídia, principalmente pela TV, é desigual. A audiência comanda o espetáculo. O esvaziamento popular do Santo André tem-se tornado asfixiante também por conta da omissão de investimento em busca principalmente de meninos e meninas no berçário clubístico do Ensino Fundamental. O Santo André despreza o mercado consumidor do futuro porque não tem presente de estrutura para organizar-se como empresa.

Os fiéis consumidores do passado desaparecem por conta da substituição geracional. Rostos tradicionais que se acostumaram a ocupar os mesmos espaços sumiram do Estádio Bruno Daniel — ou ganharam mais e mais cabeleiras brancas ou calvas. Só não perderam a paixão. Alguns repassam para filhos e netos, mas em proporção muito inferior à reposição desejada. São mais exceção do que regra.

Passados 10 meses desde que virou empreendimento, o Santo André não consegue transformar reuniões de acionistas em encontros de negócios. As discussões se limitam à equipe de futebol. Relações corporativas, relações públicas, relações comunitárias, sensibilização de novos torcedores, assessoria de comunicação e tantos outros quadradinhos convencionais de organizações empresariais não constam da agenda. É um clube-empresa de empresários-acionistas que renega a própria essência do negócio porque o futebol é sufocante.

Há em todos, ou pelo menos na maioria dos acionistas, a convicção de que negócio do futebol é o próprio futebol. Como se a comunidade de onde vieram não pudesse contribuir para ajudar a florescer novos talentos. Ou alguém é suficientemente pobre de espírito que desconsidere a sinergia das arquibancadas fonte de consagração de novos talentos que a fábrica das equipes de bases descarrega permanentemente no Estádio Bruno Daniel?

Fortalecer a marca Santo André nas instituições políticas, empresariais e sociais é desafio de marketing. A dificuldade de obter patrocinadores poderia ser suprimida com maior expressividade institucional. O Santo André tem espaço privilegiado na Imprensa regional, mas não consegue escapar do noticiário exclusivamente esportivo. Faltam medidas que revolucionem o relacionamento com a própria mídia.

Mesmo se admitindo que os clubes grandes são da mesma forma descuidados, a justificativa não tem amparo.

Afinal, a força da exposição dos clubes mais tradicionais principalmente na TV por si só ajuda a assegurar a renovação de torcedores. O Santo André vive quase nas trevas da mídia de massa. Mal comparando, precisa de iniciativas que lembrem a varredura dos evangélicos em pontos distintos da periferia desprezados até recentemente pela Igreja Católica. Os jovens estudantes maciçamente nascidos em Santo André poderiam ser mais suscetíveis ao bandeirantismo do Ramalhão.

A dificuldade de superar a competição midiática dos grandes clubes oferece ao Santo André horizonte mais que inquietante. Os momentos em que o Estádio Bruno Daniel recebe grande público estão ficando na poeira da história. Foram jogos decisivos, como o realizado contra o Ituano, na última rodada da Série B do Campeonato Paulista de 2001. Uma vitória no último minuto garantiu acesso à Série A, da qual a equipe foi apeada este ano.

Nos anos 1970 e mesmo nos anos 1980, a frequência média no Estádio Bruno Daniel em jogos contra equipes do mesmo tamanho no Estado ultrapassava a cinco mil pagantes. A média de público neste ano não chega a dois mil espectadores. Houve durante alguns anos uma campanha de renovação da torcida, com incentivos aos pais que levassem torcedores mirins. A afluência era intensa. Vivia-se espécie de baby boom esportivo com as cores do Ramalhão.

Mas o futuro não correspondeu à expectativa de profusão popular. O Santo André manteve trajetória irregular entre a Série A e a Série B do Campeonato Paulista, só entrou no calendário anual do futebol com a chegada à Série B do Campeonato Brasileiro em 2002 enquanto, no mesmo período, a TV desequilibrou o jogo em favor dos clubes de massa.

A opção preferencial do Santo André no mundo dos negócios deve se concentrar na formação de jogadores e no uso inteligente da vitrine da equipe profissional. Apesar de dificuldades financeiras comuns em clubes médios e pequenos, o Santo André conseguiu razoável estrutura nas equipes de base. O título de 2002 da Copa São Paulo de Juniores, espécie de Campeonato Brasileiro da categoria, não saiu da cartola de mágico. Foi obra de muito trabalho.

Revelar e vender jogadores com maior frequência e rentabilidade — eis a missão que o Santo André pretende aperfeiçoar agora que virou empresa. O valor das transferências vai depender, entretanto, das relações com o mundo do futebol. Se não fizer parte da rede nacional e internacional de negócios da bola, um dos ramais da indústria do entretenimento, pouco adiantará ao Santo André contar com valores individuais que façam furor nos gramados.

O gramado é a passarela democrática que tanto consagra quanto liquida com as expectativas. Por isso, fazer parte do show é indispensável. A queda para a Série B do Campeonato Paulista é um desastre muito menos destrutivo que eventual rebaixamento à Série C do Campeonato Brasileiro. Cair de novo significaria interromper o fluxo de abastecimento do mercado do futebol com novos craques ou candidatos a craques contando para tanto com o arsenal das transmissões pela TV.

O até recentemente presidente Jairo Livolis sempre foi o principal entusiasta das divisões de base, como também são chamadas as categorias de formação de atletas. Ele acompanhava atentamente treinos e jogos. A maioria dos demais acionistas não tem a mesma preocupação. Mudar a cultura é questão de tempo. Quando todos perceberem que o retorno dos investimentos vai estar vinculado completamente ao tratamento dispensado aos jovens jogadores, a tendência é que o Santo André invista mais recursos nos jovens.

Vice-presidente executivo, o empresário Ronan Maria Pinto quer ver as divisões de base sob controle do Departamento de Futebol Profissional. Em linhas gerais isso significa que o treinador da equipe principal seria o principal executivo da companhia dentro e nas proximidades das quatro linhas. Os demais profissionais de futebol estariam sob o eixo de uma mesma matriz. Transportando a concepção para o mundo corporativo, isso significa que os mais diferentes departamentos de uma empresa estariam subordinados à mesma filosofia do executivo-chefe.

Há quem interprete a proposta como exótica. O argumento de que futebol é essencialmente emocional e que o técnico da equipe principal vive de resultados faz parte do passado. O padrão organizacional não depende necessariamente do comandante, mas dos preceitos estabelecidos. Imaginar que uma Volkswagen jogue no lixo a filosofia emanada pela matriz alemã por conta da demissão do executivo-chefe de qualquer subsidiária é desprezar as linhas gerenciais aprovadas pelo Conselho de Administração, representante dos acionistas. Guardadas as devidas proporções, com o Santo André Gestão Empresarial seria algo semelhante, porque também é assim entre pequenas e médias empresas competitivas no mercado globalizado.

Pelo menos até o final de setembro não havia sido levada à execução proposta de o técnico Sérgio Soares participar de reunião com os acionistas do Santo André, quando discorreria sobre resultados da equipe na Série B do Campeonato Brasileiro. Uma prestação de contas que executivos contratados por empresas modernas expõem regularmente a acionistas. Não faltou quem desclassificasse a sugestão, sob o argumento de que o mundo do futebol é diferente. Ainda não caiu a ficha de que o mundo do futebol virou um mundo de negócios e que negócios que reúnem acionistas exigem transparência e participação.

Talvez seja menos inviável do que suspeitam alguns que o Santo André inaugure mecanismos de relacionamentos decisórios no futebol profissional que saiam da estreita bitola de um ou outro dirigente atuar como ponta-de-lança de decisões nem sempre maturadas pelos demais. Possivelmente ganhará corpo a idéia de socializar deliberações que fujam da rotina. Demissão e contratação de técnico, contratação de reforços fora do enquadramento orçamentário, definição de valores de jogadores cujos atestados liberatórios interessem a terceiros, entre outras questões, não são ensaios de chá da tarde.

A transferência do futebol do Santo André para empreendedores privados foi um longo ensaio do então presidente do clube associativo, Jairo Livolis. Já se sabia há algum tempo que o prazo de validade do voluntarismo esgotava-se. A primeira tentativa fracassou. Socializar o clube, com atomização de ações, não passou pelos obstáculos práticos de ausência de interessados. Na medida em que o dirigente se apercebeu que o futebol precisava mesmo se libertar das amarras do amadorismo para não perecer, a saída foi lançar ações resgatáveis em cinco anos. Nesse período, pretende-se potencializar a estrutura para retroalimentar receitas.

Entretanto, pelo andar da carruagem, depois disso, quando resgatarem cada cota do patrimônio adquirido, os investidores possivelmente vão se dar conta de que precisarão buscar novos recursos para enfrentar os desafios do negócio. Não estaria fora de cogitação a capitalização do clube-empresa. A consequência seriam novos investidores — o poder seria, portanto, mais compartilhado.

O Santo André tem ainda quatro anos no horizonte de pagamento das cotas dos empreendedores dessa primeira viagem ao negócio chamado futebol. Muita água vai rolar. Para o bem e para o mal. O fantasma do rebaixamento à Série C do Campeonato Brasileiro está no retrovisor e se aproxima com impiedosa maquinação dos deuses do Olimpo.

É possível que no período que resta para o encerramento daquela que seria a primeira fase de chamamento de acionistas surja alguma possibilidade de repassar parte substancial das ações do Santo André para grupos nacionais ou internacionais que venham a se interessar pelo negócio. Ou mesmo se decida por novo acordo, terceirizando-se o que foi privatizado. Mas também não está descartada a eventualidade de o clube-empresa virar mico por conta de duplo rebaixamento na temporada.

Certo mesmo é que a privatização do Santo André causou choque nos mais conservadores conselheiros e torcedores do clube que acaba de completar 40 anos. Vários se afastaram do Estádio Bruno Daniel. Outros não comparecem mais ao clube poliesportivo. Tudo isso também pode ser visto como circunstâncias do impacto da medida. O time de futebol não está ajudando com resultados. Se a biruta virar, muitos dissidentes darão meia-volta. Quem sabe até se tornem acionistas.

O choque da privatização era esperado. Não é exclusividade do Santo André ou de qualquer clube brasileiro que decida quebrar o gelo do conservadorismo. Na Inglaterra, pátria do futebol, ecoam críticas à invasão de estrangeiros. O jornalista Tom Bower, do “The Observer”, produziu recentemente ácida reportagem sobre a crescente influência do que chama de investidores incertos que compraram os principais times de futebol da Primeira Liga. Ele está preocupadíssimo com os efeitos sociológicos das transformações.

O jornalista afirma que o futebol inglês corre sérios riscos. Traça a cronologia do que chama de decadência a partir da compra do Chelsea em 2003 pelo russo Roman Abramovich. Dono de fortuna de origem contraditória, Abramovich é acusado de desestabilizar a Primeira Liga. Quatro anos depois de sua arremetida, que custou 150 milhões de libras, Abramovich poderia revender o clube por até 500 milhões de libras. Agora são nove os proprietários estrangeiros dos clubes da principal divisão inglesa. Tom Bower acusa a legião estrangeira de estar impaciente com os resultados financeiros. Abramovich e os demais querem mais lucros. A marca “Primeira Liga” precisa ser mais valorizada, afirma.

Marketing é a palavra-chave dos investidores do futebol inglês. As últimas excursões de Chelsea, Liverpool e Manchester United aos Estados Unidos, Extremo Oriente e África do Sul combinaram marketing de longo prazo e receitas imediatas, relatou o jornalista. Ele lamenta: “É deprimente ver que nenhum dos potenciais compradores de clubes é inglês. Também não há qualquer inglês se oferecendo para comprar o West Ham, o Aston Villa ou o Portsmouth. Nem mesmo o Liverpool está destinado à aquisição por um rico torcedor local. Os ingleses estão vendendo seu esporte nacional para ganhar um dinheiro rápido. A cobiça não é o único motivo. Ao que parece, nenhum inglês tem a visão e a capacidade para obter um lucro adequado do futebol da Primeira Liga como proprietário” — afirmou Tom Bower.

Até outro russo, Boris Berezovsky, envolvido no escândalo MSI-Corinthians, passou pelo crivo do artigo do “The Observer”, referindo-se à tentativa de compra do Arsenal: “Seus motivos (de insistir na compra do time inglês) são óbvios: o status internacional de possuir um clube da Primeira Liga supera em muito a posse de usinas de alumínio e poços de petróleo. Seus motivos são um pouco diferentes das gerações de proprietários britânicos. Sentar-se no camarote da diretoria, cercado de milhares de torcedores aos gritos e olhar para seu time faz maravilhas para o ego”.

O jornalista apela, no final do texto, à identidade cultural que o futebol ajuda a construir numa nação: “A diferença é que o futebol não é uma empresa de serviços ou um banco, mas parte do tecido da Inglaterra, unindo a nação em entusiasmo e depressão durante competições internacionais como a Copa do Mundo. Essa glorificação comunitária já está ameaçada pelo aumento dos preços para se assistir aos jogos da Primeira Liga. Com exceção dos seis maiores clubes, os espectadores estão cada vez menos animados a assistir a jogos menos glamorosos, devido aos altos preços dos ingressos e à quantidade de futebol exibida na televisão” — afirmou.

Também o presidente da UEFA (União das Associações Européias de Futebol), o francês Michel Platini, disse estar muito preocupado com a tendência de os clubes ingleses serem negociados com investidores estrangeiros. Numa entrevista publicada pelo jornal “The Times”, ele afirmou: “Se isso ocorresse na França, eu combateria”. E completou: “Se eu fosse inglês, estaria muito preocupado com tantos proprietários estrangeiros. Podem ser ricos que vêm ajudar o futebol inglês a se desenvolver, mas pode ser que só queiram fazer dinheiro”.

O negócio que envolve o Santo André está na pré-história do capitalismo do futebol. Os investidores que se confundem com torcedores são todos locais, fragmentados em cotas. Detêm o controle de um time que está muito distante das estrelas de primeira grandeza do futebol brasileiro. A paixão clubística os move muito mais que possíveis operações de rentabilidade. O que poderia ser avaliado como salvo-conduto que o jornalista inglês gostaria de encontrar nos investidores estrangeiros é de fato um problema para o Santo André. Afinal, resultados em campo nem sempre satisfatórios e mais que isso, ameaçadores, podem abreviar a maturação de uma modalidade de empreendimento que se apresenta como espécie de segundo tempo de um jogo de participação no mercado do futebol que o Santo André não pode perder.


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