Caso Celso Daniel

“Quem matou Celso Daniel?” é
muito mais que uma interrogação

DANIEL LIMA - 18/03/2021

Uma das melhores notícias que recebi após resistir a um tiro do rosto desferido por um assassino é que o Caso Celso Daniel finalmente vai virar algo mais que uma sequência de noticiário e análises, a maioria dos quais desconexos diante da realidade dos fatos. Praticamente 20 anos depois, a se completarem em janeiro do ano que vem, a produtora paulistana Escarlate e uma grande plataforma de streaming fizeram acordo comercial para a exibição de documentário que trata da morte do prefeito de Santo André e também do homem que evitou que, em 2002, o PT mergulhasse numa crise de votos potenciais e deixasse de comandar o país por praticamente uma década e meia.  

O projeto da Escarlate de levar Celso Daniel ao cinema foi anunciado em outubro de 2019. Mas, como o mundo anda girando de forma alucinadamente brusca, com pandemia e tudo o mais, agora, finalmente, a proposta ganhou formato prioritário e definitivo. O documentário terá oito episódios de 50 minutos cada. A produção do filme não está fora dos planos, mas deverá ficar para o segundo tempo.  

Fosse qual fosse a situação que demarcaria o ingresso dos fatos e das versões do Caso Celso Daniel como acervo cinematográfico, estaria mais que atento à avaliação, e mais que isso, doutrinado a ocupar a fila do gargarejo.  

Balsamo situacional  

Levando-se em conta que os diretores do documentário me deram a honra de constar da relação de “protagonistas pretendidos”, não disfarço encantamento. Depois da notícia de que não corria mais risco de vida e tampouco fora afetado neurologicamente pelo projétil que ainda me incomoda, recalcitrante invasor do pescoço, o Caso Celso Daniel é balsamo a incrementar minha recuperação clínica, física e psicológica.  

Traduzindo sem qualquer receio de parecer piegas ou algo equivalente: os diretores responsáveis pela Escarlate não têm ideia do quanto estou feliz por, exatamente nesse período de minha vida, obter não apenas o reconhecimento por um trabalho profissional límpido e sereno, mas pela oportunidade de mostrarem que não se esqueceram de alguém duramente fragilizado. Tanto é verdade que o convite para participar do documentário chegou ao meu celular antes de meu desembarque em casa, depois de 10 dias hospitalizado, quando comecei a restabelecer a duras penas apenas alguns contatos pessoais.  

Quando me refiro a esquecimento descartado como fonte dita importantíssima do Caso Celso Daniel quero dizer que o projeto da Escarlate foi anunciado aqui, nesta revista CapitalSocial, exatamente em sete de outubro de 2019. Previa-se a produção de filme.  

Reproduzo alguns trechos daquele texto sob o título “Verdade e mentira vão dividir espaço num filme imperdível”. Antes, uma explicação: socorro-me nesta edição de CapitalSocial do que escrevi no passado porque evito repetição de informações e também porque poupo meu corpo das dores de dedilhar o teclado do computador, exercício que antes de primeiro de fevereiro me remetia à suavidade de um piano e agora, dores e dores ilimitadas, me obriga a ingerir medicamento para atenuar os impactos daquela tragédia. 

Verdade e mentira  

Feito esse reparo, vamos então a alguns trechos para os leitores entenderem o entusiasmo que me leva a imaginar o Caso Celso Daniel num documentário de grande alcance de audiência e, mais que isso, instalado num patamar de mais responsabilidade com as informações que demarcaram a atabalhoadíssima atuação da mídia em geral: 

 (...) Disse sábado em mensagem de aplicativo a um dos integrantes da produtora do filme “Quem matou Celso Daniel?” que o mais fantástico resultado do trabalho que está sendo preparado é que, finalmente, a mentira vai ter de dividir espaço com a verdade. Afinal, quando se está perdendo de goleada o jogo do controle de informação, uma brecha à reação é mais que providencial. E é isso que o filme sobre o assassinato de Celso Daniel possibilitará. Vou explicar o que é mentira e o que é verdade aos leitores para concluir que não existe nada mais nobre na produção do filme (e de uma série que se seguirá) do que enquadrar os fatos do assassinato do então prefeito de Santo André num compartimento distante da especulação, do sensacionalismo, da preguiça, do oportunismo e dos interesses cruzados. Mentira é o resumo do conceito generalizado destilado pela mídia tendo como fonte máxima de informações a força-tarefa do Ministério Público Estadual em Santo André. Que conceito? De que Celso Daniel foi morto porque se rebelou ao descobrir que amigos próximos do poder atuavam na contramão da lisura moral e ética e desviaram recursos financeiros da Prefeitura, frutos de relações espúrias com o setor de transporte coletivo. Ou seja: o PT era beneficiário de um esquema de arrecadação sem o conhecimento do prefeito Celso Daniel que, vejam só, já estava escalado para atuar como coordenador do programa do governo Lula da Silva, que, finalmente, naquele, 2002, ganhou a disputa presidencial. Os incautos formuladores dessa teoria tabajarense esqueceram que pouco antes, na Prefeitura de Mauá, diante de um prefeito petista (Oswaldo Dias) constrangido pela reprimenda, o então candidato Lula da Silva citou nominalmente o prefeito de Santo André como excelente exemplar na arrecadação de recursos de campanha.  

Simplicidade e complexidade 

Voltemos ao presente. Mesmo quem não acompanhou sequer um dos quase 200 textos que produzi ao longo dos anos sobre o Caso Celso Daniel provavelmente já saberá o caminho que percorri depois de ler os parágrafos acima. A produtora Escarlate escarafunchou tudo o que diz respeito ao Caso Celso Daniel, em diferentes frentes de observação e recolhimento de testemunhos, até chegar a este jornalista há mais de dois anos e, agora, ratificar o interesse em contar com o autor do acervo retratado nas páginas digitais deste site.  

A ideia genial da Escarlate coloca um ponto final, ou enseja a possibilidade de se colocar um ponto final às mentes menos doutrinadas ao fundamentalismo, no sentido de que o Caso Celso Daniel não tem absolutamente nada de extravagante quando se refere às motivações.  

Ao colocar a verdade e a mentira em confronto que não imagino o formato porque sou apenas um cinéfilo sem intimidade com a gestão do produto, a Escarlate oferecerá aos consumidores um meio de se conectarem profundamente com a face e a contraface de um enorme ponto de interrogação.  

Interrogação desafiadora  

Embora para mim, sempre respaldado por uma gama de condicionantes desafiadoras à avaliação e à escrita, o Caso Celso Daniel seja tão claramente óbvio quanto simples, o reconhecimento de que se trata de uma obra bem-acabada de suspense e de dúvidas complexas é o primeiro passo que exercito para testar o juízo de valor que consolidei ao longo dos anos como jornalista escravo das fontes e das provas, além de submisso crítico às circunstâncias e ao histórico da política em Santo André e no País. 

Tenho tanta certeza de que o Caso Celso Daniel é um embuste quando se insere uma interrogação sobre o autor do assassinato como também considero genial o responsável pelo título seguido da mesma interrogação do documentário da Escarlate.  

Afinal, esse é o resumo da ópera muito bem orquestrada por gladiadores políticos e assessores da arena instalada numa manhã de sábado no Paço Municipal de Santo André, enquanto o prefeito petista seguia desaparecido, sequestrado que fora na noite anterior.   

Vigilância faz bem  

Ainda pretendo escrever mais sobre o Caso Celso Daniel e variáveis que se alinhavam no horizonte próximo de uma produção cinematográfica mais que providencial para a história da política nacional. Participar do documentário preparado pela Escarlate é particularmente uma benção em minha nova vida que hoje completa 46 dias.  

Sei que cada texto que produzir sobre o assunto será escrutinado por gente qualificada, sempre em busca de sustentação lógica ao convencimento de que não estaria sendo iludida por um espertalhão.  

Sei também que não faltarão detratores, milicianos à direita e à esquerda que, por conta do atraso tecnológico (ou o atraso mesmo são as redes sociais?) não tiveram o caminho aberto a incursões retaliadoras, supostamente agora no ponto da agulha? Vamos ver o que vai acontecer.  

Certo mesmo é que, se no passado pouco me lixava àqueles que têm o péssimo hábito de incivilidade e ruminações psiquiátricas quando contrariados ante a verdade dos fatos, agora não seria diferente.  

Sei que estou devendo a identidade do personagem do documentário cuja trajetória dramática se rivaliza com a do próprio prefeito de Santo André. A segunda maior vítima de um enredo riquíssimo de ocorrências ligadas ao Brasil do momento é o primeiro-amigo de Celso Daniel, Sergio Gomes da Silva, que dirigia o veículo naquela noite fatídica.  

O mesmo Sergio Sombra da força-tarefa do Ministério Público Estadual. Uma alcunha sob medida para estigmatizar, banalizar e, em seguida, criminalizar o homem que salvou a candidatura de Lula da Silva à presidência da República em 2002.  

Um homem tão importante na história do PT que o próprio PT, por conta disso, sempre fará o possível para manter suas digitais longe dos holofotes políticos, entregando-o à sorte criminal.   

Por isso e por tantas outras razões o documentário da Escarlate é visceral à historiografia da política nacional. Muito mais, dadas aquelas circunstâncias, do que qualquer outro incidente político neste século.  

Santo André foi a incubadora do PT vitorioso nas urnas e controverso (embora nada exclusivo ou pioneiro) no modus operandi para chegar a tanto. O resto (quanto ao modus operandi) é cinismo da classe política. Os escândalos intermináveis e a caça às bruxas da Operação Lava Jato estão aí como provas de crimes continuados. Transformaram um crime comum em crime político.  

Portanto, a interrogação de “Quem matou Celso Daniel?” é muito mais que um sinal gráfico. É o ponto de inflexão e de conclusão para quem quer entender como se faz política-eleitoral no País. O ponto de interrogação vazio para quem conhece a história verdadeira é o mesmo ponto de interrogação desbravador para quem se sente positivamente obrigado a mitigar o peso da certeza popular de que a autoria do crime é aquela apontada pelo MP avassalador e também pela frente única da imprensa acomodada e replicadora de falsas constatações.  

Contraditoriamente à disseminação do conceito de que fake news é propriedade exclusiva das redes sociais, houvesse esse fenômeno tecnológico e de comunicação à época do crime e da repercussão durante anos, teríamos possivelmente a constatação de que o ponto de interrogação seria muito menos enfático como pretensa elucidação do Caso Celso Daniel. Afinal, seria impraticável calar a Polícia Civil e a Polícia Federal que investigaram o que concluíram ser um crime comum, enquanto o Ministério Público Estadual manteve-se livre, leve e solto para sapecar na sociedade a versão de caso político numa barbeiragem denunciada insistentemente por este jornalista sem partido.  



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