Nada melhor do que o momento para escarafunchar os rumos do futebol profissional de Santo André nestes tempos de gestão empresarial. A queda do Corinthians, cuja origem remonta à parceria com a MSI, é mais que providencial para essa abordagem. Seria desperdício e irresponsabilidade não cruzar os caminhos de corintianos e de ramalhinos, como deveriam ser cruzados os caminhos de Corinthians e tantas outras agremiações que de alguma forma adotaram modelo que foge do figurino convencional.
E onde se cruzam esses caminhos, afinal?
Na falta de capital social do Corinthians e do Santo André. Pelo menos ao que consta não há nenhuma clonagem de MSI no Santo André, mas o modelo de exclusivismo diretivo e de cartas marcadas dos responsáveis pela agremiação-empresa é mais que semelhante.
O Santo André está-se restringindo a um número seletivo de acionistas, vários dos quais sem histórico no clube e alguns até que mal sabem a geometria da bola. Não estou acusando absolutamente ninguém de oportunista, como se deu entre aqueles que se refestelaram no Corinthians. O problema é que há indícios de omissão coletiva, de aceitação passiva de decisões nem sempre transparentes. O que, forçosamente, gera desconfiança.
A manipulação de atas das assembléias foi denunciada por este jornalista e ninguém moveu uma palha. Outras irregularidades poderão ocorrer e provavelmente de novo a maioria se calará. Até quando? A conveniência, o amedrontamento, o desinteresse ou qualquer outro sentimento não pode estar acima do comprometimento com o futebol da cidade.
Será que ficarei na mesma situação dos poucos profissionais de Imprensa que chamaram a atenção para as irregularidades no Corinthians? Sim, porque manipular ata significa transgressão ética que, quem sabe, pode esticar-se a outros campos.
Longe de mim acusar este ou aquele acionista de interesse escuso, de pretensão ao controle geral e irrestrito de uma agremiação que completou 40 anos. Diria que não falta quem pense em contribuir e muito para o clube. Entretanto, o que se passa com o Santo André é quase um espelho do encantamento que Kia Joorabchian conquistou de larga parcela da mídia, de torcedores e de dirigentes do Corinthians — até que o barco começou a afundar.
Onde falta o contraditório fértil, forte, sereno, combativo, falta tudo. E o Santo André ganhou ares de unanimidade diretiva burra que não condiz com a realidade dos fatos.
O clube-empresa que de fato é clube de investimentos consumiu o estoque de capital de chuteiras que detinha ao negociar direitos federativos de três dos jogadores que a diretoria anterior, de voluntários, transferiu para o modelo empresarial. Mesmo assim falta dinheiro em caixa. O orçamento para a Série B do Campeonato Paulista é magérrimo. Para a Série B do Campeonato Brasileiro do ano que vem, então, é melhor nem pensar.
E mesmo que dinheiro jorrasse no Santo André nestes novos tempos, como jorrou no Corinthians até recentemente, conviriam medidas acauteladoras. O Santo André empresarial carrega herança de patrimônio cultural e afetivo do Santo André convencional que não pode ser simplesmente esquecida no baú da história. O Conselho Deliberativo do EC Santo André se mantém distante do Conselho de Acionistas do Santo André Gestão Empresarial.
Houve uma ruptura que secciona a tradição e inviabiliza o futuro, porque falta massa de conhecimentos que sempre auxilia na tomada de decisões. Um Marcelinho Carioca, por exemplo, contratado a toque de caixa, deveria ter os custos aprovados por grupo de conselheiros e acionistas, assim como outros investimentos que superassem determinada porção do orçamento anual. O Santo André praticamente trocou meia dúzia de jogos de Marcelinho Carioca pelos 20% de direitos federativos de Richarlyson. A reserva de capital de chuteiras foi dissolvida.
Até quando a comunidade que torce pelo Santo André e tem ramificações diretivas no clube poliesportivo que deu passagem ao clube-empresa vai assistir passivamente à tempestade que se prenuncia?
O presidente Jairo Livolis, que dirigiu o Santo André no período mais fértil dentro e fora de campo, tem parcela de responsabilidade no encaminhamento do clube à privatização, porque não conseguiu, com sua diretoria, dar sustentabilidade de capital social desejado, uma vez que só enxergou futebol no período de comando. Os acionistas de agora devem ser responsabilizados porque fazem ouvidos de mercador ao alerta de organizarem um clube que de fato seja empresa. O texto que produzi na semana passada e que consta destes arquivos sob o título Clube de Investimentos ajuda a explicar o conceito.
É verdade também — daí Jairo Livolis ser apenas um dos responsáveis por aquela situação — que Santo André vive no campo esportivo a mesma realidade que em geral domina o Grande ABC em institucionalidade: há um vazio imenso na sociedade a industrializar a omissão como sustentáculo de nocividades dos mais variados tons e nos mais distintos ambientes, do esportivo ao social, do político ao econômico, do cultural ao acadêmico.
A diferença entre o Santo André de Jairo Livolis e demais dirigentes e o Santo André destes tempos de clube-empresa é que o funil de responsáveis do futebol profissional é ainda mais estreito, consideravelmente enigmático porque pouco transparente, e sufocantemente centralizador. E tanto num caso quanto no outro poucos se importam de fato com os rumos dos acontecimentos.
A larga vantagem de Jairo Livolis sobre o modelo atual que tem Ronan Maria Pinto à frente é que, até por força de diferenças de ocupações empresariais, o construtor do Parque Poliesportivo e o comandante do maior título da história do futebol da região — a Copa Brasil de 2004 — não contava como blindagem prática ou subjetiva da nesga de capital social que de alguma maneira vicejava no Santo André.
Espero que os acionistas do Santo André empresarial e o Conselho Deliberativo do Santo André poliesportivo tenham a sensibilidade de, num gesto de clarividência nestes dias subsequentes à queda provisória de um dos maiores patrimônios esportivos do País, entender que a melhor contribuição que este jornalista pode dar é não se deixar engabelar, como tantos outros fizeram à sombra da MSI-Corinthians.
E nesse ponto dou a mão à palmatória a uma frase que proferi como torcedor do Corinthians nos tempos de combate mais acirrado de uns poucos jornalistas esportivos do País que alertavam sobre os perigos dos investidores internacionais que aportaram no Parque São Jorge cercados de interrogações: não há título algum (agora sei bem) que valha tantos riscos, porque o preço do rebaixamento (no caso do Corinthians com massa crítica para retornar o quanto antes à Série A) ou do desaparecimento (no caso do Santo André e tantos clubes médios sem o apoio de massas de torcedores) é infinitamente maior.
O Santo André ainda está em tempo de tomar juízo, porque o poder absoluto é um risco em qualquer ambiente. Precisam ser criadas amarras democráticas que, da mesma forma que não podem ser emaranhado burocrático complicador de agilidade de tomadas de decisões, não se convertam em encenação corporativa para driblar o distinto público.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André