A maior glória do futebol da região está retratada logo abaixo, no texto que preparei e publiquei na revista LivreMercado de julho de 2004. Ganhar a Copa do Brasil há exatamente 17 anos não foi obra do acaso do clube mais tradicional do futebol profissional da região. Consumir o texto abaixo, que seguiu linha editorial de uma publicação que sempre superou o cardápio fastfoodiano, é mergulhar nas águas da compreensão de que futebol pode ser uma caixinha de surpresa circunstancial, num determinado jogo, mas não estrutural – no resultado final de uma jornada de correções e aperfeiçoamentos.
DANIEL LIMA - 05/07/2004
O Santo André que ainda festeja o título mais importante de sua história, uma Copa do Brasil conquistada com classe cirúrgica num Maracanã lotado de flamenguistas, é uma lição de empreendedorismo para quem precisa entender os segredos do sucesso mesmo em circunstâncias que parecem convergir para o descontrole. Ao desafiar um destino que impôs contratempos enormes, entre os quais a perda da liderança do prefeito Celso Daniel que tanto lhe dava suporte, o Ramalhão emerge como símbolo de competência num futebol brasileiro de improviso e despreparo constrangedores.
Sem a retaguarda cada vez mais prevalecente de investidores particulares num futebol de negócios e, como a maioria dos clubes médios, esquecido pela mídia eletrônica de massa, combustível de grandes receitas de patrocinadores, o Santo André subverteu a lógica do sucesso para consagrar-se no Rio de Janeiro. Garantiu, com isso, uma vaga e cotas dolarizadas na Taça Libertadores da América de 2005.
Anonimamente, como se estivesse conformado com a condição de figurante do show business do futebol, o Santo André construiu modestamente as estruturas do sucesso coroado em 30 de junho com a vitória de 2 a 0 diante de emudecidos 75 mil torcedores de um time tetracampeão brasileiro. Nada mais justo, portanto, que os jogadores desfilassem como celebridades em carro aberto na tarde-noite do dia seguinte. Afinal, estava concluído um heroico ciclo desse clube de 37 anos de superações.
Planejamento estratégico
Com um projeto debaixo do braço e muitas ideias na cabeça, a diretoria comandada pelo empresário Jairo Livolis recolhe parcimoniosamente os frutos de um planejamento estratégico pouco comum numa atividade em que o racional costuma subjugar-se ao passional. O programa Jovem Santo André é um pedaço da engenharia que levou o Maracanã a reviver a tarde de julho de 1950 em que o favoritíssimo Brasil caiu na final da Copa do Mundo diante do Uruguai que, como o Santo André, veste-se de azul e branco.
A diferença é que a maioria absoluta de flamenguistas nas arquibancadas não refletia a realidade nacional quase integralmente andreense que acompanhou a decisão pela TV. Afinal, quem não se junta a Davi contra Golias? Aqueles perto de 500 torcedores ramalhinos espremidos no Maracanã enfrentaram todas as dificuldades para chegar ao Rio de Janeiro. Lotaram ônibus e carros particulares para testemunhar com os próprios olhos um resultado premonitoriamente estampado num cartazete que tevês e câmeras fotográficas registraram em princípio como peça anedótica. O milagre de Santo André, como muitos atribuem o desfecho do jogo, não passou, entretanto, de consequência de melhor organização dentro e fora de campo.
Badalação demais
A badalação do título iminente preencheu o tempo todo o ego dos flamenguistas nos dias que antecederam ao jogo, quando, em 48 horas, esgotaram-se os 72 mil ingressos colocados à venda. O resultado de 2 a 2 uma semana antes no Parque Antártica conferia aos rubro-negros o conforto da vantagem de dois empates (0 a 0 e 1 a 1) e a bonificação de lançar à sorte da cobrança de pênaltis um eventual empate de 2 a 2. Acreditavam os cariocas do alto de manchetes de jornais que o Santo André seria simples figurante do espetáculo em vermelho e preto. As faixas de campeão vendidas como pão quente preconizavam que a soberba sufocava a cautela.
Como duvidar que o Flamengo transformaria o Maracanã num gigantesco salão carnavalesco se até então a equipe estava invicta na competição e batera todos os adversários quando o mando de jogo lhe pertencia? Não havia dúvidas sobre isso. Nem mesmo o fato de o time carioca estar caindo pelas tabelas no Campeonato Brasileiro da Série A causava desconfiança. Estava consagrada a máxima de que o Flamengo da Copa do Brasil era o time dos sonhos, enquanto o do Brasileiro, dos pesadelos.
O Santo André igualmente caía pelas tabelas da Série B do Campeonato Brasileiro, mas os números da tábua de classificação são enganosos ao lhe reservar, então, a penúltima colocação. Não fossem os 12 pontos surrupiados pela CBF num julgamento tão estranho quanto autoritário, o Santo André estaria entre os 10 primeiros colocados, próximo da zona de classificação e a poucos pontos da liderança.
Definido em dois jogos, o título da Copa do Brasil mostrou um Santo André múltiplo no gerenciamento de emoções, técnica e estratégias. Num Parque Antártica de 21 mil pagantes, dos quais dois terços de flamenguistas ao longo dos anos evadidos do Rio de Janeiro e do Nordeste em nome da mobilidade social na Grande São Paulo, o Santo André teve capacidade de reação. Começou perdendo, reagiu, virou o resultado e, no final, sofreu um gol de falta que passou pelo vão de uma barreira descuidada.
Bem-preparado
No Maracanã, o Santo André fez prevalecer a cautela e a frieza tática no primeiro tempo. No segundo, acelerou o ritmo, marcou dois gols e depois, sem cerimônia com o dono da casa, típico de uma visita indesejada, administrou o resultado com a queima de minutos após minutos em troca de passes combinados com contragolpes.
Foi o controle dos nervos nos dois jogos que levou o Santo André ao título contra um Flamengo que, como todos os times de massa, costuma oscilar entre a depressão e a euforia. Sem obrigação de vencer um adversário de tradição centenária, o Santo André manteve a serenidade nos dois jogos. As tomadas da TV comprovavam a diferença no semblante dos jogadores, principalmente no Maracanã. Os flamenguistas pareciam espectadores de filmes de terror. Os jogadores do Ramalhão traduziam o encantamento de quem assistia A Noviça Rebelde.
O Parque Antártica do primeiro jogo pode ter frustrado a perspectiva de uma vitória que parecia consolidada, mas não descartou uma inesperada grandeza de Santo André. Os sete mil andreenses que ocuparam o setor de arquibancadas, protegidos por um cordão de isolamento reforçado, fizeram os perto de 14 mil flamenguistas se calarem durante quase todo o segundo tempo.
No mesmo ritmo
Uma simbiose impressionante coloca em dúvida tostinesca o que gerou aquela situação: a torcida do Santo André embalava o time em campo ou o time fazia o torcedor embalar-se na arquibancada? O fato é que durante todo o segundo tempo, até o gol de empate do Flamengo, o Santo André do gramado e o Santo André da arquibancada jogaram no mesmo ritmo.
Fizeram do Parque Antártica um Bruno Daniel em noite de gala jamais vivida. Um cântico puxado pelas torcidas organizadas e entoado pela massa em azul e branco calou os rubro-negros. Os flamenguistas, dominados em campo, emudeceram na arquibancada e nas numeradas.
A decepção do gol de empate em falta batida por Athirson só não foi maior para a torcida do Santo André do que a que estava reservada ao final do jogo no Parque Antártica.
Tratados como visitantes, os andreenses ficaram isolados e na escuridão durante 30 minutos, até que os flamenguistas se retirassem do estádio. Só não houve consequências graves porque o sentimento de revolta foi contido. O pouco que se encontrava de luminosidade na multidão segregada surgia do visor de telefones celulares. Santo André recebeu tratamento de Gata Borralheira da Polícia Militar.
Esperando a decisão
O intervalo de uma semana entre um jogo e outro recolocou Santo André e Flamengo nas profundezas do inferno do Campeonato Brasileiro. Um sábado entre as duas quartas-feiras ajudaria a consolidar o espírito de grupo e lustraria a autoestima dos ramalhinos. Para os rubro-negros a situação era oposta. O Santo André venceu em casa o Londrina por 4 a 2 em ritmo de treino. O Flamengo perdeu em casa para o Figueirense em toada de desastre. Encerrados os dois compromissos, os finalistas da Copa do Brasil voltaram à realidade da decisão.
O Santo André se preparou emocionalmente para consolidar a confiança de que o céu da Copa do Brasil e o inferno da Série B do Campeonato Brasileiro eram um contraste artificializado pela perda de pontos no tribunal. De fato, de verdadeiro, o mesmo time em ascensão do Brasileiro desde a contratação do técnico Péricles Chamusca estava na origem da eliminação dos adversários da Copa do Brasil.
O Flamengo se descuidou do fio da navalha de uma esquizofrenia de sucesso e fracasso que, mais dia, menos dia, haveria de ser submetida à realidade terapêutica. Por isso, aqueles 2 a 0 de 30 de junho não foram por acaso. O Flamengo dualístico e contraditório de encantamento na Copa do Brasil e decepção no Campeonato Brasileiro não suportou um adversário que jamais se sentiu dividido e, portanto, inseguro.
A transmissão televisiva dos dois jogos decisivos da Copa do Brasil mostrou também que a estrela de Santo André voltou a brilhar. Foram dois anos de sucessivos metralhamentos à autoestima, a partir do assassinato do prefeito Celso Daniel e, na sequência, um festival de denúncias de fundo político-partidário que atingiram a administração daquele que seria ministro do governo Lula da Silva. Não fosse a desclassificação dos times brasileiros na Taça Libertadores da América, a decisão da Copa do Brasil não teria encontrado a vitrine da TV Globo e, portanto, a ressonância seria minimizada.
Vitórias seguidas
O futebol que Celso Daniel tanto apreciava como corintiano e andreense respondeu ao sensacionalismo das manchetes policiais logo depois de seu assassinato, quando o Santo André conquistou a Copa São Paulo de Juniores, espécie de Campeonato Brasileiro de jovens talentos. A decisão no Pacaembu contra um Palmeiras do agora festejado Vagner Love também foi heroica, de meia virada, quando o tempo se esgotava e a equipe perdia de 2 a 0. Nos pênaltis, festa do Ramalhão. Antes disso, com Celso Daniel, o Santo André ganhara o acesso à Série A do Campeonato Paulista.
Depois da Copa São Paulo de Juniores vieram a conquista da Taça Estado de São Paulo, que abriu caminho para a disputa da Copa do Brasil, e o acesso à Série B do Campeonato Brasileiro, num jogo histórico contra 30 mil paraibanos em Campina Grande. Essa sequência vitoriosa se explica pela engenharia organizacional. O Santo André tira leite de pedra. Por mais que se tente explicar o sucesso de clubes emergentes como consequência do êxodo de jogadores do País, não há argumento que resista à lógica de que são poucos os clubes sem tradição que nos últimos anos chegaram à ribalta, casos do Santo André, do São Caetano e do Criciúma. Os demais seguem quase anônimos.
Sem disparidade
É verdade que já não há disparidade de forças entre grandes e médias equipes. Craques e supostos craques viraram mercadoria valiosa que um país pentacampeão exporta com facilidade. Há freguesia além das fronteiras mais tradicionais da Europa Ocidental. Entretanto, o mercado nacional existe e nesse ponto, na administração da escassez de habilidades, pesa quem está mais bem estruturado para combinar necessidades técnicas e receitas esquálidas. Ao criar o projeto Jovem Santo André, o presidente Jairo Livolis prescreveu uma receita que começou a surtir efeitos. Alex, Ronaldo, Dodô, Júnior e tantos outros jogadores titulares ou que compõem o elenco do Santo André saíram da mesma fôrma de investimentos em jovens que descobriram o Santo André. Sim, depois da conquista da Copa São Paulo de Juniores, disputa-se uma oportunidade nas divisões de base do Santo André em proporção semelhante à dos vestibulares mais concorridos. Antes, sem infraestrutura, o Santo André acompanhava inerte a fuga de jovens promessas em direção aos times da Capital.
Em qualquer circunstância num futebol mercadologicamente elitista em que os índices de audiência determinam a grade de programação de jogos, o futuro dos clubes médios será sempre uma inquietante reticência, quando não um ponto de interrogação. Caberá, portanto, à agudeza do senso de oportunidade tática e de armazenamento estratégico a porção exata de decisões que demarcarão os próximos tempos do Santo André.
A letargia esportiva inoculada pela globalização cultural não poderia ter encontrado incubadora mais apropriada de sacudida de poeira do que a Copa do Brasil transmitida ao vivo e em cores em seus capítulos derradeiros. Santo André despertou de pesadelos seguidos na esfera administrativa e criminal, mas agora parece vivíssima como cidade. Por isso não é conveniente que se deixe perder essa situação de reviravolta.
Hora de reagir
Nada melhor, portanto, do que tornar o calendário do futebol de sua campeã nacional bom motivo para solidificar esse entusiasmo de cidadania esportiva. Primeiro, apoiando a equipe que, maltratada pela CBF, precisa escapar do rebaixamento à Série C do Campeonato Brasileiro. Aqueles 12 pontos perdidos vão provavelmente fazer muita falta na luta por um dos oito primeiros lugares que levariam o Santo André às finais do acesso à Série A. Entretanto, não poderão ser justificativas para possível rebaixamento.
O outro ponto sensível da jornada do Santo André está no calendário do ano que vem, que prevê a participação da equipe na Taça Libertadores da América. A inédita internacionalização já provoca reações, como a do anúncio do prefeito João Avamileno de que a capacidade do Estádio Bruno Daniel será acrescida de obras suficientes para que a cidade possa acompanhar os jogos. O mesmo João Avamileno que, sabiamente, segue o receituário de Celso Daniel e entende que a imagem externa de Santo André e a sensibilidade da população às questões locais só terão a ganhar com um time profissional vitorioso.
Que a população, então, se inspire nesse grupo de jogadores e de dirigentes merecidamente festejados para dar sua contribuição à consolidação de uma surpreendente inserção do futebol no marketing regional, seguindo o Ramalhão as pegadas do mais poderoso São Caetano, campeão paulista da temporada.
E quem se julga andreense de coração, mas não tem colaborado com o clube pelo menos no incentivo de arquibancada, ou o faz ainda de forma espasmódica, que se inspire na lição dos jogadores campeões da Copa do Brasil. Eles surpreenderam Galvão Bueno e tantos outros jornalistas ao cantarem o hino do clube do começo ao fim, nas comemorações do título. Só não emocionaram além da conta quem os acompanha há mais tempo e já teve a curiosidade de assistir a pelo menos uma preleção final, antes de entrarem em campo.
O hino do Santo André e a Ave Maria que se segue na preparação psicológica são irmãos musicais siameses. Uma emoção que se renova a cada jogo e que conflita com o utilitarismo destes tempos em que futebol e negócios não se desgrudam.
Como se vê, o futebol brasileiro tem muito o que aprender com o Santo André.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André