Se o leitor não está acreditando na manchetíssima de hoje é porque tem razões de sobra para não acreditar, já que tenho a indevida fama de mau entre políticos de todas as cores. Mas, vou explicar. Trata-se de uma licença poética à regionalidade mais abrangente. Restrinjo-me exclusivamente ao campo da política partidária e dos interesses locais que, não necessariamente, atendem às demandas principalmente de ordem econômica.
E nesse campo, a bem da verdade, mais o prefeito de São Bernardo, mas também o prefeito de Santo André, abrem interessantíssima e surpreendente galeria de representatividade.
Eles colocaram a política regional numa categoria que exorciza o Complexo de Gata Borralheira. Ou seja: o Grande ABC ultrapassa a linha do servilismo e repositório preferencial de políticos alienígenas e sanguessugas.
Folha inspira
Não é fácil para um regionalista-globalista (no bom sentido da expressão só aparentemente conflitiva) admitir, como estou admitindo, a exclusão dos dois prefeitos de qualquer outra objetividade crítica ao circunscrever o texto de hoje à atividade política.
Mas é indispensável separar uma coisa da outra senão nem uma nem outra serão entendidas no futuro. Como se o fossem no presente desafiador.
Tive a ideia de fazer essa abordagem depois de ler na Folha de S. Paulo de hoje o que já escrevi nesta revista digital – a presença de Paulinho Serra e de Orlando Morando nas disputas das prévias do PSDB à presidência da República.
O prefeito Orlando Morando coordena e apoia o governador paulista João Doria. O prefeito Paulinho Serra coordena e apoia o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
Quebrando marasmo
Simplificando para explicar em seguida: não há na história da política regional um, quanto mais dois, prefeitos que tenham atingido essa hierarquia na máquina estadual numa disputa preliminar à presidência da República – e também ao governo do Estado.
Vou pedir um intervalo de tempo explicativo aos contextos que envolveram representantes do PT, que, em resumo, não valem em termos de comparação.
Cada um a sua maneira, Orlando Morando e Paulinho Serra chegam a uma situação de destaque surpreendente. Justamente após quatro décadas de desindustrialização contínua, período em que o Grande ABC mais que perdeu o viço econômico, eis que na esfera político-partidária temos dois representantes nadando de braçadas.
Morando é amigo do governador paulista e pode inclusive ser candidato a vice-governador na chapa do candidato indicado por João Doria. Paulinho Serra é amigo do adversário do governador paulista nas prévias às eleições presidenciais e amigo do ex-governador Geraldo Alckmin, candidato ao governo do Estado no ano que vem. Ganhe um ou ganhe outro, alguém vai se dar bem. Que o faça em favor da região. Também.
Alternativas pós-conflito
Viram que não somos uma coisa qualquer nesse jogo de entrelaçamentos conflitivos, mas nem por isso improdutivos?
O interessante e contraditório em tudo isso é que o Grande ABC político que vai às prévias e às urnas oficiais para o governo do Estado e o governo Federal é que tudo é resultado da animosidade ao que parece insuperável entre Orlando Morando e Paulinho Serra.
A reportagem da Folha de S. Paulo de hoje credita ao antagonismos no comando do Clube dos Prefeitos e na Fundação do ABC o distanciamento pessoal e político entre Orlando e Paulinho.
A Folha de S. Paulo errou: isso é efeito, não causa. O que provocou o rompimento entre os dois tucanos é que o primeiro, Paulinho, andou pisando na bola da lealdade nas disputas para o Legislativo Paulista, em 2018. A candidatura da mulher de Orlando Morando, Carla Morando, não foi valorizada por Paulinho Serra em terras ramalhinas, contrariamente aos acordos firmados. Daí, tudo o resto emergiu.
Desempenhos diferentes
Não fosse essa quebra de relacionamento, possivelmente o Grande ABC não teria as duas variantes eleitorais anunciadas. Não haveria razão para isso.
Mas não se pode cometer o erro de colocar os dois prefeitos no mesmo menu de estratégia política que, entre outros objetivos, pretende a reserva de espaço com algum destaque após encerrarem os respectivos mandatos, reeleitos que foram.
Mais maduro e competente na gestão pública (não vou entrar em detalhes sobre isso, conforme prometi), Orlando Morando construiu o próprio caminho, com as especificidades da personalidade de quem mantém a lealdade a todo custo e não tem por costume dizer sim quando entende que não deva dizer sim.
Trocando em miúdos e sem pretender prolongar-me na análise, Orlando Morando é organicamente um tucano, com raízes no partido e espaços conquistados por méritos próprios. Avançou internamente a cada temporada de sucesso eleitoral. Organizou rede de relacionamentos que o tornou forte no âmbito partidário. Tanto que ser candidato a vice-governador de Rodrigo Garcia não é teoria despropositada. Muito diferente disso.
Até mesmo porque sentiu a força da competição partidária desigual deflagrada após o rompimento com Orlando Morando e consequente afastamento do governador João Doria (nos primeiros tempos do primeiro mandato, Paulinho Serra tinha o governador como aliado indiscutível), o prefeito de Santo André teve que se virar nos trinta. E se virou. Loteou a Prefeitura, fez acordo com medalhões da política estadual e nacional, Gilberto Kassab à frente, e, em troca, ganhou o espaço que está aí. Resta saber o que fará da oportunidade que lhe apareceu no embaralhamento de cartas.
Pragmatismo diário
Antes de prosseguir com o raciocínio, devo lembrar aos leitores que esta análise não passaria de preparação a um texto mais bem elaborado caso o jornalismo fosse algo como o meio acadêmico, cujos especialistas passam meses a construir teorias debatidas em grupos até que oferecem uma versão final. No dia a dia é impossível deixar para daqui a pouco o que é preciso fazer agora.
Quero dizer com isso que essa análise não está necessariamente sujeita a revisão, mas sem dúvida a acabamento posterior. É por essas e outras que os leitores encontram neste espaço inúmeros textos sobre determinados assuntos. É uma cadeia complementar de interpretações cujas raízes estão inexoravelmente na primeira incursão. Como é esse o caso, agora.
Voltando ao que interessa, portanto, Paulinho Serra e Orlando Morando são o que os comentaristas esportivos poderiam chamar de centroavante tradicional e falso centroavante.
Que centroavante?
Há controvérsias sobre a quem imputar as respectivas marcas. Outro dia li o craque Tostão comentar a respeito; ele, Tostão, que é melhor analista de futebol no Brasil e que, como falso centroavante, participou da melhor Seleção Brasileira de todos os tempos, a Seleção do tri.
Tostão argumentou na coluna que mantém na Folha de S. Paulo que centroavante tradicional é o mais habilidoso, móvel e articulador. E que o falso centroavante é justamente o homem-gol que atua mais próximo da área. Juro por todos os juros que concordo quase sempre com Tostão, mas não desta feita. Vê-lo como centroavante tradicional me parece uma agressão às minhas convicções.
Vou, portanto, tipificar Orlando Morando como um centroavante da política que sabe se mover entre os zagueiros adversários, desloca-se às laterais para produzir interlocuções com meias-atacantes e laterais aliados e que, para completar, aparece na área na hora certa para finalizar.
Paulinho Serra é o centroavante típico dos comentaristas esportivos que ainda insistem em cobrar dos treinadores um camisa nove que não saia da área, que esteja pronto para cabecear, porque é sempre de elevada estatura, de baixa mobilidade e que chuta de canela se preciso. Entenderam?
Novidade no século
Não vejo neste século, e tampouco no que passou, nenhum exemplar da política regional que tenha dado um salto tão alto num jogo preliminar em que está em disputa o Palácio dos Bandeirantes e o Palácio do Planalto. Nenhum, absolutamente nenhum.
Todos os antecessores não passaram de figurantes, de parte da engrenagem suplementar nas articulações dos grandalhões da política estadual e da política nacional. Portanto, não eram centroavantes nem de um estilo nem de outro. Estavam no banco de reservas como massagistas de egos alheios. E jamais entravam em campo.
Tenho muito mais a escrever sobre nossos dois centroavantes políticos, mas vou deixar para outro dia. Inclusive o que prometi aí em cima, ou seja, a distinção dos políticos petistas da região, principalmente Celso Daniel e Luiz Marinho. Ambos são de outra espécie na maquinaria político-partidária.
Antes da Folha
O que me moveu mesmo a esta análise foi a reportagem da Folha de S. Paulo, que, insisto, veio muito depois do que escrevi sobre Paulinho Serra e Orlando Morando no jogo eleitoral que está se aproximando. Foi na edição de 23 de setembro último que me referi aos dois prefeitos nas campanhas eleitorais que estão chegando. Reproduzo os primeiros trechos da avaliação com dois objetivos.
Primeiro, mostrar que a Folha de S. Paulo chegou depois (o Complexo de Gata Borralheira do Grande ABC pode levar os leitores a acreditarem que a Folha saiu na frente nessa pauta jornalística).
Segundo, mostrar que a mente humana precisa ser desafiada, porque não deixei explícito, como poderia ter deixado, que temos o rompimento do Complexo de Gata Borralheira no campo político. O que deve ser ruidosamente comemorado. Sejam quais forem os resultados eleitorais. Compete à sociedade desorganizada, mas inquieta, respostas de um dos possíveis vencedores no ano que vem.
Síndrome do Vizinho escraviza
as escolhas de Paulinho Serra
DANIEL LIMA - 23/09/2021
O prefeito Paulinho Serra caminha tropegamente entre o céu e o inferno político. O futuro próximo vai determinar se está sobre duas canoas furadas ou se vai se consagrar numa prancha de surfe. Talvez lhe sobre um skate. O próximo presidente da República e o próximo governador do Estado podem determinar o futuro do prefeito tucano de Santo André. A Síndrome do Vizinho o atormenta e o coloca a reboque de quem tanto pretende exorcizar. Pensei em adjetivar a Síndrome do Vizinho, mas acho que expressão basta porque deixo complemento à imaginação dos leitores. Poderia ser Síndrome do Vizinho Incômodo, Síndrome do Vizinho Mais Competente, Síndrome do Vizinho Mais Autêntico. Qualquer uma dessas expressões definiria solidamente o que os separa. No caso, o outro lado, o vizinho, é o prefeito Orlando Morando, de São Bernardo.
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