Esportes

Ao telefone

DANIEL LIMA - 17/04/2008

Sou vencedor na disputa com a Internet. Não me deixo escravizar por esse invento dos demônios. Sou disciplinadíssimo como usuário da rede mundial de computadores. Tenho os sites preferidos, muitos dos quais sob responsabilidade de profissionais de comunicação aqui do Grande ABC.

Não me deixo engabelar pelo feitiço da Internet. Nem mesmo os sites pornográficos me tiram o foco do trabalho. De vez em quando até dou uma espiadinha, que ninguém é de ferro, mas tudo não passa de curiosidade típica de jornalista.

Da mesma forma, acreditem que, de vez em quando, assisto a fragmentos do programa do Luciano Huck, aos sábados à tarde. Principalmente o quadro “Lar doce Lar” que, convenhamos, é uma delícia emocionante.

Outro dia estava zanzando no computador, depois de esgotadas todas as saídas tradicionais de quem não se satisfaz mais com o jornalismo impresso, e eis que digitei “Esporte Clube Santo André”. Surgiu na tela um histórico do clube. Meti-me na empreitada de uma leitura rápida, na tela mesmo. Não demorou para que me decidisse a imprimir o texto. É o que faço quando pretendo ler com mais vagar, com mais acuidade, digerindo as informações.

E não é que, mais ou menos na metade do material que discorria sobre a trajetória do clube desde a fundação, em dezembro de 1967, Newton Brandão eleito primeiro presidente, redescubro um texto que “escrevi” na noite de 30 de novembro de 1981, e que foi publicado na edição do dia seguinte, 1º de dezembro, do Diário do Grande ABC, depois de ocupar a manchete principal de primeira página?

Leiam o que “escrevi” e depois vou explicar por que “escrevi” está entre aspas:

  • ”Acabou finalmente. Finalmente o Santo André é campeão da Segunda Divisão. Como se fosse um lindo sonho de verão, o Santo André fez ontem à noite no Parque Antártica tudo o que sua exigente torcida queria, na vitória de 3X1 sobre o XV de Piracicaba. (…) Foi um time de machos, de artistas, de polivalentes, que endoideceu a torcida e bombardeou o adversário. Tanto que 15 minutos antes de terminar o jogo os mais de 14 mil torcedores do Santo André agitavam freneticamente as bandeiras e entoavam “tá chegando a hora” como se estivessem num salão carnavalesco. A quarta tentativa do Santo André de conviver entre os grandes do futebol paulista não fracassou. Ela foi suada, sofrida, mas justa, inesquecível”.

Em realidade, o texto reproduzido neste artigo e todo o restante que ocupou páginas daquela edição foram repassados de um orelhão nas proximidades do portão de acesso do Parque Antártica tão logo o árbitro encerrou a partida entre o Santo André e o XV de Piracicaba.

Ditei o texto de improviso para o sempre amigo Donizete Raddi, que, na Redação, acompanhou o jogo pela televisão e aguardava meu telefonema a cobrar. Era assim naqueles tempos que tanto eu quanto os demais jornalistas de esportes do Diário lutávamos contra o tempo. Tempos sem equipamentos de fax, sem Internet, sem celular. Tempos apenas do telefone público numa rua qualquer, próxima do estádio em que o jogo de uma das equipes do Grande ABC se desenrolara.

“Escrever” matérias de improviso foi uma escola que disseminei naqueles tempos na Editoria de Esportes, da qual era o titular e contava com uma equipe que me dá saudade. Adotei a metodologia para agilizar o processo de fechamento editorial, sempre complicado quando se tornava indispensável esperar o encerramento do jogo ou dos jogos de rodadas noturnas. As rotativas não poderiam esperar. Era preciso driblar as máquinas.

O retrabalho de absorver informações sobre determinado jogo e repassá-las aos profissionais da retaguarda, na Redação distante, não me agradava. Primeiro porque se perdia a autenticidade e, principalmente, a contextualização das observações, por mais competente que fosse o profissional do outro lado da linha. Segundo porque implicava na produção do texto final por quem estava na Rua Catequese. Descrever uma partida de futebol com base em informações apressadas de quem viu os 90 minutos não é a melhor forma de passar credibilidade aos leitores. A reportagem impressa dava sentido análogo ao sexo com camisinha para quem se acostumou com a liberdade dos tempos em que doenças sexualmente transmissíveis não causavam mais que alguns contratempos temporários.

Instituí a inovação sem traumas. Aos poucos, todos os jornalistas da editoria estavam aptos a retirar o telefone do gancho do orelhão mais próximo e pausadamente produzir de improviso um texto que normalmente ganharia forma final com simples dedilhar do teclado de máquina datilográfica no outro lado da linha. Caberia à retaguarda apenas dar o acabamento necessário, colocando-se uma vírgula aqui, outra ali, um ponto final mais à frente, uma concisão na frase mais adiante.

Reler na Internet, diretamente de página do sítio do EC Santo André, a emoção que transmiti em forma de matéria para Donizete Raddi naquela noite de 26 anos atrás, me atinge em cheio porque não só aqueles momentos foram inesquecíveis como, igualmente, representavam a comunhão de uma equipe de redação que procurava harmonizar e equilibrar os privilégios e os sacrifícios de estar no front da informação, gozando das delícias dos acontecimentos, e de também resignar-se com a normalmente quase desértica redação de final de noite, com as luzes esperando por um último toque.

Naquela noite de final de novembro, transmiti pelo orelhão da Rua Turiassu uma das maiores alegrias até então de minha carreira. Só senti falta do abraço amigo e da comemoração presencial de Donizete Raddi, meticulosíssimo restaurador de textos telefônicos ou datilografados ao vivo e em cores.

Um dia destes vou escrever sobre o que fizeram comigo numa noite de sábado, quando, solitário, acompanhava no rádio a transmissão de São Paulo e Independente da Argentina, final da Taça Libertadores. A sede do Diário do Grande ABC era uma casinha na mesma Rua Catequese. Não se faz aquilo que fizeram comigo.


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