Naquela noite de sábado, 19 de outubro de 1974, estava sozinho na Redação do Diário do Grande ABC, ainda numa casinha simples da Rua Catequese que há muito tempo virou espaço público do complexo viário da Perimetral, em Santo André.
O cargo de editor de Esportes aos 23 anos de idade jamais me inebriou. Nem poderia, porque significava, como tantas outras chefias, mais trabalho e mais responsabilidade.
Estava colado ao rádio, ouvindo atentamente a decisão da Taça Libertadores da América, entre São Paulo e Independiente da Argentina. Estava reservado um espaço na primeira página para ser transformado em notícia. O São Paulo ganhara o primeiro jogo no Morumbi e perdera o segundo em Buenos Aires. O tira-teima foi programado para Santiago do Chile.
Morena era o astro do Independiente e Pedro Rocha do São Paulo.
Naquele tempo não havia Galvão Bueno e Rede Globo para fantasiar um nacionalismo esportivo idiota. Torcedor de qualquer time que afirme que engrossará o coro pela vitória de um rival na Libertadores é mentiroso ou doente da cabeça.
A TV estava muito distante no tempo para descobrir o futebol como ferramenta de marketing. Os patrocinadores eram raridade. Por isso só restava mesmo a alternativa do rádio, com a barulheira de sempre, o dramatismo encenado para garantir audiência tanto quanto hoje, embora hoje algo soe grotesco quando se tem na TV as imagens geralmente em desacordo com os relatos.
Nem por isso, entretanto, craques do passado eram craques apenas nas vozes dos narradores. Apenas se tornavam mais craques ainda do que o eram de fato. Diferentemente de muitos pernas-de-pau de hoje que não resistem às câmeras e que possivelmente no passado sem documentação mais crítica acabariam levados à condição de bons jogadores.
A transmissão do jogo se convertia em epopéia técnica porque as telecomunicações eram uma lástima. O chiado intermitente dificultava a fidelidade de informações, mesmo que as informações fossem, como se sabia, anabolizadas por narradores histriônicos, comentaristas azedíssimos e repórteres-volantes sempre repetitivos nas perguntas que jogadores e técnicos respondiam com os mesmos clichês de hoje.
Quem acha que exagero não conhece a história do rádio esportivo como este fanático por futebol que passou a infância e a juventude grudado em todos os tipos de emissoras, ouvindo principalmente Joseval Peixoto, Edson Leite, Fiori Gigliotti e tantos outros e que, mais tarde, se dobrou a uma nova tendência de transmissão, inaugurada por Osmar Santos.
Naquela noite de sábado de 19 de outubro de 1974, envolvido que estava no jogo do São Paulo com o Independiente, perdi o senso de cautela e deixei fluir um viés de confiança absoluta quando apareceu no balcão da modesta sede do Diário do Grande ABC aquele casal de jovens esbaforidos. Detestava como detesto até hoje ser interrompido no trabalho, por isso baixei a guarda. Eles disseram que estavam em maus lençóis porque o pneu do Fusca que dirigiam sofreu avaria e o estepe estava igualmente fora de combate.
Não tive dúvidas em entregar as chaves de meu Fusca e de sugerir que utilizassem o estepe, que fossem até a borracharia mais próxima, que consertassem o pneu avariado, que recolocassem o pneu no meu veículo e que me entregassem as chaves de volta.
O jogo terminou com a vitória do Independiente por 1 a 0 e até hoje estou esperando a devolução do estepe. Eles também levaram a chave de rodas.
Devo agradecer aos céus que eram tempos em que havia ainda certo pudor em abusar da confiança de alguém, porque, fossem os tempos atuais, tenham certeza de que o golpe seria completo: eles teriam levado meu Fusca também.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André