Esportes

Tango e outros ritmos (1)

DANIEL LIMA - 13/08/2008

Com as limitações de quem assistiu à maioria dos jogos pela televisão, imerso que estou em série de contratempos profissionais, mas sem medo de me atrever a diagnosticar as razões do sucesso do Santo André na Série B do Campeonato Brasileiro, agora alçado pelas próprias forças ao G4, o grupo dos que subirão para a Série A, ouso disparar algumas considerações, sem antes abrir o guarda-chuva de uma interrogação:

Como o Santo André que ascendeu à Série A Paulista caindo pelas tabelas, jogando de forma errática aqui, razoável ali, virou um time certinho, arrumadinho, perigosíssimo, no Campeonato Brasileiro?

São muitas as respostas, dentro e fora de campo.

O grupo de jogadores foi mantido pelos novos dirigentes, à frente o empresário Ronan Maria Pinto, e contou com alguns reforços. Quem conhece futebol sabe que é esporte coletivo e como esporte coletivo a força do conjunto fala mais alto.

Um ou outro craque é capaz de mudar o resultado de um jogo, mas neste Brasil de exportação de talentos já no berçário das equipes de base o que sobra para o distinto público geralmente são bons jogadores jovens mas de perspectiva duvidosa e veteranos egressos do Exterior ou ciganos de competições estaduais.

Até alguns talentos excepcionalmente esquecidos por empresários da bola e que ousam botar a cabeça para fora do imenso mar de mesmices são resgatados para o mundo dos negócios da bola. São craques ou candidatos a craque retardatários por conta não necessariamente do amadurecimento tardio, mas de olheiros descuidados ou negligentes.

Respaldo estrutural e financeiro é crucial no profissionalismo. E nesse ponto o comando de Ronan Maria Pinto, especialista em sedução e motivação, é permanente injeção de entusiasmo no Santo André.

É impossível dialogar com Ronan Maria Pinto sem que metade do tempo ele dedique ao futebol do Santo André. A metade da metade que sobra ele fala do Diário do Grande ABC e a metade da metade do restante do tempo ele trata de política e de outros assuntos que movimentam seu dia movido a duracel.

A contratação do técnico Sérgio Soares foi um tiro certeiro, ele que fora demitido no ano passado pela própria direção de Ronan Maria Pinto. Naquela situação, o Santo André requeria choque estrutural para demarcação do terreno dos novos dirigentes em relação à diretoria que acabara de sair com o peso do rebaixamento no Campeonato Paulista.

Sérgio Soares é um moço trabalhador, dedicado a formulações táticas e tem o ego ajustado num elenco onde a convivência com Marcelinho Carioca não é fácil, como é comum em ambiente incensado por um craque consagrado, estrela maior da companhia. Sérgio Soares não forçou a barra com Marcelinho Carioca, não procurou se afirmar. Deu a Marcelinho Carioca o que de mais valioso o ex-jogador do Corinthians é capaz de expor em campo: liberdade de espaço, atuando de acordo com o peso dos anos, da experiência e do talento individual de enfiar a bola onde a imaginação do torcedor muitas vezes não alcança.

O ajustamento tático da equipe é um jogo dissimulativo que anestesia os adversários a ponto de não levarem o Santo André tão a sério quanto deveriam — e isso é muito bom.

O Santo André é melhor do que parece. Transmite a sensação de que é uma equipe malemolente, excessivamente clássica, refratária à marcação mais asfixiante; sugere descompromisso com o andar do relógio e certa insensibilidade à torcida. Esse é um falso Santo André.

O Santo André do dito e feito apenas para os mais letrados taticamente é um time metodicamente mortal. Joga com o tempo sempre a favor, como se a tábua de classificação fosse aliada eterna a corroborar os planos secretos e que, por isso mesmo, a qualquer momento, como se deu na rodada do meio de semana, estará a seu dispor, acomodando-o entre os quatro primeiros. O Santo André acelera e reduz o ritmo de jogo ao bel-prazer da experiência da maioria dos jogadores que memorizaram tanto o posicionamento individual e coletivo que poderiam inclusive atuar com vendas nos olhos.

Cai do cavalo quem acreditar que o Santo André é um time inofensivo porque joga leve, solto, em ritmo de tango. Quando menos se espera, o que se vê é um bem sincronizado forró, um samba mais aquecido, um rock pauleira em forma de passes milimétricos numa virada de jogo, passagens em overlappings entre alas, meio-campistas e atacantes, um cruzamento em diagonal ou em profundidade que colhe a defesa adversária em flagrante descuido, uma falta bem treinada, um escanteio mortal, um centroavante que recua como armador e um meia que vira centroavante, um Cicinho infernal a povoar defesa, meio-de-campo e ataque.

O Santo André é um falso time fora de moda que tem como maior segredo continuar a fazer crer que é um time fora de moda e, portanto, carta fora do baralho.

O problema é se os adversários passarem a dedicar ao Santo André mais respeito, mais cuidados, mais atenção, mais tudo.

O problema é se os adversários descobrirem que o Santo André é um zape tático e técnico escondido entre as mangas da classificação discreta até a rodada do meio de semana e que por isso mesmo, por eventualmente não estar mais escondido, precisaria ser mais vigiado, mais controlado, mais estudado.

E esse é o problema do Santo André a partir de agora porque o G4 é um portal a enfeitiçar a todos, a cobiçar a todos.

Os adversários a partir de agora vão invadir os intestinos técnicos e táticos do Santo André para neutralizar suas forças, suas manhas, suas dissimulações. Nada será como antes e cada vez se tornará mais complicado na medida em que o Santo André conseguir se manter no G4.

Por isso até que seria melhor se o Santo André demorasse mais para aparecer nessa vitrine. Assim, poderia ganhar mais tempo para aperfeiçoar o armamento tático na penumbra do campeonato e, quando os adversários se dessem conta de que é um falso time preguiçoso, um falso time fora de moda, um falso time sem competitividade, já teriam dançado o tango. Literalmente.

O G4 passa, portanto, a ser um campeonato dentro do campeonato para o Santo André. Demorou para chegar a esse acesso e não pode deixar-se levar pela situação de, eventualmente, voltar à zona próxima do acesso. O G4 foi uma escalada demoradamente programada, mas não pode entorpecer a racionalidade geral de comando dentro e fora de campo a ponto de constituir-se em negação das virtudes da equipe, que os adversários subestimaram e provavelmente ainda demorarão mais um pouco para respeitar numa contagem regressiva que será acelerada no mesmo ritmo da permanência da equipe entre os melhores.

Agora temos um jogo do gato da maturidade contra o rato do deslumbramento.

Que o Santo André esteja preparado para resistir às estocadas gerais de ter virado uma das principais estrelas da Série B. Que continue dando um show de tango enquanto a maioria dos adversários mistura e improvisa ritmos na falta de organicidade tática e estrutural.


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