Esportes

Futebol superficial

DANIEL LIMA - 05/05/2009

É impressionante como a mídia nacional (sei lá se é assim em outros países) é pouco preparada para enxergar futebol além da emoção. Na TV paga um ou outro comentarista é capaz de traçar com alguma competência o que se passa no gramado, além das informações rasas de sempre. O mundo da bola é muito mais complexo e instigante do que tentam fazer crer os profissionais de Imprensa. Nos tempos de jornalismo esportivo, o que mais me encantava era acompanhar os treinamentos e me esconder nos vestiários em dias de jogos para ouvir os treinadores.

Uma análise de futebol equivale à crítica de teatro, de cinema, de televisão. Assistir a um filme sem aparato mínimo de informações de especialistas é desfrutar de uma obra pela metade. A contextualização do espetáculo é porta aberta à compreensão dos valores intrínsecos de cada lance, de cada cena, de cada acorde, de cada passo. Apesar dos pesares do rebaixamento intelectual do mundo cultural, quem se dispõe a ir a uma peça teatral, a acompanhar um filme, a ouvir um grande cantor ou pianista, tem muito mais retaguarda técnica do que quem procura nos jornais e nos programas de televisão algo mais que frases feitas, quando não agressivas, de eventos esportivos.

Só recentemente a Folha de S. Paulo descobriu o filão ao criar uma coluna na qual Paulo Vinícius Coelho esquadrinha labirintos táticos tanto antes quanto depois do principal jogo da rodada. Uma boa notícia. Antes disso, PVC, como é conhecido, limitava-se na TV por assinatura ao quase estigma de que era um robozinho estatístico a serviço da curiosidade.

Tenho histórias interessantes para contar. Uma das quais envolve o então técnico do Santo André, Sylvio Pirillo, boa-praça que vestiu a camisa do Flamengo dos bons tempos e também da Seleção Brasileira. Nem me lembro como Sylvio Pirillo desembarcou no Santo André. Sei que foi no fim de uma vida esportiva de glórias, em 1979, em tempo de montar uma equipe que chegou ao quadrangular decisivo da então Segundona, hoje Séria A-2.

O Santo André não passava de 11 camisas. Mesmo assim compôs um grupo que por pouco não conseguiu o Acesso. Pesou no relativo sucesso o olhar clínico do gaúcho Sylvio Pirillo. Chegou em segundo lugar, condição que valeu ao Santo André disputar (e perder) o chamado rebolo para o Marília. Rebolo era o tira-teima entre o vice-campeão da Segundona e o penúltimo colocado da Primeirona. Dois anos depois, com apenas alguns retoques e já sem Sylvio Pirillo, mas com o mais competitivo Sebastião Lapola, eis o Santo André conquistando o Acesso.

Quando Sylvio Pirillo recebeu aquele grupo de jogadores e constatou que reunia um bando de baixinhos entre o meio de campo e o ataque (Fernandinho, Bona, Arnaldo e Da Silva) não teve dúvidas: praticamente proibiu que a equipe utilizasse o jogo aéreo. Mais que isso: mandou o time inteiro se concentrar naquilo que seria a principal virtude do grupo e uma arma mortal para os adversários: a bola teria de rolar sempre no gramado, rapidamente, com deslocações constantes dos jogadores. Inclusive para fugirem dos pontapés dos adversários. Dava gosto ver o Santo André jogar numa Segundona de brutamontes.

Acompanhei tantos técnicos dentro e fora de campo que fiquei viciado. Embora disciplinadíssimo na obtenção de conhecimento, insaciável como deve ser todo jornalista (no final de semana, entre outras leituras, reli o brilhante perfil de Frank Sinatra, escrito em 1966 pelo espetacular jornalista norte-americano Gay Talese para a edição da revista Enquirer), não desgrudo da televisão durante os bons jogos de futebol. Só lamento que não tenha tempo para um número maior de jogos internacionais, especialmente dos campeonatos inglês, espanhol e italiano, e também das taças européias. Mais que ver os jogos, acompanho cada declaração dos treinadores e dos jogadores.

Lamentavelmente, a tropa de jornalistas e radialistas se apega demais a questões banais.

O que chamo de questões banais?

Por exemplo: a insistência em repetir a mesma pergunta a Mano Menezes, sobre a importância de Ronaldo Fenômeno para o grupo.

O que chamaria de questões fundamentais, sempre esquecidas?

Qual é a diferença básica de preparação tática para enfrentar o Santos logo depois do São Paulo? O que mudou taticamente no Corinthians para esse novo embate? Que tipo de adaptação de marcação foi preciso treinar?

Ninguém fez essas perguntas porque a maioria não sabe distinguir as características de São Paulo e Santos. E o pior de tudo é que não ouvi um único analista de futebol que tenha tido a percepção de que a escola são-paulina é bem diferente da escola santista.

Sempre assisto aos jogos de futebol com dois dos meus filhos, a Lara do lado direito e o Dino do lado esquerdo do sofá. Procuro desvendar os mistérios do futebol dentro de limitações pessoais somadas às limitações espaciais do aparelho de televisão. A atenção é redobrada. Não perco o foco de forma alguma. Pode chover canivete. Nada diferente de quando leio um livro ou uma reportagem de jornal e revista.

Só lamento é que não consigo apagar a chama do clubismo que insiste em tentar desviar meu senso de interpretação, numa luta eterna entre razão e emoção. Como o clubismo é a essência de tudo, não haveria motivo para acompanhar os jogos apenas pela razão. O engraçado é que muitos profissionais pagos para dar muitas informações também não conseguem separar as coisas. Compreendo-os, mas que são pecadores, são.

A omissão ou o despreparo da maioria da mídia em levar o consumidor de informação a reunir o máximo de embasamento para pelo menos sustentar a emoção sob alguma base teórica só não é pior do que uma certa banda televisiva que, na angustia de contentar a gregos e a troianos, porque os interesses comerciais estão acima de tudo, ameniza ou se omite durante as transmissões, negando as evidências da imagem. O conceito de não desagradar o telespectador é levado ao paroxismo de esconder ou tentar esconder na semântica requenguela que Domingos não é um jogador de futebol, mas um carniceiro implacável.


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