Esportes

Cartão postal (2)

DANIEL LIMA - 10/06/2009

Como o São Caetano até outro dia, o Santo André agora é o melhor cartão postal do Grande ABC. Um dos 20 integrantes do mais disputado campeonato nacional do planeta, o que se pergunta é se o Santo André chegou ao limite de forças ou conseguirá superar novos desafios? Esta é a questão.

Seria a agremiação do Grande ABC suficientemente forte para manter-se por anos a fio na Série A do Campeonato Brasileiro, estabelecendo nessa trajetória a consolidação esportiva que o São Caetano não conseguiu, ou repetiria o desempenho do rival?

Como não fico no muro e gosto de desafios, até mesmo porque não tenho compromisso doentio com determinados vaticínios, principalmente quando a superação dos vaticínios significa vitória do Grande ABC, aposto constrangido que tenho muitas dúvidas na sustentação do Santo André por muito tempo na competição.

Essa é a aposta que mais gostaria de perder, porque significaria a reversão de uma tendência natural do mercado da bola cada vez mais exigente, não fatalismo gataborralheiresco.

Basta recolher os resultados do Santo André na presente Série A do Campeonato Brasileiro para diagnosticar o tamanho das complicações: a equipe venceu fora de casa o Coritiba e empatou com o Atlético Mineiro e empatou em casa com Santos e Botafogo do Rio, saindo derrotada pelo Flamengo. Convenhamos que é uma sequência respeitável. Posso estar enganado nas contas, mas a soma de títulos brasileiros dos adversários alcança a nove, o que não é pouco.

Então, com esses resultados, o Santo André deveria estar comemorando a estréia na Série A, mas a situação é outra: está na 14a colocação, a um passo da zona do rebaixamento. Se perder para o São Paulo no próximo final de semana no Morumbi (viram como é duríssima a sequência de jogos da Série A?) pode ficar temporariamente na penumbra.

E aí, qual será a reação? Repetiremos no futebol nosso velho e desgastado mas sempre presente Complexo de Gata Borralheira ou o Santo André terá capacidade de analisar a tabela da competição e bater no peito com autoconfiança para desafiar e superar os próximos adversários?

Fosse qualquer coisa no Santo André, já estaria preparando a cabeça dos jogadores no sentido de que não se deixem influenciar pela classificação do campeonato, eles jogadores que se acostumaram desde o ano passado, na Série B do Campeonato Paulista e na Série B do Campeonato Brasileiro, a sustentar a equipe entre as primeiras colocadas. Talvez aquele quadro classificatório nos vestiários cause preocupação, mas não é hora de entregar a rapadura. Muito pelo contrário. Há 33 rodadas em disputa ainda, o que significa que o campeonato mal passou dos 10% dos compromissos de cada equipe.

Talvez o Santo André em toda a trajetória de quase meio século jamais tenha tido o respaldo financeiro atual, à frente o empresário Ronan Maria Pinto, dono do Diário do Grande ABC. Os investimentos na estrutura do profissionalismo em Santo André são elevados, os cuidados com a equipe ultrapassam padrões anteriores e os resultados dos últimos anos não são ocasionais. Tanto é verdade que ao desfilar na Série A do Brasileiro o Santo André atinge o ápice da performance que uma equipe média de futebol pode pretender.

Ao subir para a Série A do Campeonato Paulista e para a Série A do Campeonato Brasileiro o Santo André conjugou o que há de melhor na relação custo-benefício. A equipe que conseguiu esses dois feitos, mesmo com as alterações individuais por conta de saída de alguns titulares, está entre as melhores da história do clube. Dá gosto ver o Santo André jogar, principalmente quando se escalam aqueles moleques dinâmicos no ataque.

Mesmo assim, mesmo com tudo isso, com premiações em dia, com salários bastante razoáveis, o Santo André não consegue sair do meu radar de preocupação com eventual rebaixamento. Ou seja: pode continuar surpreendendo inclusive na competição atual, mas o fôlego seria curto para o futuro. Ao Santo André escasseia o ingrediente que sobra nos clubes mais tradicionais: massa crítica de torcedores a lhe dar sustentação interna, mesmo com as sacolejadas naturais de críticas, e, externa, para efeitos econômicos e institucionais.

Traduzindo: a carência de torcedores em número representativo, mal que afeta a todos os clubes do Grande ABC, antepõe-se e subverte em tese a possibilidade de novos saltos ou de estabilidade numa competição tão acirradamente disputada.

Sem consumidores em número expressivo, o Santo André vira alvo fácil de maquinações que, como na política, também existem no futebol. As arbitragens, principalmente em jogos contra forças tradicionais do futebol brasileiro, lhe serão sempre mais rígidas e intolerantes. Num campeonato com a extensão temporal do Brasileiro, um time é rebaixado ao longo da competição, não nas últimas rodadas. O Santo André necessita contar com grau adicional de qualificação estrutural e técnica para não acusar os golpes do tradicionalismo que o coloca na situação de estranho no ninho. Será possível oferecer esse cardápio ao longo de novas disputas se um dos elementos de viabilidade financeira praticamente inexiste nas arquibancadas?

De todas as armadilhas do futebol profissional do Grande ABC a mais insidiosa é a periferização midiática, raiz da quebra contínua do contingente de torcedores.

A torcida do Santo André se esvaiu numericamente na exata proporção em que a televisão descobriu o futebol como grande filão publicitário, no começo dos anos 1990, quando passou a incluir as disputas no chamado horário nobre. Privilegiaram-se os clubes de massa, evidentemente.

Sem o benefício de um bloqueio topográfico da natureza às imagens transmitidas da vizinha Capital, o Grande ABC é colonizado pelo noticiário paulistano. Diferentemente, portanto, de outras áreas do Estado e do País que, fora da Capital, mantêm programações de TV próprias, intimamente relacionadas com a realidade local. O noticiário das retransmissoras de TV aberta na Baixada Santista, em Campinas e em outros centros demográficos paulistas é concentrado nos clubes locais.

Antes de o futebol virar espetáculo televisivo, agora cada vez mais disseminado entre a inquieta classe média com o advento do pay-per-view, as equipes do Grande ABC já sofriam as consequências da sedução popular dos clubes grandes de São Paulo, pela proximidade geográfica e também pela força do rádio. Mas a TV aberta é muito mais avassaladora.

Nos bons tempos de Segundona, como era chamada a Série B no passado, o Santo André levava ao Estádio Bruno Daniel mais de cinco mil torcedores em média por jogo. No Brasileiro da Série B, não chegou a dois mil pagantes. Na Série A, os jogos contra o Flamengo e o Santos colocaram na prática o Santo André na condição de visitante.

Como superar esse quadro, retrato irretocável das fragilidades sociológicas de uma cidade que espelha uma região sem apetite para ter identidade própria? Mesmo que um planejamento que envolveria profissionais interdisciplinares fosse levado adiante, cuidando-se de todos os detalhes e executando-se com a profundidade indispensável, não conseguiríamos chegar ao ponto desejado. Em matéria de identidade própria, somos uma Tróia depois do cavalo.

Lembro-me dos anos 70, no Diário do Grande ABC. Escrevi no “Confidencial” um texto sob o título “Camisa dividida”, referindo-me à sobreposição sentimental da torcida andreense. Àquela ocasião, dava ênfase ao fato de que os ramalhinos torciam por outros grandes paulistas mas reservavam as cores locais no lado esquerdo do peito. Havia massa crítica entre os frequentadores do Estádio Bruno Daniel que me permitia aquela observação. Quase 40 anos depois, boa parte da torcida do Santo André envelheceu ou já se foi para outro mundo. Em vez de camisa dividida, o que temos é uma camisa suplementar, sob a camisa principal de um grande clube paulista. O Santo André, como os demais clubes do Grande ABC, virou o segundo time da preferência de corintianos, são-paulinos, palmeirenses e santistas. A situação não é de toda má, mas está longe de ser a ideal.

Fosse diferente, nos últimos 24 meses o Estádio Bruno Daniel teria se tornado pequeno, porque a equipe que veste a camisa do Santo André tem dignificado o futebol.

O Grande ABC não merece o cartão postal que tem e, paradoxalmente, exibe nas arquibancadas a cada jogo do Santo André na Série A do Brasileiro o vazio de capital social sobre o qual tanto escrevo quando me refiro à regionalidade.


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