Marcelinho é tão importante para o Santo André quanto Ronaldo é para o Corinthians. Cada um na especialidade que os deuses do futebol determinaram, distribuindo-lhes talento técnico dos bem-aventurados dos gramados.
Se fosse chamado apenas de Senhor Gol estaria sintetizada a carreira de Ronaldo? Não, não e não, porque Ronaldo é mais que um fazedor de gols. É um fazedor de gols nas horas certas, nas decisões, e, geralmente, com um toque de classe, com a frieza de quem parece contar com régua e compasso. Ronaldo é um fazedor de gols também quando não faz gols, porque sua presença na área, magnetizante, mantém um e outro companheiros livre de marcação.
Se fosse chamado apenas de Senhor Chute estaria definida a carreira de Marcelinho? Também não. Marcelinho arremata com especialíssima destreza. Os escanteios, as faltas, os lançamentos milimétricos, tudo isso o torna modelo em extinção. Mas também tem apurada capacidade de enxergar espaços para os companheiros. No ocaso da carreira, tornou-se um craque mais inteligente, mais ferino e mais cirúrgico do que nos tempos de glória, principalmente no Corinthians, quando a impetuosidade e a marca registrada do chute enfeitiçado obscureciam o florescer da maturidade que, em terreno fértil como o Santo André, se manifesta consolidadamente.
Talvez neste momento da carreira futebolística, Marcelinho e Ronaldo pudessem até trocar de esporte. Fosse permitido nas regras de basquetebol que um dos cinco jogadores em quadra atuasse obrigatoriamente apenas com os pés, apenas com os pés, e que seus companheiros jogassem com as mãos, apenas com as mãos, exclusivamente com as mãos, é muito provável que tanto Ronaldo quanto Marcelinho seriam acionados frequentemente e levariam o público ao delírio.
Os pés de Ronaldo e os pés de Marcelinho se equivalem às mãos dos bons de bola ao cesto, como se chamava basquetebol antigamente. Eles acertariam o alvo e fariam cestas de três pontos como ninguém. O que os unem mais intimamente é a infinita simplicidade dos gênios para definir o espaço a salvo de defesas dos goleiros e, ali, mortalmente, balançarem as redes. Se fazem isso com a oposição natural dos goleiros, imaginem então, nesse desvario de troca de esporte, o que seriam capazes se lhes fossem dadas condições letais para chutar lá no alto, na rede praticamente sem guardião mas com o suporte da tabela.
O que quero dizer quando transponho quase que delirantemente Marcelinho e Ronaldo para as quadras de basquetebol é que tanto um quanto outro reúnem atributos que os tornam diferenciados no futebol, por mais limitações físicas que o primeiro tenha por conta do peso dos anos e o segundo atraiçoado por contusões renitentes.
De Ronaldo, qualquer parágrafo suplementar ao próprio nome pode acabar redundante, porque praticamente tudo se escreveu sobre ele na tentativa de defini-lo.
A ressurreição no Corinthians, depois de tratado como anedota quando anunciado como reforço, é a própria ressurreição do Corinthians.
É difícil saber quem é o criador e quem é a criatura nos últimos tempos da equipe campeã paulista invicta e campeã da Copa do Brasil. Seria o Corinthians o criador e Ronaldo a criatura, ou o inverso? Teria sido o Corinthians tão vitorioso sem Ronaldo? Ronaldo teria atingido a plenitude da volta por cima sem o Corinthians paciente e organizado que lhe deu tempo à recuperação física, técnica e espiritual?
Com Marcelinho se dá algo semelhante. Chegou ao Santo André no momento certo. A equipe passava por mudanças diretivas, caíra para a Segunda Divisão Paulista e frequentava havia anos a Segunda Divisão do Brasileiro. Foi o agora presidente Ronan Maria Pinto quem o trouxe de volta de fato ao futebol. Aos poucos Marcelinho retomou uma carreira que esticara sem muita convicção em outros clubes, Brasiliense rebaixado, inclusive.
Na temporada passada e também nesta, parece que Marcelinho se deu conta de que é possível pendurar as chuteiras, já passados 37 anos, sem deixar de arrancar aplausos ou xingamentos dos torcedores. O Parque Antártica de sábado à tarde tremia de medo e bradava de irritação quando Marcelinho tocava na bola, quando Marcelinho dominava a bola, quando Marcelinho driblava um adversário, quando Marcelinho batia um escanteio na trave, quando Marcelinho encontrava um companheiro bem colocado para o passe certeiro, quando Marcelinho batia uma falta com perigo, quando Marcelinho respirava no gramado.
Talvez o que diferencie Ronaldo de Marcelinho nesta temporada seja a próxima temporada.
Ronaldo está de olho esticado na próxima Copa do Mundo. Relativamente em forma, não será um esforçado Luiz Fabiano que lhe tomará a titularidade. Ronaldo é extra-classe, é o gol concebido na geografia do posicionamento mortal, do chute na medida certa, na velocidade certa, no tempo certo. Ronaldo não é simplesmente o gol, o gol qualquer, resultado de oportunismo puro, de uma rebatida. Ronaldo é a evolução do gol pela forte presença na grande área. É o posicionamento mortal que desafia os companheiros da equipe a compreendê-lo taticamente e os zagueiros adversários a desafiá-lo na interpretação de espaços óbvios e camuflados. Ronaldo não é um centroavante pret-a-porter. Ronaldo é muitas vezes a digital única do começo e do desenlace do processo de chegar à rede adversária.
Marcelinho está de olho na aposentadoria, delimitada nos festejos de 100 anos do Corinthians, também na próxima temporada. Por isso é possível que esteja calibrando o fôlego e o treinamento técnico tendo horizonte mais curto, mais imediato. Talvez este seja o erro. Se se cuidar, se apurar ainda mais o senso de colocação, se continuar olhando para o gramado e observando os companheiros e os adversários como um enxadrista, se, amadurecido, continuar traduzindo tudo isso na velocidade de uma jogada sempre surpreendente num futebol de mesmices, se Marcelinho, enfim, tratar a temporada do ano que vem, mesmo que seja a última, como se fosse a mais importante de sua carreira, provavelmente terá de esticar o prazo de validade de seu futebol.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André