Durma-se com um barulho desses:
a) Um dirigente do Corinthians afirma que parte dos torcedores organizados foi levada a contestar publicamente a transferência de jogadores campeões da Copa do Brasil porque a crônica esportiva não tem capacidade de analisar o que se passa no futebol brasileiro e, com isso, influencia destemperos de gente com baixa densidade intelectual.
b) Os torcedores organizados que se sentiram ofendidos partiram para reações, entre as quais uma cadeirada que quase atingiu o dirigente declarante, num encontro na sede do clube.
c) A crônica esportiva caiu de pau nos torcedores organizados e também no dirigente do Corinthians. Os primeiros são considerados vândalos e o segundo um delegado de Polícia que não fez valer a função, já que contemporizou o incidente, relaxando as consequências.
É claro que toda essa barulheira é típica dos culpados. O silêncio é dos inocentes.
Em linhas gerais, esse é o enredo patético de um caso que, fosse a imprensa esportiva mais qualificada, fosse o dirigente corinthiano menos contundente e fossem os torcedores menos apaixonados, nada teria acontecido.
Mas, não é pedir ou esperar demais que a crônica esportiva majoritariamente despreparada para enxergar o contexto além-futebol tenha discernimento e profundidade nas análises, sem contar que, movida a paixão, excede-se na omissão ou nas intervenções?
Não seria igualmente esperar demais que um dirigente esportivo tenha a formação que tiver, tenha as razões que tiver, reúna equilíbrio emocional pós-jogo, pressões da arquibancada, para entender que aqueles jovens, principalmente os jovens que formam as torcidas organizadas, são um pedaço social integrante dos espetáculos, com interesses legítimos e também ilegítimos, como a própria crônica esportiva, como os próprios dirigentes esportivos?
Também não seria idiotice acreditar piamente que os torcedores organizados assistiriam calados e conformados seus ídolos zarparem para mercados futebolísticos de segunda linha, porque a economia esportiva do país pentacampeão do mundo é de fim de linha?
Ora, ora, gente. Vamos deixar de hipocrisia. Vamos jogar limpo. Parem de perseguir com ares de inquisição, de limpeza social, os torcedores organizados que não são flores que se cheiram, como não são flores que se cheiram os deputados e senadores que travam em torno do ex-presidente José Sarney, presidente do Senado Federal, uma guerra sem comedimentos.
Será que já não são suficientes os exemplos de espertalhões da moralidade esportiva que solidificaram carreiras ao se transformarem em paladinos de uma causa que todos sabem ou deveriam saber está nas raízes de um País tão desigual, tão maltratado, tão deseducado, tão dissimulado?
Será que os torcedores organizados, sejam quais forem as organizadas, vão continuar sendo massa de manobra de jornalistas e radialistas que se pretendem promotores, delegados de polícia, juízes e deuses?
Há jornalistas ingênuos ou que se fingem de ingênuos que queriam porque queriam que o dirigente corinthiano, Mário Gobbi, delegado de Polícia, desse voz de prisão ao torcedor que tentou atingi-lo com uma cadeirada.
Tenham a santa paciência, porque o Mário Gobbi atingido não era o delegado de Policia de São Bernardo, mas mais um dirigente de futebol. Poderia ser um juiz de Direito, um promotor público, o diabo, que ali, naquele lugar, estava à paisana. Ou à esportiva. O livre arbítrio para minimizar o caso tem explicações que vão muito além do próprio reconhecimento de que se excedeu nas entrevistas às emissoras de rádio após o jogo com o Vitória da Bahia. Ele sabe que o ambiente iria pesar mais se levasse adiante a tentativa de agressão. As relações institucionais entre o Corinthians e torcidas organizadas ficariam expostas a retaliações. Nada diferente das ameaças muito mais explícitas, muito mais escandalosas, aos opositores de José Sarney no teatro de encenações em Brasília.
A crônica esportiva é incipiente na condução diária do noticiário dos clubes esportivos de massa, principalmente quanto mais se distancia dos gramados. A linha de montagem de jogadores requisitada anualmente para abastecer clubes estrangeiros é uma rotina que se explica muito mais pelas desvantagens macroeconômicas de um Brasil pouco competitivo no campo internacional do que com o regime há muito ultrapassado de voluntarismo diretivo.
Aliás, a direção dos clubes brasileiros sempre foi voluntária e passional. A diferença é que futebol se tornou negócio de milionários. No passado, nossos craques não valiam tanto nem eram exportados em toneladas, mas os dirigentes eram semelhantes aos atuais. O que mudou é que entraram em campos os empresários de futebol, estes sim do ramo de negócios, estes sim que fazem girar as rodas da fortuna. Economias emergentes não têm vez no mundo da bola.
O estado da crônica esportiva é tão crônico, com perdão do trocadilho, que mesmo um dos expoentes da atividade, o jornalista Juca Kfouri, declarou ainda outro dia numa entrevista que o melhor da categoria, disparado, é o ex-craque e médico Tostão, colunista da Folha de S. Paulo.
Aliás, no que está certíssimo. Tostão é infinitamente melhor que a quase totalidade dos jornalistas esportivos do País entre outros motivos porque buscou em outras searas, no campo da filosofia, das artes, da medicina, da psicologia, de sociologia, embasamento de suas incursões. O fato de ter sido um craque não quer dizer nada porque isso não bastaria para credenciar-se a expoente midiático. Peguem tantos outros craques e constatem a absoluta aversão às letras. Tostão é a multiplicação de aptidão, talento, dedicação e senso de observação. O que falta à maioria dos jornalistas esportivos que se sustentam em velhos chavões e de uma queda irrefreável à personalização sem conteúdo, à banalidade tratada como grande sacada. São os ratinhos do futebol.
O episódio envolvendo Mário Gobbi, uma facção da torcida corinthiana e representantes da imprensa esportiva apenas reforça a marginalidade intelectual cotidianamente relatada pela crônica esportiva, com brados de autoritarismo e espetacularização na caça às bruxas das torcidas organizadas.
Também extratifica o grau de fanatismo de jovens torcedores que, fossem menos perseguidos e discriminados, poderiam canalizar o sentimento a projetos associados aos clubes. Entretanto, como recebem de respostas pancadarias da Polícia Militar e a estigmatização da imprensa, mais se aparelham para contra-atacar com agressividade e desforras.
E, com o mesmo grau de valoração, o caso coloca os dirigentes esportivos numa berlinda incômoda da qual só conseguirão escapar quando o futebol não for observado apenas pelas lentes do lúdico, do passageiro, do momentâneo porque, de fato, é uma atividade que ajuda a amalgamar as relações pessoais e move uma indústria de entretenimento que tem na televisão o grande portal de exploração publicitária.
As torcidas organizadas de futebol não são nada diferentes de outros grupos sociais que, quando em massa e mobilizados, agem com rebeldia e violência.
A crônica esportiva não difere quase nada de tantos outros agrupamentos profissionais que se perdem na precariedade de conhecimentos.
E os dirigentes esportivos, juízo de valor individual ou coletivo à parte, são torcedores privilegiados que atuam diretamente com os craques e supostos craques que fazem o espetáculo e por isso mesmo estão do outro lado do balcão de idiossincrasias quando o que está em jogo são desenlaces do preço do sucesso, como é o caso do Corinthians, ou do fracasso, como é a maioria dos casos.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André