Caí na besteira de, no final daquela tarde-noite de domingo, acompanhar o entusiasmo de meus filhos e, três quarteirões à frente de minha residência, dirigir-me à Avenida Kennedy, em São Bernardo, tradicional endereço de comemorações esportivas.
O time da família acabara de ganhar mais um título (veja só que arrogância para quem mal saíra da Série B do Campeonato Brasileiro) e nada melhor que festejar — que ninguém é de ferro. Ainda mais que sempre há sabor de revanche, de doce revanche, quando o time da gente ganha um título, um título paulista que o distancia da concorrência. Sobretudo quando se tem na vizinhança, pronto para a artilharia verbal, um tricolino que insiste em sair à janela e gritar toda vez que o time dele marca um gol ou que o time dos outros toma gol.
Bem, então nos dirigimos à Avenida Kennedy. Um número bastante volumoso de alvinegros ali já se encontrava. Eram jovens, crianças, adultos, gente de todas as idades. O buzinaço de veículos e a cantoria de torcedores nas calçadas insinuavam que a festa duraria um bocado.
Resolvi então, para sorver melhor a alegria, estacionar o veículo numa rua paralela. Meus filhos queriam sentir mais de perto a alegria geral. A batucada corria solta, bebia-se ainda sem qualquer exagero, entoavam-se refrões do maior dos maiores, gostem ou não os adversários, porque nessas horas o maior dos maiores é sempre o campeão dos campeões, eternamente nos nossos corações, e que se dane a história. Ainda mais porque a história esportiva é contada da forma que melhor entender cada torcedor, seguindo a ótica de valoração subjetiva. E estamos conversados.
Pois bem: de repente, não mais que de repente, espalhou-se pânico naquele trecho da Kennedy. Tiros de borracha e estouros de bombas de gás de efeito moral tomaram a avenida. Uma Tropa de Choque da Policia Militar, como que saída de esconderijo antiaéreo, marchou em direção aos manifestantes. Não havia nada de anormal nas comemorações. Nem mesmo o tráfego de veículos sofria constrangimento com a invasão. Apenas tornara-se mais lento do que nos finais de tarde de dias úteis. Uma lentidão consentida pela maioria que para ali se dirigiu também para comemorar.
O resumo da história é que a truculência policial acabou com a festa. Policiais atingiram vários torcedores, entre os quais meu filho, alvo nos fundilhos de uma bala de borracha nada mole. Mesmo que tenha acertado um alvo mais, diríamos, confortável.
Não adiantou lançar mão do celular e ligar insistentemente para o comando da PM. Relatei os fatos. Indignado estava e indignado fiquei. A PM não estava nem aí com a arbitrariedade de uma operação descabida, totalitária e irresponsável.
Não pretendia descrever aquele começo de noite em São Bernardo, mas não resisti por três razões.
Primeiro, porque a mídia de maneira geral é cega, surda e muda às estripulias da Polícia Militar nos estádios de futebol e, também, em situações semelhantes a que narramos. Parece que há acordo tácito para fechar olhos, ouvidos e boca.
As torcidas organizadas são as únicas vilãs dos acontecimentos e estamos conversados. Os cronistas esportivos podem dizer as maiores barbaridades, podem acirrar os ânimos com truques ordinários em busca de audiência. Os dirigentes podem apelar para destemperos verbais que terão franquia em todos os microfones e câmeras. Já os torcedores organizados que — insisto em relação ao último artigo — não são flores que se cheiram, tornam-se únicas flores que não se cheiram. Servem sempre e sempre de bois de piranha.
Segundo, porque leio nos jornais de hoje o quanto aumentou a violência da atuação policial no Estado de São Paulo, com acréscimo de 56,5% dos casos letais no primeiro semestre, em relação ao semestre do ano passado. O jornal Estadão ouviu o presidente da Comissão de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciência, Renato De Vitto. O especialista explica que as estatísticas são frágeis para atestar se cada óbito foi de fato defesa do policial. “Eu avalio que esse aumento de mortes tem mais relação com a estratégia policial de combater crimes, da cultura de agir mais letal” — disse.
Terceiro, porque o dirigente sãopaulino e atual vereador paulistano Marco Aurélio Cunha botou a boca no trombone esta semana para dizer que a Polícia Militar exagera na dose de repressão nos estádios.
Em entrevista ao portal Terra Magazine, sob o título “PM tem que parar de bater nos torcedores”, Marco Aurélio Cunha afirma: “O que eu tenho combatido na Polícia Militar é o seguinte: se você tá na balada e dois caras brigam, vem o segurança, põe os dois na rua e acabou. Já imaginou se a cada briga que houvesse dentro de uma festa entrasse o Batalhão de Choque espalhando porrada para todo mundo?”. (…) Então, no estádio a atitude da polícia tem sido essa. E pior: os caras que querem brigar correm da polícia e quem fica no meio disso é o torcedor refém, é o caro pequenininho”.
Prossegue o dirigente sãopaulino: “Eu já cansei de ir ao centro médico do Morumbi e ver pessoas absolutamente frágeis que tomaram porrada e que não tinham que se meter porque o grande agressor sumiu. Quer dizer, os caras usam esses torcedores que não sabem o que fazer, que ficam chorando no colo do pai… É preciso que a polícia pare de bater indiscriminadamente nos estádios. Você tá vendo quem tá fazendo coisa errada? Pega o cara e tira, e não sai distribuindo porrada. O conceito de combate à violência nos estádios tem que ser reformulado” — disse o dirigente sãopaulino que, mesmo acima da média comum da classe, em passado recente ajudou a incendiar rivalidades nos estádios com declarações espirituosas, inteligentes, mas totalmente inoportunas no contexto conflitivo fermentado em grande parte pela mídia torcedora e marqueteira. Mas era preciso, porque ele já estava de olhos abertos nas eleições que o consagraram.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André