Esportes

Ramalhão de Ouro merece muito
mais que toneladas de alimentos

DANIEL LIMA - 15/04/2010

Por mais providencial que seja, embora eivada de politização, a campanha da direção do Santo André para levar massa considerável de espectadores ao Estádio Bruno Daniel na decisão de domingo não pode esconder o estágio de esfacelamento popular de um clube fundado há quase meio século.


Trocar ingresso por alimento é saída criativa, sem dúvida, mesmo acoplada de interação partidária que, espera-se, acorde o Poder Público para a importância do futebol. Entretanto, não é suficiente para subestimar uma realidade nua e crua.


Que realidade nua e crua é essa? Sem esquema especial de sensibilização de torcedores ocasionais, o Santo André correria o risco de jogar para público ínfimo uma das partidas mais importantes da história. O topo, como se sabe, foi a conquista da Copa do Brasil.


Longe de mim atribuir à direção do Saged, que controla o futebol do EC Santo André há três anos, toda a carga do estado de penúria a que chegou a cidadania esportiva da cidade. O processo é longo e duradouro, sobre o qual eventuais mobilizações terão enormes dificuldades de sucesso, embora não devam jamais ser descartadas.


A direção do Saged, ou seja, os acionistas da empresa que mantém o futebol de Santo André, também tem parte de culpa no cartório de comodismo, porque ainda não atentou a ações de marketing para aumentar a rede de aficionados da equipe. Entretanto, quem entre os dirigentes do passado retirar da seringa a porção que lhe compete, não passará de demagogo.


Como um navio abalroado que afunda numa perspectiva de horas, a escassez de torcedores no Estádio Bruno Daniel reúne vários componentes. O maior é a centralização da TV aberta na divulgação dos grandes clubes do Estado.


As equipes do Grande ABC sofrem muito mais com a influência televisiva. Por razões topográficas e tecnológicas, a região não conta com retransmissoras das grandes redes. É muito importante contar com janelas de programação que abrem espaço à divulgação de notícias locais. Na Baixada Santista, na Grande Campinas, na Grande Sorocaba, em tantas outras regiões do Estado é exatamente isso que acontece. A perda líquida de fidelidade de torcedores dessas áreas para os grandes clubes é menos intensa.


Se antes da descoberta do esporte pela TV aberta tinha-se no Grande ABC o que chamei numa antiga crônica de culto à camisa dividida, o tempo tratou de apagar as cores e o distintivo do Santo André em larga parcela dos esportistas. No Interior, as camisas divididas são proporcionalmente maiores.


Arquibancadas dos jogos de Ponte Preta, Guarani, Botafogo de Ribeirão Preto e de outros clubes tradicionais do Estado são menos desproporcionais quando de encontros com torcedores dos grandes clubes paulistas do que no Grande ABC.


Se qualquer uma dessas equipes ocupasse o lugar do Santo André no Campeonato Paulista desta temporada, aqueles municípios estariam em ebulição. Até Presidente Prudente, que acaba de adotar uma equipe renitentemente chamada de Grêmio Barueri deu respaldo nas arquibancadas no jogo do último domingo sem recorrer a artificialismos.


O Santo André que joga domingo no Bruno Daniel podendo até perder para decidir o título paulista com o Santos só não é badalado em todo o País porque deu o azar de ter como rival de manchetes o time de Neymar e companhia. A disparidade de representação popular colocou o Santo André na penumbra santista. Futebol e negócios são faces da mesma moeda.


Não fosse o deslumbrante Santos a enfiar gols atrás de gols em quase todos os adversários, o Santo André seria o time da moda paulista. Ou não deveria sê-lo depois de, conforme revelação da Folha de S. Paulo, tornar-se o clube do Interior o mais produtivo em gols na história do futebol do Estado?


Nenhuma equipe fora do circuito dos grandes clubes paulistas conseguiu na competição estadual mais importante do País registrar média de gols que se assemelhe ao Santo André desta temporada.


O Santo André é um time dos sonhos de quem gosta de gols. Inclusive porque se descuida tanto na defesa que seus jogos além de não terem placar em branco, têm também muitos gols dos adversários.


Embora este Ramalhão de Ouro mereça muito mais que um quilo de arroz, um quilo de feijão, um quilo de batata, um quilo de qualquer outra coisa de cada morador do Município, a campanha lançada nesta semana encaixa-se no conceito popular de que dos males é o menor.


A iniciativa da direção do Santo André é inteligente, mesmo que contaminada de política.


Primeiro porque evitará que um futebol tão esfuziante seja levado a um gramado tendo nas arquibancadas gatos pingados que mal chegam à média de 1,5 mil torcedores em jogos contra equipes de igual perfil.


Segundo porque permitirá que famílias pobres recebam donativos.


O ônus da política incrustada no movimento deve ser minimizado. Equipes de porte médio e pequeno estarão sempre sujeitas a infiltrações pontuais de interesses que fogem da tradição esportiva dos grandes clubes. Faz parte do show e assim deve ser tolerada a investida municipal de um prefeito campeão absoluto em carisma. Até porque não seria a primeira nos 40 e tantos anos de Santo André.


Colocar o Fundo de Solidariedade de Santo André na multiplicação de postos de trocas de ingressos por alimentos é uma jogada e tanto.


O Santo André fez do limão do descaso popular a limonada da solidariedade social.


Se toneladas de alimentos ganharem também a forma de incentivo nas arquibancadas, em vez da passividade de torcedores de ocasião, melhor ainda.


Trata-se, portanto, de uma jogadaça de criatividade à altura do time de Sérgio Soares, responsável principal pela organização técnica e tática de uma das equipes mais importantes da história do clube.


Espera-se, apenas, que o resultado final fora de campo não obscureça a capacidade de compreensão do quadro socioesportivo que cerca o futebol de Santo André, integralmente em crise de identidade.


Espera-se também que o ambiente festivo da escapatória encontrada para evitar um vexame popular de arquibancadas com imensos vazios não contamine o espírito de competitividade do time que entrará em campo para uma das jornadas mais importantes de sua trajetória.


Não se trata em princípio de um jogo de festa. Não faltam exemplos para manter o técnico Sérgio Soares e os jogadores longe do oba-oba dos alimentos.


Esse Ramalhão de Ouro merecia uma torcida de verdade, autêntica, fiel em todas as situações, esportivamente frequente, não apenas humanisticamente ocasional.


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