Pergunte para sãopaulinos, palmeirenses e santistas qual é o time que mais detestam?
Pergunte para tricolores cariocas, botafoguenses e vascaínos qual é o time que mais detestam?
A resposta da maioria é tão clara quanto a luz de um dia ensolarado:
Corinthians e Flamengo, é claro.
Daí, nenhuma surpresa, nenhuma mesmo, no resultado divulgado ontem nos mais diferentes sites sobre a pesquisa que o Ibope realizou para o diário esportivo Lance com 7.109 brasileiros a partir de 10 anos de idade, em 141 municípios de todos os tipos e tamanhos.
O que causa estranheza, para não dizer estupefação, é que a obviedade do resultado, estampada em várias manchetes, não encontrou um único profissional do ramo jornalístico capaz de produzir ponderações. Ninguém, absolutamente ninguém, enveredou pelo campo da psicologia de massa para tentar traduzir o resultado além dos números frios, estatísticos, silenciosos.
Será esse comportamento politicamente correto, de não se indispor com as outras torcidas ao apresentar contraponto tão automático? Ou o pessoal da crônica esportiva foi contaminado pela pandemia que atinge os vizinhos da editoria de Economia, que também não sabem lidar com as várias faces de um mesmo banco de dados e por isso mesmo deixam ao deus-dará qualquer interpretação mais profunda?
Então, ficamos assim: o Corinthians (com 14,3% dos apontamentos) e o Flamengo (com 10,9%) são os clubes mais rejeitados do País. Guardem esses números, porque esses números são os que de fato valem.
A maioria dos sites incrementou a numeralhada sem levar em conta o universo pesquisado. Atribui-se ao Corinthians 21% de rejeição dos torcedores, quando, de fato, o resultado saiu de conta imperfeita: os 21% a que se referem são de torcedores que manifestaram rejeição especificamente por um clube.
Não se trata, portanto, de todo o universo pesquisado. Sim, porque dos mais de sete mil entrevistados, 32% disseram que não rejeitam nenhum clube. Os anticorinthianos são 14% do total dos mais de sete mil entrevistados, não 21% como publicaram. São 21% do universo de 68% que optaram por um adversário preferencial.
Faço agora o papel de advogado do diabo de meu próprio raciocínio para apresentar a seguinte formulação conceitual: é inquestionável que o Corinthians tem uma acentuada rejeição nacional, maior que os demais clubes, porque, de fato, lidera o ranking dos torcedores que o apontaram com maior grau de hostilidade.
Essa conclusão não é necessariamente sustentável. E explico as razões. O Corinthians lidera o ranking de rejeição com 14,3% de apontamentos, contra 10,9% do Flamengo, 9,5% do Palmeiras, 8,8% do Vasco da Gama, 7,5% do São Paulo, 4,1% do Botafogo e 2,1% do Internacional, do Santos e do Fluminense — os 10 primeiros colocados. Isto posto, parece a contabilidade irrefutável. Mas não é bem assim.
Para começar, o Corinthians terá mesmo maior grau de rejeição num universo no qual é relativamente mais combatido que os demais clubes. Seria de se estranhar se Corinthians e Flamengo não fossem tão atacados pelos adversários.
Somem os percentuais de preferência clubística das agremiações paulistas e das agremiações cariocas. Os paulistas que constam do ranking divulgado pelo Ibope chegam a 30,8% do eleitorado esportivo nacional, contra 24,5% dos cariocas. Ora, essa distância de 6,3 pontos percentuais (ou de 20,45%) se reflete no ranking de rejeição.
A soma de sãopaulinos, palmeirenses e santistas, potencialmente muito mais anticorinthianos que anti qualquer outro clube, atinge a 17,4%, enquanto a soma de antiflamenguistas, no caso botafoguenses, tricolores e vascaínos, chega a apenas 7,3% no âmbito nacional. Ou seja: há disponível no mercado de voto clubístico no País mais que o dobro de potenciais anticorinthianos do que antiflamenguistas. É por isso que o Corinthians lidera o ranking dos mal-amados.
Ou será que o leitor tem dúvida de que raramente sãopaulino, santista ou palmeirense apontará qualquer outro clube de outro Estado como principal adversário, se as maiores rusgas estão no âmbito estadual? Da mesma forma que botafoguenses, tricolores e vascaínos não apontarão qualquer equipe de outro Estado como fonte de rejeição. É o Flamengo o alvo principal, sem dúvida. Não interessa, como no caso dos paulistas, o domicílio dos torcedores pesquisados. Rivalidade não tem fronteiras geográficas.
Perceberam que o questionamento do Ibope é de uma redundância tão escandalosa que só é superada pela abstinência da crônica esportiva em entender o enunciado com profundidade muito além de uma lâmina de água no asfalto?
Tanto é verdadeiro e sustentável esse raciocínio que os cinco primeiros colocados do ranking de torcedores são os cinco primeiros colocados do ranking de rejeitados.
Perguntará o torcedor sãopaulino:
Por que então o ranking de rejeição não segue o mesmo posicionamento do ranking de preferência, com o Tricolor Paulista, terceiro colocado entre os mais amados, classificar-se em quinto entre os mais rejeitados?
Também enveredo pelos caminhos das rivalidades esportivas latentes, cuja resposta serve tanto para explicar a posição do São Paulo como a situação do Vasco da Gama e do Botafogo.
No caso do São Paulo, o índice de rejeição é menos intenso que o de preferência porque a equipe do Morumbi divide com os palmeirenses o antagonismo corinthiano. Se para a grande maioria de sãopaulinos, santistas e palmeirenses o Corinthians é o adversário a ser batido, para os corinthianos a velha rivalidade com o Palmeiras, alimentada pela mídia que os colocam como arquirivais, acaba por favorecer o São Paulo, reduzindo o impacto de hostilidade. Da mesma forma, palmeirenses em maior escala optam pelo Corinthians como clube de rejeição em proporção maior à faixa que opta pelo São Paulo. É menos intenso o fluxo de pais palmeirenses que observam os filhos reforçarem a torcida corinthiana do que em relação ao São Paulo. Os palmeirenses, portanto, cavam a própria sepultura de ultrapassagem tricolor no ranking dos mais amados.
A boa notícia para os corinthianos no ranking de rejeitados é que a pesquisa do Ibope aponta maior índice negativo envolvendo seus adversários paulistas (São Paulo, Palmeiras e Santos), que somam 20,4% de rejeição nacional, contra 14,3% do Corinthians.
No caso dos clubes cariocas, Vasco e Botafogo só aparecem com tanto destaque entre os seis primeiros colocados no ranking de rejeição porque os torcedores do Flamengo, a maioria no âmbito nacional, descarregam sobre esses adversários a força de rivalidades históricas. Não seriam atleticanos, gremistas e colorados, minoria entre os clubes mais amados, que escolheriam Vasco e Botafogo como vitrines a depedrar.
Para encerrar, uma provocação: não teria sido melhor traduzir o que o Ibope detectou como rejeição em algo diferente desse sentimento? Não seriam Corinthians e Flamengo, os mais rejeitados, de fato os mais invejados?
Ou vamos fazer de conta que não há como resistir, no futebol, como torcedores que todos somos, à construção de sentimentos menos nobres como válvula de escape mais visível e pronunciada em contraponto permanente ao comportamento mais suportável em outros campos de manifestações?
Não seria o futebol o refúgio de recalques, desopilador do fígado moral e ético, escoadouro de invejas e idiossincrasias? Não fosse tudo isso, então por que o foguetório, a gritaria nas janelas de apartamentos, as hostilidades nas ruas, quando nosso time perde?
Rejeitados coisa nenhuma: os líderes de torcidas são igualmente os mais invejados.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André