No ano que vem, quando Santo André e São Bernardo se enfrentarem no Estádio Bruno Daniel pela Série A do Campeonato Paulista, a torcida do chamado Tigre será muito maior que a do Ramalhão. O vexame do clube que até pouco tempo atrás era o mais popular do Grande ABC só será evitado por medidas artificiais, de farta distribuição de ingresso a gente que o desdenha há muito tempo, ou se os ingressos forem majorados estupidamente a ponto de desmobilizar a torcida adversária. A festa do futebol do Grande ABC estaria bem encaminhada caso se adotasse medida em contrário: de barateamento do ingresso para a tomada de todos os espaços do estádio. A remassificação da torcida do Santo André, fora do esquadro do imediatismo provisório, é uma quimera. Não há milagre. Nenhum corpo enfraquecido por vícios ao longo dos anos é levado a uma desafiadora maratona do dia para a noite.
O mando de jogo desse novo clássico do mercado da bola no Grande ABC é esperado para o Estádio Bruno Daniel. Neste ano, o Santo André enfrentou o São Caetano no Estádio Bruno Daniel, o que, automaticamente, leva o clássico da próxima temporada para o Estádio Anacleto Campanella. Desta forma, o Santo André jogará em casa com o São Bernardo e o São Bernardo em casa com o São Caetano.
Como já escrevi neste espaço, o que se espera desse acontecimento inédito na história do futebol da região (jamais as três equipes disputaram o principal campeonato estadual do País) são medidas de marketing que despertem senão a cidadania esportiva da maior parte da população dos três municípios, ao menos a cidadania municipalista, essa coisa atávica e provinciana que surgiu com o desmembramento do território do Grande ABC em várias partes, depois da unidade em torno de Santo André da Borda do Campo e, mais tarde, de São Bernardo.
Os emancipacionistas não sabem o mal que fizeram ao Grande ABC como unidade cultural, econômica e social, além de política. Deveriam ter bons propósitos, mas o que legaram foi um circo de horrores de provincianismos explícitos, resumido no que defini de Complexo de Gata Borralheira.
Seria chocante mas ao mesmo tempo provocativo para os andreenses ver a torcida do Tigre dominar as arquibancadas do Estádio Bruno Daniel em proporção muito superior à reserva do setor de numeradas aos torcedores ramalhinos. Nada constrangeria mais a auto-estima do Ramalhão e dos antigos cultivadores de rivalidades de batateiros e ceboleiros que uma inversão de valores de representatividade esportiva. O Santo André precisa sim passar por esse tipo de vexame para se dar conta de que parou no tempo e no espaço, esperando por Godot.
Com média de seis mil pessoas por jogo nesta temporada, numa sempre obscura Série B, o São Bernardo deu um show de bola de organização fora dos gramados. Enquanto isso, o Santo André precisou distribuir ingressos gratuitamente para colocar 10 mil pessoas no Estádio Bruno Daniel no jogo da semifinal do sempre midiático Campeonato Paulista contra o Grêmio Prudente e, após o vexame de ocupar apenas metade do Tobogã nas finais contra o Santos, foi desalojado no jogo seguinte para um cantinho do Pacaembu.
Já imaginaram o peso das imagens de arquibancadas vazias ou semivazias, ou de espaços minúsculos reservados a uma torcida de finalista de campeonato, quando da decisão de investimentos em patrocínio de empresas que procuram nichos no mercado da bola, deslocando recursos para equipes alternativas? Os novos dirigentes do Ramalhão nada fizeram até agora de forma consistente para valorizar a marca que adquiriram do Esporte Clube Santo André.
Mais que isso: caíram no conto da carochinha de que bastava mudar o comando diretivo e ter um jornal à disposição para resolver o problema. Foi-se o tempo (e participei ativamente daquele tempo) em que, como editor de Esportes do Diário do Grande ABC, brigava com a chefia de Redação por chamada destacada de primeira página para os jogos das equipes da região. Sentia a diferença que a medida editorial representava na afluência de público.
Havia uma falta de sensibilidade crônica das chefias geralmente importadas da Capital ao apelo do editor-esportista. A elitização da primeira página era um comportamento provinciano de quem, paradoxalmente, imaginava que ao se dar vez principalmente a temários nacionais e internacionais, o jornal se consagraria como fonte respeitável de informação. Não foram poucas as ocasiões em que insistia à valorização do conteúdo regional. Estávamos nos anos 1970.
Não venham com conversa mole de que os ingressos do São Bernardo são mais baratos, que os torcedores obedecem a algum esquema de apoio de cabresto, que há facilidades a demover barreiras de assiduidade. São desculpas esfarrapadas de quem não tem criatividade, dedicação, empenho e muito mais para recuperar o terreno perdido desde que a televisão passou a dar as cartas no futebol e os clubes populares dominaram a pauta jornalística.
O São Bernardo é prova viva de que é possível sim reagir às adversidades. Seus jogos no Estádio de Vila Euclides, sábados à tarde, foram coroados de pleno êxito popular, mesmo na Série B do Campeonato Paulista.
Propus que Santo André, São Bernardo e São Caetano disputem um torneio paralelo no próximo Campeonato Paulista. O presidente do Tigre, Luiz Fernando Teixeira, já endossou a iniciativa. Também está decidido a novas ações envolvendo as três equipes.
Há medidas de marketing que podem ser exploradas para reposicionar o futebol da região no seio de municipalismos e regionalidade, com vantagens mútuas. Os jogos entre essas equipes no ano que vem deveriam ser apenas pretextos para a reorganização das relações extra-campo entre seus dirigentes, assessorados por especialistas.
Que a rivalidade fique nas arquibancadas. Até porque, são três clubes-empresas que sabem o quanto custa enfrentar uma situação de ampla desvantagem no mercado nacional da bola, preteridos que são pela mídia e pelos patrocinadores por conta dos índices de audiência e de representatividade dos torcedores.
Tenho saudade dos tempos de clássicos entre Santo André e Saad de São Caetano e de Santo André e Aliança de São Bernardo. Tempos de uma Segundona recheada de emoções e de estádios locais que reuniam milhares de torcedores, a partir dos anos 1970. Foram clássicos memoráveis no Baetão, no Bruno Daniel e no Lauro Gomes que, não sei por que cargas dágua, virou Anacleto Campanella.
Por mais que o futebol tenha virado negócio, por mais que os grandes clubes dominem os torcedores de sofá e de arquibancada, há sempre nichos de mercado para as equipes médias como as que representam o Grande ABC. Conformar-se com a penumbra tecnológica de não dispor de emissoras de televisão abertas é render-se bovinamente às intempéries, dando-lhes formato de fatalidade.
O São Bernardo que se prepara para invadir o Estádio Bruno Daniel é prova provada de que há meios de atiçar a rivalidade no futebol da região sem que os dirigentes caiam na armadilha de levarem a cabo igual sentimento fora de campo. Não vejo a hora dos próximos clássicos do Grande ABC, certo de que também o São Caetano vem se virando como pode para levar mais gente ao Anacleto Campanella. O Santo André está atrasado há mais de três anos, quando virou clube-empresa com a promessa de tratar melhor uma marca que se tornou respeitável ao longo de quatro décadas. As finais contra o Santos confirmaram o estado de alerta de insensibilidade do Município ao Ramalhão. E de descaso do Ramalhão ao Município.
Que o São Bernardo complete o serviço, porque só assim a realidade romperá a barreira da ilusão de domínio popular que já virou passado.
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05/08/2024 Conselho da Salvação para o Santo André