Esportes

Perdoai-os, senhor: eles não sabem
e jamais saberão o que de fato somos

DANIEL LIMA - 01/09/2010

Juro que relutei para não escrever uma linha sequer sobre minha maior paixão, mas não resisti. Como não revelar a felicidade e o entusiasmo que sinto neste primeiro de setembro de 100 anos de um sentimento que começou com os gritos apaixonados de meus tios, todos filhos de espanhóis, na distante Guararapes, Interior de São Paulo, onde nasci?


Já sofri tanto por ti, Corinthians, mas jamais trocaria o amadurecimento que a tristeza ocasional impõe por qualquer alegria suprema que outras cores rivais mais próximas tanto construíram. Não me levem a mal, os outros. Perdoem a franqueza de quem, já calejado na vida, próximo dos 60, aprendeu a respeitar os adversários mais tradicionais mas não consegue deixar de responder às provocações de um vizinho mais abusado. Vuvuzela nele.


Fiz de meus filhos todos igualmente alvinegros. Os mais jovens mais fanáticos, meus companheiros de sofá. Os mais velhos, menos próximos fisicamente, mais discretos. Deixaria a vida com a missão cumprida em muitos pontos. A herança do corinthianismo é a mais importante. Maior até que a pregação de leitura, leitura e leitura.


Não me lembro bem qual foi a última vez que perdi um jogo do Corinthians. Não marco compromisso algum quando o Corinthians entra em campo. Não atendo telefone no horário do jogo. Não recebo visitas. Detesto que meus filhos sobreponham-se com comentários à transmissão na TV. Vivo intensamente cada minuto, cada lance.


Estúpido, procuro deixar a paixão de lado, numa luta eterna do jornalista que não admite perder o controle da análise à qual me viciei metido nessa seara deste os 14 anos de idade. Inutilmente, é claro. Graças a Deus sou corinthiano mesmo contra minha vontade circunstancial, de torcedor de sofá na maioria dos casos. O Corinthians subverte meu profissionalismo. É uma força indomável, avassaladora. Irresistível, diria. Só nesse campo meus leitores podem me acusar de suspeito. Também desconfio de mim mesmo quando escrevo sobre o Corinthians. Geralmente, me condeno.


Mas, por mais apaixonado que seja, ainda consigo, nos momentos mais difíceis, transmitir senso de responsabilidade aos meus filhos adolescentes. Quando da queda para a Série B, silêncio total, fogos a espocar na minha janela, aproximei-me dos meus filhos e, segurando a respiração e o choro, sentenciei a eles uma metáfora da vida, no sentido de que mesmo os grandes e poderosos conhecem dias de infortúnio, principalmente quando incidem em erros, em negligências.


Sobre persistência, sobre dedicação ao trabalho, sobre a importância de aperfeiçoar-se sempre, já utilizei o exemplo de Rogério Ceni, de Zico, de Pelé e de tantos craques que, encerrados os treinamentos convencionais, se dedicaram à arte de bater faltas, cada um a sua maneira, desde que a precisão do chute supere a barreira e engane o goleiro adversário. A vida é uma eterna insistência em viver.


Vivemos dias de êxtase. O centenário seria mais completo com a Libertadores, é verdade, temos possibilidades de sucesso no Brasileiro, isso é fato, mas o anúncio de que teremos um estádio, um baita estádio, restaura de vez nossa auto-estima esportiva, como se algo precisasse ser restaurado sendo nós corinthianos. Os outros, com todo o respeito, perderam um filão precioso de idiossincrasia que nos estiolava a alma.


Estou lendo uma porção de bobagens sobre o novo estádio do Corinthians. Nossos adversários procuram desclassificar o golpe de mestre do presidente Andres Sanches. Que exponham seus recalques. Faz parte do jogo. Faz parte da vida. Eles sabem que sem o alvinegro mais amado do mundo não haveria graça alguma no futebol. Afinal, eles deixariam de viver grandes alegrias. Principalmente quando nos derrotam com o time deles e com os times dos outros. Esse “nós” contra “eles” é a maior prova de nossa grandeza. Somos o principal adversário de cada um deles, como se sabe.


Sou o próprio testemunho das transformações pessoais que o Corinthians possibilita e acelera. A juventude se vai, a maturidade chega, os objetivos se alteram ou se aperfeiçoam, os filhos crescem, as demandas se multiplicam, mas prevalece sempre a paixão alvinegra, penetrante a cada segundo.


Como explicar que, recém-chegado a Santo André, em 1968, jovenzinho em busca de uma saída na vida, me metesse num trem de subúrbio naquele abril em lágrimas e acorresse ao Parque São Jorge para velar os corpos de Lidu e Eduardo, mortos num acidente de trânsito? Talvez seja essa a melhor explicação ao trauma de velório. Brincando, digo aos amigos que não comparecerei nem mesmo ao meu sepultamento.


Também não sou adepto de festejos de aniversário. Mas com o Corinthians, ontem à noite, foi diferente. Senti vontade de sair às ruas. Optei pela Vuvuzela à janela. E por incentivar meu filho, morador na Capital, onde estuda, a não perder a oportunidade de deixar o apartamento e ir às ruas quando a meia noite chegou. Não se vive duas vezes a possibilidade de festejar a passagem do centenário — disse a ele e também a mim mesmo.


Não sei nem imagino o que é ser sãopaulino, santista ou palmeirense. O que sei é que todos eles pensam que sabem o que é ser corinthiano. Por isso odeiam tanto nossas cores. A psicanálise explica. Eles não se conformam com o que somos e não entendem porque somos o que somos quando eles, acreditam, são mais do que somos.


Tentem na próxima encarnação.


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